segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 3)



À sua esquerda, um grupo de operários passou carregando tábuas, e mais à frente se erguia a pilha de tijolos que a olaria entregara na véspera. Somando tudo, estavam indo bem, até adiantados na construção do anfiteatro, onde mestres e aprendizes da Escola de Artes Mágicas passariam a se reunir para festas e cerimônias. Outro grupo se empenhava em ampliar a ala destinada a hospedar os aprendizes, providência urgente em vista das cartas que não paravam de chegar. Vinham de todas as cidades e muitas aldeias das Terras Férteis: cartas de magos dando notícias de jovens promissores, a quem por alguma razão não podiam ensinar; cartas de conselheiros, de letrados e até mesmo de Prestes esclarecidos, com teor semelhante, mas escritas num tom cauteloso, indagando o que fazer com aqueles rapazes e moças cuja simples presença bastava para que a louça despencasse das prateleiras. Por fim, havia cartas enviadas pelos próprios jovens, uns orgulhosos, outros aflitos, muitos simplesmente esperançosos, pedindo ajuda para lidar com o Dom recém-descoberto da Magia ou manifestando o desejo de aprendê-la, ainda que todos ao seu redor afirmassem que seria impossível. Essas eram as preferidas de Theoddor, e ele prometera a si mesmo não medir esforços para receber e instruir os postulantes. Nem todos se tornariam magos – isso podia acontecer até mesmo com os que tinham o Dom inato --, mas em muitos a Magia iria florescer, alimentada pelo sonho e pela Arte. Talvez até nos três espertinhos que tinham se juntado, julgando-se escondidos por trás da pilha de tijolos, para jogar conversa fora em vez de praticar como deveriam.
Eles estavam no castelo havia mais de um ano, cada qual com seu talento, com seu sonho, com sua dificuldade. Donovan, o rapaz de nariz arrebitado, não conseguia cantar no tom. Elina de Herrien tinha dificuldade para se concentrar, e Marla de Kalket era tão desajeitada que tudo lhe caía das mãos, mas, desde que insistissem e fizessem os exercícios, todos iriam melhorar. Todos estavam ali por um propósito, assim como a Escola. E, sendo elfos e meio-elfos, e ainda por cima tão jovens, tinham todo o tempo do mundo para aprender.
Mesmo assim, era preciso que o usassem melhor.
-- Muito bem... Pegos em flagrante! – exclamou Theoddor, surgindo por detrás dos tijolos; os três se encolheram, e o mestre não disfarçou um sorriso. – Ou muito me engano ou há uma aula sendo dada neste momento, na qual todos vocês deveriam estar. Não é verdade?
-- Hum, não tenho certeza. – Donovan fez cara de inocente, olhou para a amiga mais próxima. – Tínhamos algo marcado para hoje?
-- Não estou bem lembrada – disse a moça de Kalket, entrando no jogo. – Deixe-me ver...
-- Ah, parem com isso! Tem uma aula com Mestra Thalia – disse a outra, e olhou para Theoddor, com ar constrangido. – Desculpe, Mestre. Nenhum de nós estava... inspirado para ouvir falar de símbolos e correspondências.
-- Oh! E o aprendizado depende apenas de inspiração? – Theoddor cruzou os braços, forjou uma expressão severa, que levaram mais ou menos a sério. – Lembrem-se, vocês três: a intenção está por trás de todo ato de Magia, e ela começa por querer fazer alguma coisa. Mesmo quando tudo que apetece é estar com os amigos, jogando conversa fora.
-- Mestre... Não era isso que estávamos fazendo. Não fomos à aula, é verdade, mas tínhamos que acertar detalhes sobre a peça do solstício de inverno – disse Elina de Herrien, uma elfa de cabelo prateado e olhos cor de violeta. – Mestre Camdell nos deu um roteiro, mas estamos com dificuldade.
-- Mas ainda têm bastante tempo antes da cerimônia. E uma excelente mestra para ensinar os princípios e as leis da Magia, que aliás podem lhes ser de boa ajuda – lembrou Theoddor. – Não entram símbolos na peça? Cores, aromas, representações? Em tudo isso Thalia pode orientá-los.
