sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 4


       -- Então, quando pensávamos que seríamos vendidos como escravos ou remaríamos o barco do pirata pelo resto da vida – e que, com o tratamento que nos dariam, nossas vidas seriam bem curtas --, uma coruja branca, enorme, pousou perto de nós na praia. E adivinhem no que ela se transformou, bem diante de nossos olhos! Uma elfa, amigos! Sim! Vocês estão certos em se espantar, pois nós também mal podíamos acreditar naquilo, mas é a verdade, e se não confiam neste velho perguntem a Mestre Thorold! Ele estava junto!
      -- É a mais pura verdade! – afirmou o Conselheiro, arrancando ainda mais exclamações da audiência. Joot lançou a todos um olhar triunfante, depois continuou a narrativa, tendo ao fundo os acordes discretos do alaúde tocado por um aprendiz do Castelo. Não precisava de muita mestria, nem sequer de grandes variações; a música servia apenas para realçar os momentos mais emocionantes da história. E que história! Que narrador! Eu precisava trazer Joot mais vezes ao Castelo para contar aquelas sagas das Terras Geladas!
      -- Ele é bom, hem? – soprou Urien, ao meu lado. – Melhor ainda que o careca, com toda a sua experiência.
      -- Ah, mas Mestre Tomas contou uma história engraçada dos seus tempos de saltimbanco. Não há como comparar com uma de piratas e naufrágios – ponderei. – Ele também foi ótimo. E ajudou muito, aceitando o convite para falar logo depois de nós e de Freydis.
      -- É mesmo. O tagarela do Arnak já disse que quer contar uma história, e olhe os filhos do Naheen persuadindo a mãe a fazer o mesmo. Sua Noite de Sagas é um sucesso – declarou o Mestre de Música, após o que fez uma pausa, olhando-me com atenção. – Mas acho que você está inquieta com alguma coisa.
      -- Não estou inquieta, só... pensando em como resolver um impasse – respondi, e me voltei para as pessoas no salão. Depois de duas horas, durante as quais fora servido um excelente jantar, todos pareciam relaxados e à vontade. Muitos haviam mudado de lugar e iniciado conversas animadas, que, no entanto, cessavam quase completamente durante as histórias. Até as crianças paravam para ouvir, voltando a brincar e a explorar nos intervalos, quando os adultos retomavam a conversa e os empregados passavam servindo mais bebida. Comida não era mais necessária: estavam todos satisfeitos, as últimas bandejas de doces e frutas quase intocadas nas mesas. Isso queria dizer que a cozinha fizera um bom trabalho, Netta podia se desobrigar... Mas por que ela não tinha vindo até o salão?
       Meus olhos se detiveram sobre uma das mesas mais afastadas. Ali estavam o marido dela, Nils, e o filho de ambos, Holger, alto como o pai e com a mesma tendência a ficar com o rosto vermelho. Netta me contara que ele tinha sido um adolescente rebelde, mas isso mudou com a chegada de Camdell, que na primeira conversa percebeu o pendor de Holger para os estudos e o encaminhou a um mestre em Vrindavahn. Três anos depois, ele entrou como aprendiz para o comércio, e agora trabalhava numa das maiores casas mercantis na cidade. Os pais o visitavam com frequência, mas ele raramente vinha ao Castelo, e nunca havíamos trocado mais que algumas palavras. Era uma surpresa vê-lo ali, na minha comemoração de aniversário. Ou talvez ele tivesse vindo apenas por gostar de ouvir histórias. De qualquer forma, se alguém sabia de Netta, essas pessoas eram ele e Nils, por isso decidi falar com eles e pedir que fossem chamá-la. Só precisava esperar que Joot concluísse sua narrativa.
        As notas do alaúde soaram mais agudas, como se alarmadas, quando o pescador descreveu o conflito entre Thorold e os tripulantes do seu barco. As pessoas se inclinaram para a frente, bebendo cada palavra, e foi quando percebi um leve rumor de conversa na mesa mais próxima à nossa.
        -- Você tem que parar com isso. – A voz abafada de Freydis, dirigindo-se a um Andi silencioso e acabrunhado. – Vamos treinar nossa vontade como magos, aprender a mexer com as forças da natureza e até com a mente das pessoas, e você não consegue contar uma história? Como vai avançar nos estudos desse jeito?
       -- É mesmo, Andi – disse Orm. – Ainda por cima, hoje é uma noite de festa, não uma competição. Ninguém vai exigir que você seja perfeito.
      -- Silêncio! – Thalia se voltou para eles com o cenho franzido e o dedo sobre os lábios. Os três se encolheram, ressabiados, e senti que devia ir até eles antes de mais nada.
       Meus aprendizes precisavam de mim.
       Joot arrematou sua história com uma frase de efeito e se inclinou para os aplausos. Finn esperou alguns instantes para deixar que ele os saboreasse e anunciou um novo intervalo, que um grupo de alunos mais velhos se encarregou de preencher com música. Várias pessoas se levantaram, e eu me aproximei da mesa onde estavam as crianças.
       -- Discutindo de novo? – perguntei, em tom brincalhão. – E pelo motivo de sempre?
       -- Mestra Anna, Andi é impossível! – declarou Freydis, abanando a cabeça. – Hoje, mais cedo, ele havia prometido que contaria uma história. Até treinou depois do almoço, e eu achei muito bom. Mas agora...
       Encolheu os ombros, olhando para o amigo como se esperasse uma explicação. Andi também se encolheu, sustentando aquele silêncio cada vez mais incômodo. Por fim, murmurou:
        -- É que não fico à vontade com tanta gente. Minha língua tropeça. Se aqui estivesse só o pessoal do Castelo, ou se as histórias de Mestre Tomas e Joot não fossem tão boas, eu... talvez...
        -- Deixe de bobagem! Você vai se sair tão bem quanto eles – Orm insistiu.
        -- Eu também acho, Andi. Acho que podia tentar quebrar essa barreira. Mas não vou forçar – acrescentei, fazendo os outros dois fecharem a boca. – Espere a próxima história, que deve ser a da mãe de Hakim... Perceba que cada narrador tem seu próprio jeito, que nada tem que ser executado à perfeição... E logo mais me diga – concluí, olhando para o lugar onde tinham estado Nils e seu filho. Eu não os vira sair, nem sabia onde tinham ido, embora fizesse uma boa ideia.
        E assim que as crianças assentiram, uma canção se iniciando para indicar que tinha algum tempo até a narrativa de Amina, rumei com passos apressados em direção à cozinha.

