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domingo, 16 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 7)


-- Viu só, Mestre Theoddor? Eu disse que não ia ficar bom! Até aquele homem, que deve ser um artesão ou coisa parecida, consegue perceber isso!
Cyprien, com as faces em fogo, se voltou para a mesa deles. A pessoa que falava era uma elfa de sangue puro – ele supôs por sua aparência, e teria mais certeza se soubesse quão mais aguçados que os humanos são os ouvidos de um elfo --, e não uma menina como Pardalzinho, mas uma garota mais velha, zangada e de mãos na cintura. Seus companheiros, outra moça e três ou quatro rapazes que deviam ser todos mestiços, e o próprio Theoddor a fitavam, constrangidos, sem saber como fazer frente àquele desabafo.

-- Já no começo eu disse que não daria certo. Ninguém conversa assim! – Ela repetia exatamente o que Cyprien tinha pensado. – Ninguém parte de uma brincadeira, um jogo de palavras, para se exibir com tudo que sabe a respeito de símbolos!
-- Ela tem razão – disse um dos rapazes, coçando a cabeça. – Se meus amigos fossem assim, eu não acharia divertido jogar com eles,
-- Mas amigos não são... Quer dizer, isso é teatro, é algo imaginado. Não é como na vida real – argumentou Theoddor. – Não tem que parecer o que vocês fariam de verdade.
-- Não é a vida, mas tem que ter mais vida – a elfa insistiu. – Foi o que eu li no livro que Mestre Camdell me emprestou. O que se faz num palco tem que ter por trás a emoção dos atores, e provocar também a do público. E nem eu sinto qualquer emoção ao dizer essas palavras, nem acho que o público vai sentir, como aquele homem disse com tanta clareza.
Seus olhos se voltaram para Cyprien, e com eles os de todo o refeitório: mestres e aprendizes tinham parado de comer para prestar atenção àquilo. O saltimbanco baixou a cabeça, respirando fundo, e esperou por uma resposta de Theoddor; esta, porém, não veio, e ele compreendeu que o silêncio não era mais que a sua deixa.
-- Senhoras e senhores, uma vez que sua atenção foi atraída para mim, começo por me apresentar – disse, e se levantou devagar, criando efeito. – Sou Cyprien, um artista de Pwilrie. Estou nas Terras Férteis há uma lua, e faz apenas três dias que cheguei em Vrindavahn. Vim acompanhando um amigo, sobrinho do Mestre Hector, o marioneteiro; essa é uma das artes com as quais trabalho, além de malabarismo, que me fez ser contratado para ajudar no treino dos aprendizes. E, como sabem, o teatro de bonecos tem bastante em comum com o que os atores de carne e osso representam nos palcos, portanto... Com o meu pedido de desculpas, se isso os ofende... Por tudo que sei, o teatro deve agradar ao público, e o que ouvi dificilmente agradaria.
-- Como sabe? – A pergunta veio de longe, dos lábios da elfa mal-humorada que ele supunha ser uma das mestras da Escola. – Pode ter experiência com o público, não duvido, mas certamente só com o público comum, gente que vaia e aplaude os saltimbancos na praça do mercado. Aqui são todos mestres e aprendizes das Artes Mágicas, e as peças não são para entreter a assistência. Elas têm um propósito e um significado, que nem você, nem qualquer outro leigo são capazes de entender.
Thalia de Erchedel

