quinta-feira, 24 de outubro de 2013
Uma Pequena Trapaça
- Raymond, preste atenção! Você vai ter que se arranjar sozinho da próxima vez!
Kyara deu um último arremate no laço que formava a armadilha e franziu a testa. Deitado de costas na grama, Raymond de Pwilrie olhava para o céu, pensando, não em quando choveria, nem em quando voltariam os pássaros que eles apanhavam com visgo, mas numa canção que ouvira de um menino, anos antes, num Festival do Vinho em sua terra natal. Fazia frio, os fogos acesos na praça tinham se extinguido, mas o pequeno Haney estava contente ao lado do irmão mais velho. Tinham tocado o dia todo e enchido dois chapéus com moedas, garantindo as próximas refeições da família. Agora subiam de mãos dadas a ladeira que levava à sua casa, pequena e pintada de branco, na confusão indecifrável do Labiri
- Raymond!
A voz quase ríspida de Kyara o empurrou de volta ao presente. Ela estava mostrando como armar um laço para pegar coelhos, mais uma das várias coisas que lhe ensinara a fim de que ele se saísse bem no seu futuro trabalho como guarda-caça. Algumas eram fáceis de aprender, mas outras dependiam da prática, e Raymond se aproveitara disso para pedir que ela mostrasse de novo, assim prolongando a estada deles na cabana perto do rio. Estavam lá havia um quarto de lua, e no que dependesse dele poderiam ficar mais um ano inteiro, pescando, cantando e fazendo amor. Mas não havia como ignorar o fato de que ambos tinham um rumo a seguir.
Rumos opostos. Era isso que ele gostaria de esquecer.
Kyara empilhou algumas folhas sobre o laço para disfarçá-lo. Raymond se levantou e foi até ela, tendo na mão um punhado de florzinhas que deixou cair, parte nas folhas, parte sobre a cabeça da elfa, onde ficaram presas em seu cabelo. Ela o olhou, ainda com o cenho franzido, mas em seguida riu, porque Raymond tinha espetado flores na barba e feito uma trilha que descia pelo peito até mais abaixo.
- Que tal? – perguntou, girando sobre os próprios pés.
- Lindo! Não volte a deitar, ou um coelho pode mordê-lo aí – replicou Kyara. – Seria um jeito bem doloroso de conseguir carne!
Raymond arregalou os olhos, surpreso, depois também riu, deixando-se puxar para o solo e para os braços da elfa. Apertou-a contra si, respirando o cheiro de ervas em seu cabelo negro, e foi nesse momento que ela disse:
- Amanhã eu vou embora.
As palavras soaram como um tapa na cara de Raymond. Ele a afastou de si, não com violência, mas com desgosto, e abraçou os próprios ombros nus. Num piscar de olhos, a floresta se tornara mais fria. Kyara o fitou por um momento, depois abanou a cabeça e se levantou, andando em direção à cabana de caça.
Raymond continuou onde estava, sem se importar com a umidade que começava a penetrar em seus ossos. Mais uma vez, lembrou-se de Pwilrie, de Sara dançando ao som do pandeiro e de Haney com seus cachos negros, mas a imagem dos irmãos logo se dissipou, substituída pela da moça de boca séria e olhos oblíquos. Ele cerrou os dentes, praguejando baixinho, e tentou afastá-la, mas desde o início sabia que seria inútil. Kyara estava colada nele, ainda que não pudesse vê-la nem tocá-la, e a ideia de que não voltaria a fazê-lo após aquela noite roia seu coração.
Desarvorado, ele concluiu que tinha de fazer algo a esse respeito, mas todas as soluções que lhe ocorriam pareciam impossíveis. Kyara não parava de falar em sua floresta e sua tribo, ao passo que ele não podia abrir mão do trabalho honesto com que o nobre agradecido o recompensara. Não quando sabia muito bem o que era ser escorraçado e passar fome.
No entanto, sem Kyara, ele iria se sentir assim pelo resto da vida.
Uma coruja piou sentidamente no oco de uma árvore. Raymond se ergueu num sobressalto e recolheu suas roupas, depois correu até a cabana, já a essa altura aquecida pelo fogo que Kyara havia acendido. Havia carne em espetos sobre a grelha, com um dos lados começando a torrar e o outro ainda cru.
A jovem elfa havia se metido entre as peles de dormir e tinha o rosto voltado para a parede. Raymond pensou que houvesse pegado no sono – Kyara dormia a qualquer hora quando estava cansada – mas, quando tornou a olhar para ela depois de virar os espetos, deparou-se com um par de olhos brilhantes a observá-lo.
- Raymond, venha comigo – disse Kyara, baixinho.
- Ficar com você? Claro, já vou. Eu só estava...
- Não é isso. Venha comigo quando eu partir – replicou ela, como ele temia. – Vamos viver juntos na Floresta dos Teixos.
- Não posso. – A resposta brotou sem esforço; ele já sofrera bastante pensando naquilo. – Olhe, bela, sinto muito, mas isso não seria bom para nenhum de nós. Eu sou humano, vou envelhecer, acabaria por me tornar um fardo para você e sua família. É melhor que vá viver entre os de minha própria raça.