Continua...

Quer saber que história foi essa contada pelo Joot? Clique aqui.

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 5

quarta-feira, 28 de setembro de 2016


Pessoas Queridas,

Interrompemos nossa série para avisar que saiu uma entrevista muito legal com a Anny Lucard sobre meu trabalho literário, planos para o futuro, organização de coletâneas... Enfim, o que faço e pretendo ainda fazer no âmbito da Literatura Fantástica.

Para quem quiser, o link está aqui.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 3




      -- Nervosa? – perguntou Urien, com o jeito malicioso de sempre, mas querendo demonstrar que me apoiava. – Não fique. Todo mundo vai adorar a noite de hoje.
      -- Tomara. Já era para mais gente haver chegado – respondi, tamborilando com os dedos na mesa. – Quer dizer, os aprendizes, quase todos, estão aqui, mas eu queria que os outros também viessem. Pelo menos parte deles.
      -- Os outros, em grande parte, são artesãos e empregados do Castelo e estavam ocupados até meia hora atrás. Não vão se apresentar no salão com roupas de trabalho. Dê tempo a eles para se lavarem e vestirem alguma coisa melhor – disse o professor de Música.
      Assenti, pois suas palavras faziam sentido, e percorri mais uma vez o salão com os olhos. Estava decorado à moda do inverno, com pinhas e guirlandas de folhas, além de estandartes que representavam o brasão de armas de Vrindavahn, o da família de Theoddor e as sete cores da Escola de Artes Mágicas. A disposição das mesas fora mudada de forma que todos os olhares pudessem convergir para um espaço no centro, e ali havia um tablado de madeira trazido dos galpões da Ala Violeta. Era onde as histórias seriam contadas naquela noite. E, se tudo corresse bem, seria ocupado por várias pessoas além de mim.
      -- Duvido que muita gente tenha coragem de narrar alguma coisa. – Às vezes o mestre de Música também parecia ler meus pensamentos. – Você precisa ter em mente que os empregados do Castelo são pessoas humildes. Ficam envergonhados diante de nós. E os aprendizes, de quem talvez você consiga bons resultados nas aulas, podem não ser tão desembaraçados na frente de outros mestres e de colegas mais adiantados. Quem talvez se anime é gente como aquele velhote ali – ergueu a voz --, que está entrando em cena, com seu cabelo ruivo puxado por cima da careca... Veja só!
     -- O que é melhor, ser meio careca ou ter uma barba de bode como a sua? – Tomas, o mestre de fantoches da Ala Violeta, devolveu o insulto bem-humorado e avançou em meio às risadas dos aprendizes. – E ainda me chama de velhote, como se fosse um jovenzinho!
      -- Pois você vai ver que o barba de bode tem mais fôlego que todos esses moleques juntos! – riu Urien, enquanto apertavam as mãos. Por minha vez, abracei Flora, nora de Tomas e uma de minhas melhores amigas em Vrindavahn, e seu marido, Aryan, um rapaz arruivado, de temperamento tranquilo. Estava feliz por eles terem vindo, e fiquei mais ainda quando vi outros artistas da Ala Violeta entrando no salão e se dirigindo a Freydis, que estava junto à entrada servindo de mestra de cerimônias.
      -- Por aqui, podem se acomodar. Não há lugares marcados – disse ela, mas, como era de se esperar, eles se sentaram todos juntos numa mesa ainda vazia. Ida, a postos, ofereceu-lhes pão e cerveja aquecida, fazendo-me pensar que talvez fosse preciso dar um pulo à cozinha para trazer Netta e Lori. Não agora, é claro, pois o jantar seria servido antes de começarem as sagas, e eu tinha certeza de que Netta não deixaria o comando sem ter a certeza de que tudo estava correndo bem. Mas, depois disso, alguma coisa me levava a fazer questão de que ela estivesse ali conosco.
