quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Chá da Tarde com a Arquimaga (Parte 3)



O fogo crepitou, e o ruído levou embora as imagens, embora não sua perplexidade. Kieran olhou para a tigela, só então percebendo que a esvaziara, depois para a Arquimaga, que não olhava para ele e sim para o papel que em algum momento fizera surgir sobre a mesinha. Havia uma pena de ganso em sua mão, ela escrevia muito rápido, como se soubesse exatamente o que havia a ser dito. Dobrou o papel, inserindo-o num envelope, e o estendeu para o jovem mago, só então deixando que seus olhos voltassem a se encontrar com os dele.
-- Muito obrigada, Kieran, por ter feito o chá. Isso me ajudou a compreender algumas coisas – disse ela. -- Agora, peço-lhe que vá ao lugar indicado no envelope e entregue a mensagem ao dono da casa. Ele saberá o que fazer.
Sua voz tinha uma nota mais grave, uma vibração que ele sabia carregada de energia mágica. Ela me encantou, pensou Kieran, mas não tentou lutar, porque não teria conseguido vencê-la e porque, mesmo naquele estado próximo ao transe, tinha a consciência de que nada do que fora feito ali lhe causaria algum mal. Seus dedos se fecharam em torno do envelope; ele viu a si mesmo se levantando das almofadas, ouviu sua própria voz cumprimentando a Arquimaga, o som de seus passos se dirigindo até a porta. Cruzou a vila às escuras e passou pelo portão, e só ao atravessar o jardim – vazio, silencioso, iluminado por meio de um encanto que o fazia parecer cheio de vaga-lumes – voltou a controlar a si mesmo o suficiente para ler o que estava no envelope.
-- Praça do Mercado, casa com janelas azuis – murmurou, e franziu a testa. Era um endereço, mas não lhe dizia nada. Também as palavras da elfa, ao se despedirem, não tinham deixado nada claro: se Kieran fora finalmente admitido à Escola de Magia, se fora rejeitado, se seu período de experiência devia prosseguir e um novo teste o aguardava na casa de janelas azuis. Ele seguiu em direção aos portões da Escola, passando por uns poucos estudantes, que deviam estar a caminho do refeitório, e por um empregado que carregava um ancinho e um saco abarrotado de folhas secas. Ninguém o cumprimentou; tampouco o fizeram as pessoas com as quais cruzou ao sair e se dirigir à Praça do Mercado. Uma cidade de estranhos, um mundo de estranhos. Muito cedo ele aprendera a ver as coisas assim.
E agora, mal recobrado do encanto da Arquimaga, estava prestes a bater à porta de mais um estranho. Este vivia no centro da cidade, numa casa de dois andares, como várias dentre as que o Conselho de Riverast cedera aos estudantes de Magia. Talvez até estivesse diante de uma delas, pensou Kieran, vendo que havia uma tabuleta sobre a porta azul. Talvez a Arquimaga houvesse decidido transferi-lo para lá. No entanto, assim que bateu, ele se lembrou de que a elfa o mandara falar com o dono da casa, e não com os veteranos, e ao erguer os olhos para a tabuleta não encontrou o nome de uma residência. Em vez disso, havia a pintura chamativa de um alaúde e um trecho de música, e ele se perguntava o que aquilo podia querer dizer quando um meio-elfo de barba rala e olhos vivos surgiu à porta.
-- Boa noite! Como lhe posso ser útil? – perguntou, com uma mesura brincalhona que era também um convite para entrar. Sem saber o que dizer, Kieran avançou e lhe estendeu o envelope, ao mesmo tempo que relanceava os olhos pela sala. Estava quase às escuras, exceto pela lâmpada que o meio-elfo pousara sobre um balcão, e os móveis consistiam em bancadas sobre as quais havia cítaras e alaúdes em vários estágios de construção ou restauro. Uma dezena de outros, completos e em bom estado, estavam presos à parede, o que acabava de completar o quadro: esta não era uma residência da Escola de Magia, e sim a loja de um fabricante e comerciante de instrumentos.
