quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 6)



Os aprendizes se entreolharam por um momento antes de assentir. Cyprien repassou algumas explicações sobre o manuseio das bolas coloridas, que todos dominavam em teoria, e passou as próximas duas horas corrigindo os erros práticos. Deu uma demonstração também, embora sem os floreios do dia anterior, pois ali o que interessava não era mostrar o que sabia, e sim fazê-los observar e repetir seus movimentos. As crianças se comportaram como o esperado, errando mais do que acertavam, ficando frustradas e irritadas por causa dos erros e se animando quando percebiam ter feito algum progresso. Cyprien as encorajou, até distribuiu um elogio para cada um – neste a concentração, naquela a firmeza do pulso, na pequena, que nunca reclamava das repetições, a atitude --, mas deixou claro que só melhorariam com muita prática e muito esforço, e tinham que treinar um pouco nas horas vagas, de forma a ter o que mostrar quando ele voltasse a vê-los.
-- Vamos treinar, sim. Treinamos todos os dias – disse o menino de rosto comprido. – Não melhoramos muito porque o mestre que tivemos antes não explicou onde estávamos errando. Só disse para a gente praticar até acertar, e mais nada.
-- Onde ele está agora? – perguntou Cyprien, e balançou a cabeça ao ouvir que não estava mais no Castelo. Melhor assim: faria do seu jeito, que transformara dezenas de crianças em artistas pelo menos razoáveis. Nunca tivera um aprendiz só seu, mas os mestres de Pwilrie sempre o preferiam para ajudar a treinar os mais novos. E, ao contrário do que temera, o fato de esses de agora terem sangue de elfo não foi nenhum empecilho.
Um sino badalou, duas, três, inúmeras vezes, de forma que ninguém deixasse de saber que era meio-dia. Os operários interromperam o trabalho e começaram a se retirar, enquanto a aluna menor de Cyprien o puxava pela mão.
-- Vamos comer! – Suas faces estavam coradas, e ela continuava a saltitar feito um pardalzinho. – Se a gente chegar logo ao refeitório, todo mundo consegue sentar junto!
-- Todos aqui comem no mesmo lugar? – perguntou ele, só para confirmar; não era assim tão estranho, era inclusive a prática nos castelos do Norte, onde senhores e servos comiam juntos no mesmo salão. Esperava encontrar algo parecido no Castelo das Águias, mas o refeitório ao qual os aprendizes o guiaram era, como logo percebeu, mais semelhante àqueles que se encontravam nos templos: em vez de uma mesa grande, com assentos elevados para os castelões, e outras laterais para acomodar os convivas em ordem de importância, aqui havia duas fileiras de mesas paralelas, com bancos onde cabiam quatro pessoas de cada lado – ou cinco, se fossem crianças – e uma pouco maior na lateral. Estivessem num templo e essa mesa pertenceria ao Preste Superior, ao Mestre do Coro e aos demais religiosos graduados; aqui, porém, era o lugar onde se sentavam os mestres da Escola de Magia, todos do mesmo lado, de frente para os aprendizes, artesãos e trabalhadores do Castelo.
Cyprien deu uma olhada discreta enquanto passava por eles, a certa distância, para ocupar uma mesa junto com Pardalzinho e seus colegas. Dois eram elfos: uma mulher carrancuda, que nunca terminava de passar manteiga num pedacinho de pão, e um sujeito de cabelos compridos usando uma tiara de bronze. Esse tinha à frente um prato cheio de verduras, que não estava se animando a comer. Ao lado estava um casal de meio-elfos, entretidos um com o outro e também sem muito apetite, ao que parecia. Faltava Theoddor – mas o primeiro relancear de olhos pelo salão bastou para vê-lo, sentado com um grupo de aprendizes mais velhos, enquanto um rapaz e uma moça se revezavam para declamar poemas em voz alta. Se é que eram poemas. Depois de algum tempo, tornou-se claro, para Cyprien, que se tratava de uma peça de teatro.
E, embora os dois tivessem boas vozes, as falas eram incrivelmente ruins. 
A comida chegou: travessas de verduras, grãos cozidos e carne já fatiada trazidas por duas mulheres. Cyprien se serviu, aceitou uma caneca de cerveja fraca e comeu em silêncio, prestando atenção à peça com as falas forçadas e praticamente sem história. Tratava-se de um mestre – de Magia, ele supôs – cujos aprendizes deviam cuidar da casa na sua ausência, mas que, em lugar de fazer uma festa ou qualquer coisa divertida, preferiam passar o tempo com um jogo de adivinhações. O jogo era pretexto para desfiarem conhecimentos sobre símbolos mágicos e a natureza do inverno. Era tão aborrecido que, a certa altura, o artista não foi capaz de disfarçar o que sentia.
-- Que cara é essa? – indagou Brenan, o menino de rosto comprido. – O pudim até que está gostoso.
-- Está mesmo. Fiz essa cara por causa do ensaio, ali no fundo. Para que estão fazendo aquilo?
-- Para a festa de solstício de inverno. Sempre tem uma peça – explicou o garoto.
-- Sim, vejo que a ideia é ser uma peça, mas parece mais uma aula ou coisa parecida. Se estão representando um grupo de jovens, de aprendizes, por que falam desse jeito? E o público, o que vai achar? Em Pwilrie, se alguém apresentar uma peça assim, pode esperar uma chuva de nabos podres – disse Cyprien, terminando a cerveja. Tinha falado em voz baixa, para ser ouvido apenas por Brenan ou, no máximo, pelas outras crianças na mesa, por isso levou um momento para ligar suas palavras àquilo que se seguiu.
Primeiro, uma espécie de vácuo, um corte brusco em meio à fala de uma das garotas.
E, logo após, a voz da mesma garota, cheia de acusação.

Imagem: Refeitório de um monastério franciscano em Katovice, Polônia (Wikicommons)

Parte 1

Parte 5

Parte 7

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