      -- Mãezinha! – A voz de Freydis, evocando o modo de falar do Oeste, me despertou daquela cisma. Seus pais, Thorold e Tatyana, acabavam de entrar no salão, um homenzarrão de barba loura de mãos dadas com uma mulher baixinha. Atrás deles vinham os imprescindíveis Bran e Joot. E quem era o segundo grupo, pelo menos dez pessoas lideradas pelo que parecia um anão encapuzado?
      -- Salve, salve! – O capuz foi retirado, deixando ver não um anão, mas o rosto sorridente e cheio de rugas de Mestre Angus, o comerciante que partilhara nossa aventura na Ilha dos Ossos. – Então este é o famoso Castelo das Águias! Pensei que minha vida chegaria ao fim sem ter estado aqui!
      -- Todos os cidadãos de Vrindavahn podem visitar o Castelo, esse é um acordo firmado entre a Escola de Artes Mágicas e o Conselho – disse Arnak, atrás dele. – Mas uma noite como esta não acontece sempre, não é mesmo, Anna? Obrigado pelo convite!
      -- Não há de quê – respondi, um pouco aturdida. Não fazia ideia de quem havia convidado o Conselheiro e sua família, inclusive as duas filhas pequenas, que olhavam maravilhadas para as paredes do salão. Dentro de alguns instantes começariam a explorá-lo. E não estariam sozinhas, pois alguns artesãos e – finalmente – quatro ou cinco empregados do Castelo estavam chegando acompanhados das famílias, ao passo que Naheen, nosso mestre de Ciências do Céu, apareceu todo encapotado, vindo da cidade onde fora buscar a esposa, os filhos e dois sobrinhos.
      -- Anna, minha querida, muito obrigada por nos convidar. Não fizemos nossa reunião habitual na noite do crescente, porque choveu muito, o jardim ficou encharcado e desconfortável. Mas esta é uma ótima oportunidade para estarmos juntos – disse Amina, mulher de Naheen, de rosto suave e cabelos sempre envoltos por um lenço de seda. Suas filhas adultas e um dos sobrinhos, que era casado com a mais velha, se sentaram com a família de Tomas, enquanto Hakim, o filho mais novo, se misturava aos aprendizes junto com o outro primo. Dali também era capaz de sair alguma história, acompanhada ao fundo por alaúde ou até cantada em tom dolente como era comum no Leste de Athelgard.
      -- Bom, se você estava com medo de as pessoas não virem, acho que já pode relaxar – disse Urien, enquanto mais e mais lugares eram ocupados. – Eu não sabia que tinha convidado toda essa gente de fora, mas...
      -- Não convidei! Foi coisa dos meninos. – Balancei a cabeça, cada vez mais incrédula ao presenciar a entrada do Preste Drusius, líder do Conselho de Vrindavahn, e mais três religiosos do templo de Bragi. – E isso deve ter sido coisa do Padraig. Ah, não falei? A mãe dele veio junto!
      -- Isso quer dizer que ela fechou sua estalagem por uma noite. E A Espada e o Lírio não fecha nunca! – declarou Urien. -- Viu só o prestígio que você tem?
       A essa altura, eu só podia concordar, porque havia mais gente no salão do que eu tinha previsto. Algumas pessoas seriam de se esperar, pois eram ligadas aos mestres – a família de Naheen, a esposa de Algias, o namorado de Rydel, que tinha uma oficina de marchetaria no bairro élfico --, mas eu não fazia ideia do porquê de terem chamado certas outras. O que os Prestes, por exemplo, estavam fazendo ali? E o Conselheiro Arnak, e Mestre Angus?