- Mas não tem que ser assim – contrapôs Kyara. – Minha tribo adota você, nós vivemos juntos e você aprende a caçar direito. – Sublinhou a última palavra com um breve sorriso. – Se um dia não puder mais, nós o ajudamos. Prometo.
- Eu sei, bela – murmurou Raymond. – Eu sei.
Respirando fundo, ele escorregou para dentro das peles e se apertou contra o corpo de Kyara. Não havia maneira de dizer a verdade sem magoá-la: que ele queria ficar com ela, sim, queria com todas as forças, mas não podia se imaginar metido numa floresta com uma tribo de elfos. Não para sempre.
- O meu... O homem que me deu trabalho precisa de mim lá. Estou sendo esperado – inventou ele, por fim. – Eu dei minha palavra quando aceitei. Isso é importante.
- Claro, muito importante – disse Kyara; e por alguns momentos não disse mais nada. Então, quando Raymond tentava achar coragem para propor a outra solução, ela o surpreendeu com uma pergunta.
- Nós podemos ter filhos?
- O quê? – Ele se assustou, depois julgou ter entendido. – Bom, eu gostaria, sim. É claro. Crianças são...
- Não, Raymond. Que você quer, eu sei. Perguntei se nós podemos – disse ela, impaciente. – Eu, da tribo, e você, do Povo Alto. Podemos?
- Ah, isso. Sim, bela, podemos. – Correu a mão pelo corpo dela, liso e quase sem curvas, mas mesmo assim continuou a falar com segurança. – Já vi esses que chamam de meio-elfos. Parecem quase humanos, mas têm olhos muito grandes e... outras diferenças. – Tocou a orelha de Kyara, perfurada por um brinco de osso, e prendeu a respiração antes de arriscar. – Você quer ser mãe de um meio-elfo?
- Eu quero – disse Kyara – que você seja o pai dos meus filhos.
Raymond a encarou em silêncio, comovido, e afastou uma das tranças descuidadas que lhe pendiam sobre a face. Em toda a sua vida – humana, mas afinal não tão curta -, ele jamais ouvira aquilo de uma mulher. Sabia, de alguma forma, que iria acontecer, mas não pensara que ficaria feliz a ponto de ter vontade de abrir a porta e sair dançando noite adentro, nu, em plena floresta. Parecia bom demais para ser verdade, por isso ele procurou se assegurar de que havia entendido bem.
- Você vem comigo, então? Seu povo não vai sentir sua falta?
- Sim... e o xamã vai me procurar numa viagem de sonho e dizer a eles como estou. Mas eu sou livre para ir onde quiser. Já você tem que estar onde disse que estaria, porque deu sua palavra. Quando se promete e não se cumpre, o espírito adoece. Os homens sabem disso, não é?
- Claro, quer dizer... Alguns. Eu sabia. É por isso que, para ficarmos juntos, você precisa vir comigo – disse Raymond. Isso lhe trouxe apenas uma pequena onda de remorso, que passou tão logo ele jurou para si mesmo nunca mais mentir para ela. Tudo era válido no amor e na guerra, inclusive uma pequena trapaça. E tinha a vida inteira para compensar.
Kyara se ergueu sobre o cotovelo, franzindo o nariz, e olhou para Raymond, que apenas encolheu os ombros. Ambos estavam cientes de que a carne sobre a grelha tinha virado carvão. Talvez, com sorte, achassem um coelho numa das armadilhas ao longo do rio. Mas só iriam cuidar disso mais tarde.
- Quem sabe já levamos daqui nosso primeiro filho – sonhou Raymond. – Menino ou menina?
- Tanto faz. Que saiba caçar. – Kyara estudou o rosto dele, tocou os dedos longos e fortes pousados em seu ventre. – Se for menino, que tenha mãos como as suas. Mas talvez seja melhor uma menina, com o seu cabelo, e a sua boca, e esse jeito de apertar os olhos quando ri.
- Fechado – disse Raymond, e lhe apertou a mão. – Vai se chamar Anna.
....
Anna? Como assim? Esses são os pais da Anna de Bryke?
Não, não são. Anna recebeu o nome da mãe; Raymond e Kyara são os seus avós. Para saber mais sobre eles e inclusive ver uma linda arte, venha aqui.
Para ler um conto sobre quando se conheceram, o lugar é este.
Boa leitura! E não esqueça de deixar aqui suas impressões.
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Ri muito dos "enfeites" do Raymond, Ana - fanfarrão! XD Puxa, como eles são queridos. Adorei o conto.
ResponderExcluirObrigada! Ah, ele é trapaceiro e "deitão" em mais de um sentido (adivinha quem vai guardar a caça do guarda-caça no futuro!), mas até que é um cara legal.
ExcluirOlha só que trapaceiro! Vai botar a Kyara para fazer o trabalho dele! Aaaah, Raymond!
ExcluirMas não há como negar que formam um casal muito carismático ♥. E o mais legal é que você conseguiu passar muito bem o jeito dos dois nesses breves contos que você postou deles. Muito bom!!
Muito legal conhecer as origens de Anna e seus antepassados. =)
ResponderExcluirEu amei essa continuação. É um conto lindo. Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigada! Espero que volte a me visitar aqui no blog.
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