E ele – o dono da casa em pessoa – tinha acabado de ler a mensagem da Arquimaga.
-- Pelas barbas de Bragi! – O artesão invocou o protetor dos bardos, deu uma risada divertida. – Então você é um mago poderoso, mas tem que controlar sua raiva? E devo lhe ensinar música? Seria melhor eles admitirem de uma vez que o tal Camdell estava certo e não há Magia sem Arte... não é verdade?
-- Não entendi – Kieran se retraiu.
-- Ah, me desculpe. Isso não vem ao caso. Ocorre que a Arquimaga me escreveu dizendo que você, ah – lançou os olhos à carta --, Kieran de Scyllix, tem um Dom muito forte, é honrado e procura ser justo, mas seus modos são grosseiros e sua personalidade é uma desgraça. Ela pediu que eu lhe ensinasse um instrumento, à sua escolha, para equilibrar sua energia; e tem mais – acrescentou, vendo o rapaz abrir a boca, indignado. – Mandou avisar que essa é uma condição inegociável para que você continue na Escola. A Mestra Shiri vai lhe indicar os cursos de Magia que deve seguir e eu vou reportar seus progressos na música.
-- Você só pode estar brincando – murmurou Kieran, sentindo o sangue esquentar suas faces.
-- De jeito nenhum. Você não é o primeiro que ela me envia – replicou o artesão, sem se intimidar. – Bom, é tarde para uma primeira aula, mas seria bom já escolher um instrumento. Deixe-me ver suas mãos. Hum, parecem boas, ágeis, dedos longos... Mas você não tem cara de quem vai gostar do alaúde. Vamos tentar uma cítara. Melhor ainda: uma harpa. Veja esta aqui, eu a consertei há poucos dias, é simples e de boa qualidade. Experimente!
Empurrou o instrumento contra o peito de Kieran, ainda não refeito do choque. Suas mãos se fecharam sobre a madeira polida enquanto tentava decidir: aquilo era mais um teste, proposto pela Arquimaga após o encontro para o chá; ou talvez o encontro houvesse sido o verdadeiro teste, ela o usara para saber quem era aquele rapaz e o que ele escondia por trás de suas defesas.
-- Experimente – insistiu, persuasiva, a voz do artesão. Kieran deixou as pontas dos dedos correrem sobre a harpa – salgueiro, pressentiu, mais do que reconheceu – e ao longo das cordas de tripa torcida. Uma nota quase inaudível se elevou dali, e ele repetiu o gesto, agora com mais vontade, o som trazendo à sua mente a imagem de um arco-íris refletido na água. Nada mau, pensou, lembrando os versos que escrevera quando adolescente e nunca mostrara a ninguém, envergonhado, não da poesia em si, mas de perder com ela o tempo precioso que deveria ser dedicado à Magia.
E agora – finalmente ele percebeu, e se sentiu tolo e vitorioso por isso --, agora uma das magas mais sábias de Athelgard o autorizara a fazê-lo. Mais que isso, ela ordenara que o fizesse, trouxera a Arte como um presente de volta à sua vida. Por intermédio da música, dessa vez, mas isso também foi uma escolha sábia, Kieran nunca fora muito bom com as palavras. Ele pensou em como contaria sobre o encontro aos companheiros de residência, adivinhou o seu espanto, o alívio de alguns, talvez algum sarcasmo por parte de Isel. Pensou também que poderia, quando saísse dali, comprar um bolo numa das bancas ainda abertas do mercado e comer com eles.
E ao dedilhar mais uma vez as cordas da harpa, antes de devolvê-la ao artesão e seu futuro mestre, Kieran de Scyllix fechou os olhos e voltou a sentir o gosto das flores de tília. Antecipando a paz no abraço do menino de olhos negros. Ouvindo o som de um amor vitorioso na risada da moça de tranças. 