      -- Os Prestes não fomos nós que chamamos. É que Freydis comentou sobre a noite de hoje com o Padraig e contou que ia convidar os pais. Com isso, ele decidiu chamar também a mãe dele, e ela achou que era uma espécie de festa oficial do Castelo, com as pessoas importantes – explicou Orm, que acabara de acomodar numa mesa não apenas o avô, Comandante Owen, mas também a avó, os pais e dois primos. – E, para ela, as pessoas mais importantes do mundo são os Prestes.
      -- Pelo menos só chamaram os Conselheiros simpáticos. Não queria olhar para a cara azeda daquele Colum – resmungou Urien, e em seguida revirou os olhos. – E, por falar em azedume, prepare-se! Aí vem seu marido, com aquele belo sorriso que Deus lhe deu.
      -- Mas ele está sorrindo mesmo – disse eu, perguntando-me até que ponto isso também era estranho. Kieran já havia se posicionado a favor da noite de sagas, mas eu achava que não iria gostar de ver o salão tão cheio e imerso em balbúrdia. Aquilo era prenúncio de resmungos e cara fechada. Em vez disso, no entanto, ele estava andando entre as mesas, cumprimentando os Conselheiros e outras pessoas da cidade. Parou até para falar com alguns aprendizes antes de vir para a mesa onde estava a maior parte dos mestres do Castelo.
      -- Estamos lotados – disse, sentando-se à minha direita e se servindo da cerveja que Ida trouxera em uma jarra. – Se isso aqui fosse uma taverna, ficaríamos ricos.
      -- Mas o que foi que aconteceu? Por que tanta gente de Vrindavahn? – sussurrei, para que só os mais próximos ouvissem. -- Isso era para ser entre nós, com uns poucos convidados de fora. Foi o que eu disse a Camdell, quando lhe falei sobre os meus planos.
      -- Não se preocupe comigo, Anna – sorriu o Mentor. Ele chegara pouco antes dos Prestes e se sentara duas cadeiras à minha esquerda, entre Lara e Thalia, que ostentavam o mesmo ar tranquilo. Franzi a testa, sentindo uma espécie de desconfiança em relação a tudo aquilo, e foi quando Finn deu três pancadas fortes em sua taça.
      -- Caros amigos e aprendizes, peço sua atenção! – A voz se sobrepôs ao soar do bronze. – É com prazer que os recebemos aqui no Castelo das Águias. A ideia do encontro foi da Mestra Anna de Bryke, a qual, como muitos já sabem, fará vinte e um anos dentro de um quarto de lua. Ela não mencionou esse fato ao sugerir uma noite de sagas, mas nós pensamos: que melhor maneira de comemorar esse aniversário?
      -- Ah, então era isso? – exclamei, sentindo minhas faces esquentarem. Urien, à minha esquerda, soltou uma risadinha, mas Kieran se limitou a afagar minha mão, com uma expressão que não deixava dúvidas sobre ele estar a par daquela trama. As pessoas no salão também me olhavam com ar cúmplice, e eu não tive o que fazer a não ser agradecer a todos. Ainda meio envergonhada, mas feliz. E envaidecida, embora de um jeito bom. O que mais poderia sentir diante de tanto carinho?
      -- Então, amigos, vamos abrir esta noite com um brinde a Anna de Bryke. – Finn ergueu a taça, e os convidados o imitaram. – Estamos felizes por ela estar conosco, por ter retornado sã e salva de tantas aventuras temerárias...
      -- Foi uma só – murmurei, mas ele não ouviu.
      -- ... e por trazer tantas histórias, tanta alegria, tanta vida ao nosso Castelo. Um viva a Anna de Bryke, e que comece o jantar!
      -- VIVA! – exclamaram todos, e o coro desembocou em risadas alegres. Sob o comando de Ida, as jarras e travessas começaram a circular, e assim teve início o que ficaria conhecido como a Grande Noite das Sagas.
      E muito haveria de acontecer antes que terminasse.