-- Sim, mas é que... nosso problema não é esse. É a peça em si – disse Donovan, coçando a ponta do nariz. – A história que vamos contar. Precisa ter os símbolos, mas... mas não é só isso.
-- Não sabemos o que e como fazer – explicou Marla de Kalket, meio-elfa como o rapaz. – Mestre Camdell sugeriu uma porção de livros, mas não temos tanto tempo assim. Queríamos algo mais direto.
-- Entendo – disse Theoddor, com um suspiro. – É, eu sei, ainda não conseguimos um Mestre de Sagas. Mas, olhem: por enquanto, se quiserem, posso ouvir as ideias de vocês e tentar ajudá-los.
-- Ótimo! Por mim, podia ser agora mesmo! – afirmou Marla. Os colegas assentiram sem muito entusiasmo, como se soubessem o que Theoddor diria em seguida.
-- Agora, de jeito nenhum, porque vocês estão perdendo uma aula importante. Já para a torre, sem discussão! – Resmungos dos três: eles tinham que representar seu papel até o fim. – Cheguem ao refeitório uma hora antes do jantar, e então conversaremos.
Mais resmungos, dessa vez em concordância, enquanto os jovens se punham a caminho da Ala Azul. Theoddor os acompanhou com o olhar, consciente de que havia mais uma questão a ser resolvida. A Escola não podia seguir sem um Mestre de Sagas, nem, por mais que houvesse músicos excelentes em Vrindavahn, sem um mestre de Música que entendesse de ritos e cerimônias mágicas. Ele partilhara sua preocupação com Camdell, que prontamente escrevera a seus amigos em Kalket pedindo indicações; recebeu algumas respostas, mas sua intuição de mago e mentor da Escola o fez recusar todos os candidatos, à exceção de uma jovem Mestra de Sagas que seguia os ensinamentos do sábio Odravas. Queria estar mais próxima da natureza, e, embora Vrindavahn ficasse a um pulo de distância, o Castelo das Águias e sua floresta pareciam uma boa opção. No fim, porém, acabou se mudando para uma aldeia lá no Norte distante, de onde enviava longas cartas contando sobre o frio, a gentileza dos elfos da tribo local e as conversas sempre curiosas que mantinha com o xamã.
Ao menos não tivemos problemas com os mestres de Magia, pensou Theoddor, enquanto retomava a caminhada. Finn e Sophia, Thalia e Camdell, além dele próprio, responsável pelas Ciências da Terra, que sempre tinham sido sua paixão – ali estava uma ótima equipe, mesmo que ainda não fosse a ideal. Quanto aos mestres das Artes, não poderiam estar mais bem servidos do que em Vrindavahn. A menos, talvez, que tivessem ido a Madrath, onde havia a Escola de Teatro, os estúdios de grandes pintores e escultores, a Arte mais sublime das Terras Férteis... Mas seria ingênuo supor que uma proposta como a de Camdell seria bem aceita em Madrath ou em qualquer das Onze Cidades.
-- Senhor Theoddor! – Um operário acenou a curta distância, um homem de meia-idade que crescera em Vrindavahn, acostumado a olhar com deferência para os membros de sua família. – O velho Hector, o dos fantoches, estava à sua procura um pouco mais cedo. Deve estar no galpão de trabalho, ele e dois rapazes que vieram junto. E me pediu para avisar se o senhor aparecesse por aqui.
Theoddor agradeceu e deu meia-volta rumo ao galpão. O antigo depósito fora reformado para comportar um espaço amplo, com mesas de trabalho, ganchos e prateleiras para guardar as ferramentas de vários ofícios. Era o local onde estocavam boa parte dos suprimentos, onde os mestres artesãos preparavam o material para suas aulas e às vezes recebiam os aprendizes, principalmente quando chovia. A área pertencia a eles, franqueada por Theoddor desde que os convidara a trabalhar na Escola; mas seu uso devia obedecer a uma infinidade de regras, e Hector dera prova de estar cumprindo uma delas.
Parentes, ajudantes, artistas ou operários em busca de trabalho: qualquer pessoa trazida ao Castelo das Águias pela primeira vez devia ser apresentada ao anfitrião.