-- Compreendo, senhora – disse Cyprien, trincando os dentes. – Peço desculpas, mais uma vez, pela ofensa. Não cabe a mim dizer como uma história deve ser contada.
-- E ainda assim... – Agora quem falava era o elfo ao lado dela, com a tiara nos cabelos, inclinando-se sobre o prato intocado. – Ainda assim, Thalia, nosso mestre artista tocou num ponto interessante. É verdade, o teatro tem um significado, não se trata apenas de entreter o público ou, como ele disse, de agradá-lo; mas, ainda assim, a peça busca contar uma história. E, como Elina nos fez lembrar, ainda que um pouco exaltada demais, ao ponto de ser rude com Theoddor...
-- Peço perdão – disse a elfa, corando violentamente. – Perdoe-me, Mestre Theoddor, e o senhor também, Mestre Camdell. É só porque desde o início venho insistindo nesse ponto, e ninguém me deu ouvidos. Mas não queria ser rude com ninguém. Eu juro.
-- Nem eu – disse Cyprien.
-- Sabemos. Fiquem tranquilos. – Camdell ergueu a mão esguia, onde brilhava um anel de rubi. – Mas, deixando de lado esse tom um tanto brusco, Elina teve uma boa lembrança. O livro que lhe emprestei foi escrito por um dos maiores mestres que já discorreram sobre a arte teatral, e ele reforça a importância de manter o interesse do público, a fim de transmitir o que se deseja. Faz até menção à Magia – acrescentou, pensativo --, embora seja a praticada pelos xamãs, que passam ensinamentos para a tribo por meio de histórias. Também fazemos isso, mas muitas vezes nos limitamos a explicar, ou apenas ler um livro em voz alta. Já eles, ao narrar, mexem com as emoções, trabalham a Magia... com arte. É isso que eu quero tentar fazer em nossa escola.
-- Escola de Artes Mágicas – disse o meio-elfo ao seu lado, que até então estivera em silêncio. – É só pensar nisso, e o que você disse faz sentido.
-- Ah, é mesmo, Finn? Muito bem, então – disse Thalia, cruzando os braços. – É sua vez de ajudar, porque eu já fiz minha parte, e Theoddor fez o que podia. Quem sabe um mestre de Magia da Forma, que entende tanto de rituais, possa obter mais sucesso?
-- Ou... um mestre de arte? – indagou Camdell, e entrelaçou as mãos sob o queixo, olhando em cheio para Cyprien. – O que acha de ajudar a tornar a peça melhor?
-- Eu? – Foi um choque; ele quase engasgou. – Mas eu não...
-- Sim, sim, sim, sim, sim! – gritou Pardalzinho, pondo-se de pé e ao seu lado num único salto. – Mestre Camdell, Cyprien entende tudo de arte, e é muito divertido. Aposto que a peça vai ficar ótima com ele!
-- Eu também acho – disse Theoddor, abrindo um sorriso calmo. – O que me diz, Cyprien? Os aprendizes sabem tudo que tem de estar na história; você só precisa sugerir um jeito mais interessante de contá-la. Sei que conhece a melhor maneira... de evitar a chuva de nabos – acrescentou, e algumas pessoas ao redor soltaram risadinhas. Finn, o mestre de Magia da Forma, e a meio-elfa ao seu lado também acharam graça, mas Thalia não; e quando Cyprien, sem saber como agir diante daquilo, finalmente concordou em ajudar com a peça, ela se levantou e se afastou com brusquidão.
-- Façam o que quiserem, da minha parte eu sei que cuidei, e espero que não seja conspurcada. E que seja a última vez – advertiu, com o dedo no ar. – Precisamos de um Mestre de Sagas de verdade. Você me autoriza a buscá-lo, Camdell? Já que sua amiga preferiu viver na Floresta dos Teixos?
-- Sim, Thalia. Pode escrever em meu nome; você sabe as condições – disse Camdell, com um suspiro. – Agradeço muito se conseguir alguém.
-- Oh, de nada, de nada – respondeu ela, já de saída do refeitório. Suas longas vestes deslizaram pelo mosaico do chão, produzindo uma espécie de silvo. Cyprien sentiu sua pele arrepiar, mas, no instante seguinte, a voz de Finn o devolveu à verdadeira dimensão daquilo.
-- Acho que Thalia não volta – disse ele, dirigindo-se a Camdell. – E ela nem tocou no pudim. Pode passá-lo para cá?

Cyprien e Thalia retratados por Angela Takagui

Parte 1

Parte 6

Parte 8

***

Pessoas Queridas, vou me ausentar por cerca de dez dias. Nesse meio-tempo, além de passear aqui pelo Castelo, convido vocês a visitar o blog da Editora Draco e saber um pouco mais sobre o processo de criação do Cyprien e as outras histórias sobre ele já disponíveis. Basta clicar aqui.

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