Continua...

Parte 1

Parte 2

Parte 4

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 2


     -- Deixe eu ver se entendi, Mestra Anna – disse Andi, com a testa franzida. -- É para todo mundo no Castelo? Todos mesmo?
     -- Todo mundo – confirmei. – Mestres e aprendizes da Escola, os artistas e artesãos que vêm trabalhar na Ala Violeta e os empregados, residentes ou não. É para toda a nossa comunidade, como se fôssemos...
     -- Uma tribo – completou Freydis, olhando-me com ar cúmplice.
     Assenti, feliz por ter alguém que me entendia sem lançar mão de algum encanto de Magia do Pensamento. Os aprendizes mais velhos faziam isso às vezes, comigo, com os mestres de Ciências do Céu e da Terra e todas as demais pessoas da Escola que não possuíssem o Dom. Não era por mal, apenas uma forma de praticar o que sabiam e testar a si mesmos. Ainda assim, eu tinha dito a eles que não gostava daquilo, e Kieran transformou minha queixa numa proibição, de forma que, agora, era muito raro alguém se arriscar a ler a mente da Mestra de Sagas.
     Freydis não tinha como estar nesse caso. Ela mal chegara ao Segundo Círculo do aprendizado e nem sequer nascera com o Dom, embora Finn e Kieran tivessem poucas dúvidas de que iria desenvolvê-lo. Sua percepção a meu respeito vinha da observação e da empatia, pois tínhamos muito em comum, apesar das diferenças de posição e de idade. E, apesar de ter dois grandes amigos com quem contar em todas as ocasiões, havia alguns segredos que ela preferia partilhar apenas comigo.
     Os meninos eram diferentes, embora também adoráveis, cada um a seu modo. Orm era corajoso e um pouco bravateiro, assim como Freydis, porém mais prático e tranquilo do que ela. Já Andi, o meio-humano, era talentoso e criativo, mas tinha um temperamento hesitante e costumava imaginar que tudo acabaria em catástrofe. Os mestres do Primeiro Círculo tinham um cuidado especial ao falar com ele, para não intimidá-lo, e eu tinha pedido o mesmo a Kieran. Ele prometeu que teria cuidado, ao mesmo tempo afirmando que o menino não ficaria muito mais tempo no Castelo das Águias. Com tanta imaginação, tanto jeito para a música e a poesia, era provável que logo regressasse a Kalket, sua terra natal, e entrasse para uma das escolas bárdicas – de onde, aliás, Andi jamais dissera por que tinha saído.
     Se eu pudesse fazê-lo contar essa história, seria uma vitória para nós dois.
    -- Vai ser uma noite especial, mas preciso de ajuda, tanto para convidar as pessoas quanto para convencê-las a participar do jeito que estou pensando – disse eu para os três, mas principalmente para Andi. – Claro que vou contar histórias, Urien também, e vamos ter muita música feita por ele e os aprendizes, mas em dado momento quero ouvir algumas contadas pelos convidados. Vocês poderiam começar, pois estão acostumados a fazer isso nos nossos encontros.
     -- Claro! Vou contar a história da Menina Foca – prometeu Freydis, mas em seguida franziu a testa. – Ou uma diferente seria melhor?
     -- Podia contar alguma história das Terras Geladas, da família do seu pai. A de sua avó, com o unicórnio da neve, seria perfeita – disse Orm.
     -- Hum, eu sei como é essa história, mas não me lembro dos detalhes. Vou perguntar ao paizinho. Aliás – Freydis voltou para mim seus olhos escuros, cheios de expectativa --, sei que é para as pessoas do Castelo, mas será que eu poderia chamar meus pais, e talvez o tio Joot? Eles adoram ouvir histórias. Podem até se animar a contar as deles, como você quer.
     -- Se eles puderem vir, quero chamar minha família também. Pelo menos meu avô – disse Orm.
     -- Hum... Bom, está certo. O Comandante Owen pode vir, e seus pais também, Freydis – disse eu, sabendo que isso significava que eles trariam os agregados: Joot, o velho pescador das Terras Geladas, e Bran, um jovem piloto que se tornara uma espécie de filho adotivo. –- Mas vamos evitar trazer mais gente de fora, pelo menos desta primeira vez. Se tudo der certo e, claro, se o Mentor concordar, poderemos ter de vez em quando uma Noite de Sagas com mais convidados. Mas, por agora, bastam os que são ligados ao Castelo.
     -- Certo! Pode contar com a gente – disse Freydis, animada. – Eu vou falar com os outros aprendizes. Orm pode falar com os empregados, todos gostam muito dele, principalmente o pessoal da cozinha. E Andi, com os mestres e ajudantes da Ala Violeta.