Imagem: construtores, retratados em pintura de livro medieval

Parte 1

Parte 2

Parte 4


quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 2)




-- Nem posso acreditar, Tomas! Você, de volta... Depois de todos esses anos! – A emoção mal permitia que Tio Hector falasse; ele fitava intensamente o sobrinho, a ponto de não enxergar as outras pessoas ali paradas, de pé, a menos de dez passos. – Era um menino, mal tinha começado a fazer a barba, e agora, agora... Olhe só para você!
-- Nem tanto, tio. Eu já tinha dezessete – sorriu Tomas. – Claro que mudei, mas o principal é... Bom, melhor que você os veja por si mesmo.
-- Quem? Oh, claro, seus amigos. – Hector se voltou para o casal que aguardava em silêncio, a moça de cabelo castanho e o rapaz moreno com o bebê dormindo no ombro. – Sejam bem-vindos, caros... hum, como se chamam?
-- Eu sou... – Cyprien começou a falar, mas Tomas interveio, sorridente, ao mesmo tempo que puxava Stela para junto de si.
-- Olhe bem para o menino, tio! Não pode ser filho deles dois, pode? – indagou, sorrindo ao ver o espanto, logo transformado em ternura, nos olhos do velho tio. – Esta é minha mulher, Stela. Eu a conheci no País do Norte. E esse é nosso filho, Aryan...
-- Como seu pai!
-- Sim, tem o nome dele. O próximo será Hector – afirmou Tomas, cheio de certeza. – E agora lhe apresento Cyprien de Pwilrie, meu grande amigo e parceiro de estrada. Ele nunca tinha vindo às Terras Férteis, e não teve boa impressão do que já viu, por isso peço que me ajude a desfazê-la nos próximos dias.
-- Sim, claro! O que eu puder fazer por seu amigo! – exclamou Hector, ainda emocionado. – Seja bem-vindo, Cyprien. E você também, é claro, Stela! Bem-vinda à família! Entrem, fiquem à vontade!
-- Obrigado, senhor, mas... temos que acomodar o cavalo – disse Cyprien. Fez isso de propósito, porque não haveria problema em deixar o animal ali fora por uma hora ou duas, mas aquele era um momento de reencontro, de família. Tio Hector hesitou, mas logo compreendeu seus escrúpulos e explicou onde ficava o estábulo mais próximo, enquanto Stela pegava o bebê e Tomas retirava da carroça a bagagem de uso mais imediato. Então entraram na casa atrás do velho, e Cyprien esperou que fechassem a porta antes de conduzir o veículo até a rua seguinte.
Ao regressar, encontrou todos à mesa, ao redor de uma torta de carne temperada e copos de cerveja. Falavam sobre gente de Vrindavahn – vizinhos, conhecidos, companheiros de infância de Tomas, vários dos quais também já eram pais de família --, mas, ao mencionar outros artesãos, a voz de Hector abandonou o tom saudoso e se tornou animada, um prenúncio às boas novas que tinha para dar.
-- Você se lembra, é claro, de Theoddor, o ricaço que herdou o Castelo das Águias. – Era o castelo que Cyprien vislumbrara a distância, sobre a montanha. – Lembra como todos na cidade diziam que ele era excêntrico?
-- Lembro, é claro – Tomas confirmou. – Diziam que era um bom homem, muito generoso, mas só vivia colhendo flores e lendo livros e não regulava bem.
-- Sim, isso mesmo. Pois bem: ele resolveu fundar uma escola no castelo, mas não uma escola comum. – Fez uma pausa, aguçando o interesse dos três, e prosseguiu em tom solene: -- Ele fundou... uma escola de Magia.
-- O quê? – A exclamação foi uníssona.
-- É o que ouviram – declarou Hector, satisfeito com a reação. – Não entendam errado, Theoddor não é um... um feiticeiro ou coisa parecida. Ele explicou a todos, inclusive no Conselho, que a Magia pode servir para fazer o bem; para ajudar a curar doenças, para proteger a cidade, para conhecer as plantas e saber quando chove. E os Conselheiros fizeram algum acordo com ele sobre o Castelo das Águias, que tem a ver com impostos, e aí tudo começou. Um mago veio morar aqui – um elfo chamado Mestre Camdell --, e depois veio outra maga, e em seguida um casal, e cada um desses últimos trouxe meia dúzia de aprendizes. Agora já deve haver uns trinta ou quarenta vivendo lá, jovens e até crianças a partir dos doze anos. Mas o melhor vocês não sabem. – Inclinou-se, buscando cada um daqueles pares de olhos incrédulos. – Além de Magia, essa escola também oferece aprendizado em algumas artes. Música, pintura, teatro...
