domingo, 1 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 8)


Guedésio era um velho ranzinza, cuja porta jamais se abria para quem necessitasse de abrigo ou alimento. Declarava, alto e bom som, que os pobres só o eram por preguiça, que as crianças deviam aprender desde o berço o valor de meia moeda e que cada um era o único responsável por sua própria ventura ou desventura. Tinha especial aversão pelos saltimbancos, pois não admitia que a arte pudesse servir para ganhar o pão. No inverno, quando os lagos se cobriam de gelo e todos aproveitavam para calçar patins, o divertimento de Guedésio era levar baldes de água fria até a janela do seu sobrado, de onde os despejava sobre qualquer músico ou acrobata que ousasse fazer de sua porta local de espetáculo.


As coisas iam assim quando, no seu septuagésimo sétimo aniversário -- que coincidia com o solstício de inverno --, três jovens, que ele escorraçara daquele jeito, decidiram dar-lhe uma lição. Os três, cujo delito fora apenas passar sob a janela do velho cantando uma canção élfica, eram na verdade aprendizes de uma maga poderosa, e aproveitaram sua ausência para, com a ajuda de artefatos mágicos, transformar em gelo a casa, os pertences e tudo em que Guedésio tocasse. De uma hora para outra, ele se viu envolto em gelo no lugar de roupas quentinhas, viu gelo onde deviam estar as chamas da lareira e os alimentos da despensa; foi rechaçado por seus sócios e pelos supostos amigos, e nem sequer foi capaz de tomar a sopa distribuída no templo da cidade, pois o simples toque de sua boca a convertia em gelo.
Por fim, desesperado e sem abrigo, e depois de muito vagar nos arredores da cidade, Guedésio encontrou a casa da maga, que o fez passar por vários testes e desafios antes de desfazer o encanto dos aprendizes. Com isso, o velho se tornou um novo homem, mudou seu jeito de pensar e de proceder; a partir de agora, os saltimbancos que cantassem sob a sua janela podiam esperar uma chuva de moedas no chapéu.
-- E, ao longo da peça, todos os símbolos, todos os ensinamentos. Não faltou nada – disse Theoddor, satisfeito. – Claro que ele mesmo não os conhece, foi informado pelos aprendizes, mas conseguiu encaixar tudo na história. Desenhou também os cenários, que serão móveis, com entradas e saídas, mas tudo muito simples. Um bom carpinteiro e um bom pintor terão aquilo pronto em três dias.
-- Então não vão precisar de gruas, nada disso, certo? Acho bom – disse Finn, inclinando a cabeça --, porque não dispomos de todo aquele aparato do testro de Madrath.
-- De fato – disse Theoddor. – Mas acho que Madrath não combina muito com nosso amigo Cyprien... não acha?
Tocou o pulso, aludindo às marcas que ambos tinham chegado a ver na pele do saltimbanco. Finn concordou com um gesto: sabia o que elas eram, e o que, possivelmente, significava alguém como Cyprien ter chegado em Vrindavahn com os restos de tinta no pulso. Um anseio, uma busca, um sonho que não dera certo. Ele tentaria levá-lo adiante, do mesmo jeito, noutra ocasião? Ou simplesmente redesenharia seus planos, como fizera o próprio Theoddor, muitos anos atrás?
-- Seja como for, este ano teremos uma peça interessante, não apenas instrutiva; e, se tudo correr bem, já será no novo anfiteatro. Um feito e tanto – comentou o mestre de Magia da Forma. – O Castelo está se transformando, dia após dia. O que diriam disso os seus antepassados?
-- Não sei se gostariam muito... como também não gostariam de saber que eu, o único herdeiro, não levei a linhagem adiante. Mas não estão aqui para ver. – Fez uma pausa, afugentando da memória os olhos tristes de sua mãe, a dureza das palavras de seu pai. – Pelos anos que me restam, vou seguir em frente com meu plano. E veja só! Não está valendo a pena?
Estendeu os braços na direção do anfiteatro, do qual, duas luas atrás, pouco havia além da estrutura em forma de concha. Agora estava quase terminado, e com tempo de sobra antes da festa de solstício. Claro que estavam sujeitos a imprevistos – uma temporada muito longa de chuvas, por exemplo --, mas seu conhecimento de Ciências da Terra quase permitira a Theoddor afastar essa possibilidade.
Com as bênçãos de Bragi, daria tudo certo.
Mãos às costas, seguido por Finn, que observava tudo à volta com interesse, ele caminhou ao longo das arquibancadas, indo em direção à arena onde montariam o cenário para a peça do solstício. Ali, Ruaridh, o mestre construtor, conferia algumas medidas, feições duras apertadas entre a barba e as sobrancelhas esfiapadas.
-- Mestre Theoddor. – O homem se endireitou ao vê-lo. – Fazendo uma inspeção?
-- De forma alguma. Apenas apreciando o bom trabalho. E estava comentando com Finn – prosseguiu Theoddor – que será muito bom, finalmente, vermos uma peça encenada como deveria ser.
-- Ah... sobre isso. – O artesão hesitou, cautela ou desagrado. – Posso ser bem direto com o senhor?
-- Claro que sim, Ruaridh. O que houve? Precisa de alguma coisa?
-- É, bem, vamos precisar de mais tinta, mas não é disso que se trata. O caso é que – esfregou os braços, pouco à vontade -- o pessoal está meio irritado, porque alguém vem usando as coisas do galpão de trabalho sem seguir as regras. Ferramentas ficam fora dois ou três dias; pregos e lona somem, e ninguém deixa um aviso sobre quem pegou, nem pedido para que reponham. E eu sei que o senhor não vai gostar de ouvir, mas... Tudo indica que quem está fazendo isso é o tal sujeito de Pwilrie.

Imagem: Batalha de bolas de neve retratada em afresco do Castello del Buonconsiglio, em Trento

Parte 1

Parte 7

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