     -- Sim, senhora, minha Comandante! – exclamou Orm, o que lhe valeu um belo soco no ombro.
     -- E quero ouvir uma história sua, Andi. Você é um dos meus melhores aprendizes – falei, prestando atenção à reação do menino. – Gostaria que incentivasse os demais.
     -- Ah... Eu, bom... Olhe, eu posso tocar – disse ele, com as faces levemente vermelhas. – Posso acompanhar qualquer pessoa que conte histórias. Mas na frente de tanta gente eu... Eu não sei se vou ter coragem.
     -- Bom, eu acho que você consegue. Mas não quero forçar – assegurei, antes que ele se fechasse ainda mais. – Pense nisso com carinho. Nesse meio-tempo, ajude os dois a fazer os convites. Para daqui a quatro noites, lembrem-se. E podem dizer que vai ter um jantar muito bom com aquela cerveja reservada para os mestres. Isso vai ajudar a convencer algumas pessoas.
     -- Vai mesmo! Pode deixar – piscou Orm, e nos despedimos naquele clima cheio de boa-vontade e otimismo.
      E – talvez por uma bênção especial do Grande Espírito – a acolhida não foi diferente, quando conversei com o único outro habitante da Ala Azul.
     Muitas pessoas achavam que vivíamos isolados, e talvez essa tivesse sido mesmo uma das razões para Kieran escolher seus aposentos quando chegou ao Castelo das Águias. Julgando por mim, no entanto, eu achava provável que a Ala Azul também o houvesse conquistado. Era a mais antiga, toda de pedra, ao estilo dos homens das Terras Férteis; tinha três torres, uma das quais tinha servido de habitação aos senhores de Vrindavahn até que Theoddor, o último descendente, optasse por um cômodo térreo na Ala Rosada, a mais próxima da floresta que ele tanto amava. Rydel, que o sucedera como professor de Ciências da Terra, vivia lá agora, e eu fora sua vizinha de cima por algumas luas até me mudar para a Ala Azul com o mago que se tornaria meu marido. Nem discutimos quanto a esse ponto, porque eu também adorava nossa torre, com janelas que descortinavam as mais belas vistas de Vrindavahn, móveis antigos e elegantes e os cômodos aquecidos por lareiras e tapeçarias. Ali, só ali, a pele de urso que meus parentes me deram de presente de casamento não parecia deslocada – e ali, mais do que qualquer outro lugar, o homem que lia recostado nos travesseiros me parecia aquele com quem eu queria passar o resto da vida.
     -- Você aqui, a essa hora? – perguntei, pois de fato não esperava encontrá-lo. – Achei que você e Finn estariam fora de alcance o dia todo.
     -- Não. O trabalho com o Terceiro Círculo já terminou, felizmente. E agora é você que pode se pôr ao meu alcance.
     Sorriu, aquele sorrisinho torto que dizia tanto em silêncio, e deixou o livro de lado, bem no momento em que eu deslizava para junto dele e me aninhava em seus braços.
     -- Sua trança está meio desfeita. Deixe-me arrumar – disse Kieran; e, claro, o que fez foi acabar de soltá-la. – Que cabelo macio...! Quanto tempo eu tenho com você antes que fuja para planejar sua Grande Noite das Sagas?
     -- Ah, já está sabendo? Quem lhe disse? – perguntei, com uma ponta de apreensão. Se houvesse sido Urien, havia um risco de ele ter falado além do que deveria. Kieran, porém, disse que soubera através de Camdell, a quem eu e o mestre de Música havíamos consultado, logo de manhã, para saber se podíamos prosseguir com os nossos planos. Claro que o Mentor havia adorado a ideia.
     -- Eu também acho que vai ser bom – disse meu marido, ainda com o nariz afundado no meu cabelo. – Uma noite com música e ouvindo histórias... Principalmente se forem as suas.
    -- A ideia é que não sejam só as minhas. Mas, claro, vou contar algumas também, possivelmente abrir a noite. Você me acompanha com a harpa, não é? Pelo menos em uma ou duas, para revezar com o Urien?
     -- Claro que sim. – Kieran pegou minha mão esquerda, afagou dedo por dedo, com ar pensativo. – Estou curioso com as histórias que vai escolher.
     -- Alguma coisa sobre a viagem à Ilha dos Ossos, certamente. E uma que aprendi na Floresta do Sol. Precisa saber com antecedência? Para ensaiar um pouco, talvez?
     -- Ah, não. Pode me surpreender – disse ele, e se voltou para mim, com os olhos brilhando e um sorriso ainda mais eloquente. – Na verdade, acho que esse pode ser o melhor momento da noite.