-- Teatro? – Cyprien se retesou no assento; aquilo lhe interessava. – Pensei que só se pudesse aprender em Madrath.
-- E que a única Escola de Magia fosse em Riverast – disse Tomas, corroborando o que tinham lhe dito sobre as leis da Liga das Terras Férteis. – Não sabia que podiam fundar outras.
-- Nem eu, mas pelo jeito é possível, tanto que o fizeram. E ensinam artes, como eu disse. Com isso, alguns de nós, artistas e mestres artesãos de Vrindavahn, fomos convidados para ir lá e oferecer esse aprendizado.
-- Quê...! – Tomas ergueu as sobrancelhas, sem fôlego. – Então você, Tio Hector, foi ensinar os magos a... a fazer fantoches?
-- Os magos, não. Os aprendizes. Garotos, com dezessete ou dezoito no máximo, e umas poucas meninas. Todos de orelha comprida, e alguns com o nariz em pé, como seria de se esperar. Mas, no geral, gosto deles, são inteligentes, esforçados... Gosto de Theoddor e do Mestre Camdell, que me tratam com respeito. E, é claro – riu, de um jeito que o fez parecer mais novo --, gosto do bom dinheirinho que isso me traz a cada quarto de lua. É bem melhor que depender do que pinga no chapéu.
-- E ainda faz apresentações? – Tomas, de repente parecendo apreensivo. – Teve dificuldades, nesses anos em que estive fora?
 -- Dificuldades? Ah, meu filho, qual o artista que não tem? Não se sinta culpado. – Sorriu, de novo transformado em velho tio, rugas de bonomia em torno dos olhos, sobrancelhas espessas. – Sempre consigo ajuda aqui e ali, e não se esqueça de que sou o primeiro a ser procurado quando se trata de fazer ou consertar bonecos. Passei a ter muitos prontos, com ou sem cordéis, e as crianças já os conhecem, sempre vêm comprar. Nunca faltou um prato de comida ao velho Hector.
-- Fico feliz por saber disso, tio. Eu... sei que agi mal, deixando-o tanto tempo sozinho – disse Tomas, contraindo a boca. – Mas agora vou ajudá-lo, vou retomar meu lugar na oficina, nos espetáculos, vou... bem, fazer o que houver para ser feito. Stela também. Não pretendemos viver às suas custas, pode ter certeza.
-- Oh, eu sei, eu sei, mas então... Vieram para ficar? De vez, não só para uma visita?
Pousou a mão sobre a de Tomas, os velhos olhos brilhando, marejados. Cyprien relanceou um olhar para Stela, viu-a também comovida, respirou fundo. Com um tio tão querido e uma casa confortável, ainda mais tendo esposa e filho a quem devia prover, eram mínimas as chances de que seu parceiro quisesse voltar às estradas. Mas quem poderia culpá-lo?
-- De vez, não posso afirmar, Tio Hector – disse Tomas, porém seus olhos transbordavam de promessas. – Mas vamos passar o inverno aqui com você, nós três. Quer dizer, nós quatro. Espero que Cyprien...?
-- Claro! Eu já não disse? Seu amigo é bem-vindo. Há trabalho de sobra na oficina, se ele tiver jeito para isso. No Castelo, por ora, as coisas estão um pouco paradas, pois estão se preparando para as festas do solstício de inverno. A não ser... Bom, pelo que você contou, entendi que ele domina outras artes. E lá precisam muito de malabaristas que treinem os aprendizes mais novos.
-- Mesmo? Então eles têm sorte: eu trouxe o melhor! – exclamou Tomas, batendo nas costas de Cyprien. – Viu só? Eu disse que em Vrindavahn você seria bem recebido!
-- É verdade. – Voltou-se para o velho, disfarçando sua inquietação com um sorriso. – Obrigado, Mestre Hector.
-- Que é isso, rapaz. Um amigo de Tomas também é meu amigo. Além disso, somos todos artistas. Não se deixa um companheiro de ofício na mão, não é mesmo?
Cyprien assentiu, mas, pelo resto da noite, não conseguiria ficar inteiramente à vontade. A ideia de tratar mais uma vez com elfos, como pareciam ser as pessoas do Castelo das Águias, não lhe agradava nem um pouco, e ainda por cima aqueles eram praticantes de Magia. Poderiam lançar feitiços sobre ele e dominá-lo; ou, pior ainda, podiam amaldiçoá-lo, de forma que nada, nunca, desse certo em sua vida.
A não ser que fosse mais forte do que isso. E que fizesse seu próprio destino, como até agora.
E, enquanto os outros brindavam ao reencontro e a um futuro ensolarado, Cyprien de Pwilrie cerrou os lábios, decidido a não permitir que os magos do Castelo das Águias lhe causassem qualquer mal.

***


Imagem: torta medieval, feita com carne de caça. Leia mais a respeito aqui

Parte 1

Parte 3


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 1)


Pessoas Queridas,

Hoje começo a postar um (longo) conto sobre a passagem de Cyprien de Pwilrie pelo Castelo das Águias, pouco tempo após a fundação da Escola de Artes Mágicas. Espero que vocês gostem e joguem uma moeda para o saltimbanco. 
Sem esquecer a do bruxo, é claro. ;) 


-- Pronto, meu amigo! Aí está a cidade que vai fazer você mudar de ideia sobre as Terras Férteis!
Tomas segurava as rédeas com uma das mãos enquanto a outra apontava para o horizonte. Cyprien olhou e viu uma aglomeração de casinhas, uma nesga do Mar Interior a curta distância e, mais afastada, uma montanha sobre a qual se erguiam as torres de um castelo. Tinha muralhas, mas não eram grande coisa -- o que, segundo Tomas, se devia ao fato de as guerras terem ficado num passado longínquo.
-- Já não sofremos cerco, ou mesmo ameaça de invasão, há pelo menos duzentos anos, por isso a cidade cresceu fora das muralhas – explicou. – Mas isso não quer dizer que não haja algum controle. Quem vem pelo mar, sendo estrangeiro, deve se registrar na Casa dos Nautas; os que chegam por terra têm que se apresentar no prédio do Conselho. É coisa simples – garantiu, vendo os olhos do amigo se estreitarem. – Você procura um funcionário, diz quem é e o que veio fazer em Vrindavahn. Podemos ir amanhã cedo, você vai ver como é rápido.
-- Certo – disse Cyprien, com um suspiro. – Se não me arranjarem mais uma pulseira, prometo não reclamar.
Tomas o encarou por um momento e ficou em silêncio. Cyprien afagou o pulso, que ainda conservava traços de tinta azul, e olhou para a frente, onde a cidade se desenhava cada vez mais nítida. Uma curva do caminho, um declive – e de repente se encontravam nela, as rodas da carroça abrindo sulcos na ruazinha de terra. As casas de ambos os lados eram simples, ainda esparsas, entremeadas a pequenas hortas e, algumas vezes, um galinheiro ou cercado com duas ou três cabras.
-- Este é um bairro mais pobre – explicou Tomas. – Alguns trabalham nos campos, em torno da cidade; outros são operários, carregadores, empregados de gente abastada. Os mestres artesãos, como meu tio, vivem melhor, embora, é claro, estejam longe de ser ricos. Você vai ver quando chegarmos lá. Ah, não vejo a hora de abraçar o velhote! E quando ele conhecer Stela e Aryan – aposto que vai precisar se conter para não cair no choro!
Cyprien fez que sim, com um breve sorriso. Claro que o velho iria se emocionar ao rever o sobrinho que fora seu aprendiz, homem feito após uma ausência de vários anos, trazendo junto a esposa e um filhinho adorável. Possivelmente o acolheria também, com gosto, ao menos no início, pois Tomas não deixaria de falar bem do jovem saltimbanco que conhecera em Pwilrie e se tornara o mais leal dos companheiros de jornada. Quanto à cidade, com seus outros habitantes... Isso ele ainda estava por comprovar.
Percorridas duas ou três daquelas ruas de terra, a carroça passou a rodar sobre uma calçada de pedras, mais regulares e polidas pelo uso à medida que progrediam. As casas se tornaram menos espaçadas; logo surgiram os primeiros sobrados, oficinas de couros e selas, a loja modesta de um sapateiro. Stela, que vinha na parte coberta da carroça com Aryan, se aproximou para espiar entre os ombros do marido e do amigo, e foi a primeira a avistar e apontar o que, segundo Tomas, demonstraria que tinham chegado.
-- Um cata-vento! – E era mesmo, plantado sobre as telhas que cobriam uma casinha de tijolos. – É aí que vive o Tio Hector?
-- Isso mesmo. Fizemos juntos... bem, não esse, mas os primeiros cata-ventos, quando eu ainda era menino – disse Tomas, e em sua voz havia uma nota emocionada. – Com as chuvas e tudo mais, ele acaba se estragando, e o trocamos por um novo. Esse de agora ainda está bom, pelo menos está girando... Ah! Espero que meu tio esteja em casa!
Seus olhos cintilavam, úmidos, quando puxou as rédeas. Cyprien saltou primeiro e recebeu Aryan, quente do sono, dos braços de Stela. Tomas ajudou a esposa a descer enquanto contemplava a casa de sua infância: tijolos sólidos, caiados de branco, telhado diagonal, pás coloridas do cata-vento fazendo crer que ali vivia gente de coração alegre. Talvez eu faça algo assim, pensou Cyprien, quando finalmente voltar para casa.
Tomas precisou de mais alguns momentos lidando com suas emoções antes de avançar e bater na porta. Por algum tempo não houve resposta, e já ia pegar a aldrava de novo quando alguém se fez ouvir lá dentro.
-- Quem é? – A voz de um homem de idade, um pouco rouca, mas não alquebrada.
-- Sou eu, Tio Hector! – De onde estavam, Stela e Cyprien quase podiam ouvir o coração de Tomas aos saltos. – Seu aprendiz fujão está de volta!
-- Meu... Ah, meu Deus, Tomas? – Som de metal batendo em pedra lá dentro, chaves tilintando antes de entrar na fechadura: o velho homem devia estar tremendo, emocionado. – Espere, filho, espere! Já vou conseguir... Ah, Tomas! – exclamou o Tio Hector, por fim abrindo a porta e os braços para o sobrinho. Tomas caiu neles sem hesitar, e demorou um bom tempo até que os outros pudessem ver direito o rosto do velho, de faces escanhoadas, bochechas um pouco flácidas e olhos azuis repletos de lágrimas.