***

Continua....

Parte 1

Parte 3

domingo, 11 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 1


Pessoas Queridas,

Hoje começo a postar uma novela para os leitores do blog e, simultaneamente, no Wattpad. Ela se passa no inverno seguinte àquele em que Anna e Kieran regressaram da Ilha dos Ossos; estão de volta ao Castelo das Águias, convivendo com mestres, aprendizes e amigos da cidade de Vrindavahn. Sigam os links para conhecer (ou lembrar de) algumas dessas pessoas e situações.

Espero que curtam, comentem e chamem os amigos! :)


       -- Acho que o Nils nunca soube, mas fiquei de olho nele desde que entrou para o serviço do Castelo. Ele já era cocheiro antes, mas trabalhava para um mercador e viajava muito, por isso comia mal e estava sempre com dor de barriga. Ela não funcionava, sabe? E ele às vezes parava o que estava fazendo e ficava ali, sem soltar um ai, mas com aquela cara de sofrimento, até que a dor melhorasse e ele pudesse voltar ao trabalho. Acho que gostei dele por isso: porque fazia o que tinha fazer. Não se queixava nem se aproveitava da bondade do Senhor Theoddor para ficar encostado... Mas, Mestra Anna, o que está fazendo? O creme vai dentro da massa e não por cima, lembra?
       Pisquei, olhando para a bandeja à minha frente, e assenti. Netta balançou a cabeça, como se dissesse que eu não tinha jeito, e foi mexer a sopa enquanto eu consertava os doces de amêndoa. Não falou mais, talvez porque soubesse que sua história tinha me envolvido e me levado a cometer o erro, e eu contive minha curiosidade pela mesma razão. Bom, pelo menos até que os doces estivessem prontos.
       -- Continue, Netta. – Levantei-me, segurando o tabuleiro. – Como foi que você chamou a atenção de Nils? E foi você que o ajudou com aquele problema?
       -- Ah, as coisas foram acontecendo – disse ela, dando de ombros. Deixou o caldeirão em fogo baixo e me seguiu até perto do forno, onde dançavam chamas alegres e cujo calor fazia esquecer o inverno úmido e sombrio lá fora.
       -- Cuidado para não se queimar – recomendou Netta. – Agora é deixá-los pouco menos de uma hora. Vou manter o fogo alto, e quando vocês acabarem de jantar os doces estarão prontos.
       -- Não se esqueça de separar alguns para o Kieran – pedi. – Ele não vai comer até o meio-dia de amanhã.
       -- Eu sei. Ele, Mestre Finn e Mestra Thalia. Ah, que tristeza eu sentiria se fosse casada com um desses magos. Imagine, passar o dia cozinhando para depois não poder alimentar meu marido!
       -- Mas pode alimentar o seu – insinuei, querendo trazer a história de volta. – Aposto que Nils melhorou comendo o que você preparava. Acertei?
       -- Deve ter sido. Ah, mas já faz tanto tempo... E veja só, a sopa está borbulhando! Lori, o queijo! – gritou ela para sua ajudante, que estava no extremo oposto da cozinha.
       -- Num instante! – veio a resposta.
       -- Ande rápido, que os meninos devem estar morrendo de fome! – disse Netta, voltando a mexer a sopa. Com a destreza conseguida em anos de prática, ela passou várias conchadas para um recipiente menor, depois fez um sinal para dois empregados do Castelo, que tinham chegado momentos antes e se achavam a postos. Eles ergueram o pesado caldeirão de ferro, passaram por Lori, que atirou lá dentro várias mancheias de queijo em fatias, e seguiram para o refeitório, onde foram recebidos com vivas pelos aprendizes agasalhados até as orelhas.
       -- Vá jantar, Mestra Anna. Os outros mestres já devem estar esperando – disse Netta, que agora se ocupava de uma enorme panela contendo frango cozido. – Ida já está quase saindo daqui com a sopa.
       -- Vou, sim, mas outro dia quero acabar de ouvir a história – repliquei. Ela fungou, de costas para mim, e não disse nada. Acenei para Lori, que ria abafadamente no seu canto, e para Ida, a moça que esperava para servir nosso jantar, e deixei a cozinha, seguindo o corredor que conduzia à sala de reuniões.