***

Imagem do post, de uso livre: reprodução de carro medieval


Parte 2

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Theoddor de Vrindavahn



Iniciamos as postagens de 2020 com um personagem que não aparece nos livros, a não ser nas memórias do pessoal do Castelo: Theoddor de Vrindavahn, ou Mestre Theoddor, como geralmente se referem a ele.

A despeito da população bem miscigenada, Vrindavahn foi fundada por humanos e por eles governada ao longo de várias gerações. Os nobres residiam no Castelo das Águias, detinham os direitos sobre a floresta e recebiam impostos dos cidadãos e dos camponeses estabelecidos em seus domínios. Com a criação da Liga das Terras Férteis, os títulos de nobreza foram revogados, mas alguns privilégios permaneceram, assim como a posse do castelo.

Theoddor, o último herdeiro, tinha pendor para os estudos da natureza, mas o que mais o fascinava era a Magia, por isso ele estudou incansavelmente a fim de tentar ser aceito na Escola de Riverast. Não conseguiu, pois tinha nascido sem o Dom, mas sua trajetória reforçou as convicções de um dos mestres, para quem a Magia podia se desenvolver através da Arte. Seu nome era Camdell, e ele se tornou um grande amigo de Theoddor, que muitos anos depois o convidou para fundar sua sonhada Escola de Artes Mágicas no Castelo das Águias. Três magos experientes – Finn, Sophia e Thalia --se juntaram a eles com seus aprendizes, e o próprio Theoddor se tornou o Mestre de Ciências da Terra daqueles jovens, bem como de muitos outros que logo começaram a buscar abrigo e aprendizado no Castelo.

Durante os sete anos que ainda viveu, Theoddor promoveu a expansão da Escola, com a construção de novas alas e, especialmente, a de um anfiteatro para os espetáculos que aconteciam a cada estação. Contratou muitos dos artistas que se tornaram professores fixos na Ala Violeta, entre os quais o marioneteiro Tomas. Era amado por todos, e continuou a ser lembrado com muito carinho nos serões do Castelo, bem como nas Noites de Sagas promovidas por Anna de Bryke.

...

Em breve: um conto de Theoddor e do (então) jovem saltimbanco Cyprien de Pwilrie, nos primeiros tempos da Escola de Artes Mágicas!

Ilustração de Theoddor por Hidaru Mei