       O aposento amplo, mobiliado com elegância sóbria, onde discutíamos questões da Escola e dos alunos era também onde costumávamos jantar. Quase sempre fazíamos as duas coisas ao mesmo tempo. Hoje, porém, a conversa prometia ser mais amena, pois três dos sete mestres de Magia estavam ausentes, envolvidos com a orientação dos aprendizes do Terceiro Círculo. E como quase sempre acontecia nessas ocasiões, Urien se achava impaciente à minha espera.
       -- Hoje o ranzinza do seu marido está ocupado – disse ele, de forma que só eu o escutasse. – Vamos aproveitar o tempo?
       -- Podemos. Mas Kieran não é ranzinza.
       -- Como não? Ele tem muitas qualidades, admito, mas é também um rabugento de primeira – declarou Urien, e então ergueu a voz. – Ah, lá vem a sopa! Nada melhor numa noite fria como esta!
       -- Nem me diga – suspirou Rydel. – Eu tinha uma festa para ir em Vrindavahn, mas Benios desistiu. Não quis andar pela cidade debaixo da chuva, mesmo não estando muito forte. E não quis vir passar a noite comigo. Acho que o frio desencoraja as pessoas.
       -- Isso aqui, nas Terras Férteis. No Norte há grandes festas e encontros que acontecem no inverno – tornou Urien, servindo-se da sopa onde boiavam fios de queijo derretido. – Festas das boas, com salões decorados, muita bebida, malabaristas, bardos...
       -- É que as pessoas ficam mais próximas – comentei. – A nossa tribo, por exemplo, se reúne muito mais no inverno, porque é difícil achar caça e fazer qualquer coisa ao ar livre. Então visitamos uns aos outros, sentamos ao redor do fogo e comemos carne seca e frutinhas que guardamos no outono. E, nessa mesma época, os homens fazem as festas de que Urien falou, em suas cidades e castelos.
      -- Então é um hábito do Norte – concluiu Rydel.
      -- Sim, mas eu diria que é mais um hábito do inverno -- ponderei. -- Todas as tradições falam dessa estação como propícia ao recolhimento, mas também a esse retorno ao seio da família e ao convívio com os amigos. E isso em todas as regiões de Athelgard. Só que o frio aqui no Sul não é muito grande e não interrompe as atividades de ninguém. As pessoas se sentem obrigadas a fazer o que fazem sempre. Mesmo que sua vontade fosse se aconchegar umas às outras e ficar contando histórias.
       -- É, acho que tem razão. Que pena, poderíamos cultivar esse hábito aqui em Vrindavahn – disse o elfo.
       Assenti, e a conversa tomou outros rumos, mas aquelas palavras ficaram dando voltas em meus pensamentos. Logo acharam um canto onde germinar, embora ainda em silêncio, como sementes no solo de inverno. Aquele frio úmido, que incomodava tanto as pessoas das Terras Férteis, que enfarruscava os ânimos no Castelo das Águias e fazia da alegre Vrindavahn uma cidade parada, quase monótona... Todos o enfrentariam melhor se ficassem mais próximos, como se deve estar nas noites frias. E o que eu, a Mestra de Sagas, podia fazer a respeito?
       Não era preciso pensar muito para achar a resposta.
       O jantar seguiu sem novidades, culminando nos deliciosos doces de amêndoa que Netta me ensinara a fazer. Lara se retirou assim que terminamos, depois foi a vez do Mentor Camdell, e logo todos os professores haviam se despedido. Acompanhei o mestre de Música até a Ala Verde, como havíamos combinado, mas, quando chegamos à sua sala de trabalho, foi a minha vez de surpreender Urien com uma proposta em voz baixa.
       -- Antes de começarmos, quero falar sobre uma ideia que tive. Não é uma coisa muito grande, nem difícil, mas não posso fazer sozinha. Você me ajuda?
       -- Só um momento. – Ele pegou uma garrafa que estava atrás de um estojo de alaúde, aparentemente escondida, e se serviu de uma taça de vinho antes de se sentar à minha frente. – Pronto, sou todo ouvidos. E mesmo antes que fale, já sabe, pode contar com minha ajuda. A não ser que seja alguma coisa muito perigosa, como tirar um urso da toca.
       -- Isso eu já fiz e não vou fazer de novo – repliquei, e me inclinei para diante. – Escute com atenção, e depois me diga... O que acha de promovermos uma grande noite de sagas?

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(Continua...)

Parte 2

Imagem: Natureza morta na cozinha, óleo sobre tela de Floris Gerritsz van Schooten. (Haarlem, ca. 1590 - 1655)