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Parte 1

Parte 2

E agora que você já sabe que o futuro Mestre de Magia do Pensamento continuou em Riverast, que tal ler uma história dele, também ambientada lá, e de quebra onze contos de autores incríveis sobre Magos e Magias? Eles estão nesta coletânea , publicada pela Editora Draco, que venceu o Prêmio Argos 2018!

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Obrigada por terem chegado até aqui. Espero que continuem acompanhando as histórias de Athelgard!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Chá da Tarde com a Arquimaga (Parte 2)



Seus olhos o fitaram, parecendo velhos e cheios de malícia. Kieran franziu a testa, pouco à vontade, e olhou em torno. O aposento não lembrava as salas usadas para as conferências e práticas mágicas, nem mesmo os gabinetes em que ele fora recebido por Shiri e outros mestres, mas sim a sala principal da casa de alguém, com um divã confortável sob a janela e uma mesa baixa, em torno da qual havia várias almofadas. Uma parede tinha prateleiras com livros – alguns faltando, com os demais reclinados sobre o espaço vazio – e outra o retrato, pintado sobre tela, de uma menina elfa segurando um gato malhado. Junto à lareira, mais uma mesinha, e sobre ela uma bandeja onde estavam uma jarra, um pote liso de cerâmica e algumas tigelas. Deviam ser os utensílios do chá, ele pensou, sem mover um músculo.
-- A água está quase fervendo. – A Arquimaga indicou uma panela suspensa sobre o fogo. – Há água fresca na jarra, e a tília está naquele pote. Devo lhe dizer como preparar o chá?
-- Acho que consigo sozinho – ele resmungou. Com dois ou três passos largos, alcançou a lareira, destapou o pote de cerâmica e encontrou um monte de florzinhas secas, branco-amareladas. Era muito para usar de uma vez; ele ficou na dúvida entre pegar um punhado ou derramar um pouco na panela, direto do pote, mas, antes que decidisse, a Arquimaga fez nova pergunta.
-- Vocês costumam tomar chá na sua residência? Digo, quando estão juntos – precisou. – Imagino que viver com outras pessoas propicie momentos assim.
-- Alguns deles às vezes comem em casa. – Kieran endireitou as costas, com o pote na mão. – Eu prefiro o refeitório da Escola. É mais prático.
-- Dizem que a comida não é tão boa – ela comentou, em tom brincalhão, ao que ele apenas fungou e encolheu os ombros.
-- Para quem passou anos no exército... – murmurou, e então despejou algumas flores na palma da mão. Fez isso sem pensar, porque as palavras casuais trocadas com a Arquimaga tinham evocado uma imagem poderosa: a de um garoto magro, porém de ombros largos e músculos esculpidos pelo trabalho na fazenda, devorando uma tigela cheia até a borda de um ensopado de cor acinzentada e gosto duvidoso, enquanto os outros recém-chegados à Escola de Guerra se forçavam a engolir alguns bocados. Nenhum tinha um pai como o seu, que vigiava o que os filhos comiam e os fazia pagar cada grão com trabalho duro. E para sua mãe tinha sido ainda pior.
O último pensamento o fez cerrar o punho, amassando as flores. Ele se deu conta do que fazia e se apressou a jogá-las na panela, onde a água continuava a ferver. Olhou em torno, procurando com que tampá-la, e então outra lembrança lhe invadiu a mente, trazendo o rosto aquilino e preocupado de sua irmã..
-- Quando você voltar da guerra, não sei se irá encontrá-la. – Ela falava aos sussurros, ao mesmo tempo que tirava uma panela da lareira, segurando-a com um gancho de ferro. – Ainda assim, diga a seu mestre que estamos gratos. A mãe estaria sofrendo muito mais, com essa doença, não fossem os remédios dele.
Kieran assentiu, como fizera naquela tarde sombria quatro anos antes, e pousou a panela sobre um descanso de junco trançado, na mesa baixa cercada por almofadas. Estranho: não se lembrava de tê-la tampado, nem de onde tinha vindo aquele trapo de tecido grosso que usara para não queimar os dedos. No entanto, a panela ali estava, e a Arquimaga já não se encontrava em seu banquinho, mas sentada de pernas cruzadas diante da mesa. Tinha no rosto um leve sorriso, mas continuou em silêncio enquanto o jovem pegava as tigelas na mesa do canto. E só quando ele se curvou e destapou a panela, o ar se enchendo do cheiro espesso e adocicado das flores, ela voltou a fazer um comentário.
-- Percebi que você já preparou infusões, mas não sei se foram de tília. Esta é preciso coar. Há um pano fino, e limpo, na bandeja. Pode usá-lo.
Kieran tornou a assentir e foi buscar o pano. De fato já tinha preparado infusões, e decocções, e vários tipos de beberagem, mas isso se dera apenas ao longo do último ano, quando o Mestre das Águias de Scyllix começara a sentir aquelas dores na barriga. O aprendiz insistira para que visse os mestres de cura do exército, mas, apesar de bonachão na maior parte das vezes, o velho Mael sabia ser teimoso quando queria: se ele, sendo um mago, não soubesse como se curar, não seriam aqueles tontos que iriam conseguir. A contragosto, Kieran concordou em manter aquilo em segredo e tratou de ajudar seu mestre, enchendo-o de ervas curativas – ele se lembrava de ter usado um pano, como o da Arquimaga, para coar os chás – e aplicando cristais, a energia das mãos e tudo que pudesse aliviar seu desconforto. Após algumas luas, lembrou-se de usar a água da fonte âmbar, que ficava nas terras de sua família e tinha poderes de cura, e com isso Mael teve uma boa melhora, mas a essa altura ambos já sabiam que não conseguiria se livrar da doença. Das dores, por um tempo, sim; prolongar sua vida, sim, ao menos por alguns anos, enquanto ainda tivesse forças para comandar as águias. E a fim de que o rapaz se tornasse um sucessor à altura, e também para fazê-lo erguer os olhos além dos campos de batalha, Mael escrevera a um dos mestres em Riverast, contando sobre o talento do aprendiz e quase implorando que lhe dessem uma oportunidade na Escola de Magia.
-- Espero que eu tenha feito certo -- Kieran murmurou, vertendo o chá amarelado numa tigela. – Talvez tenha usado flores demais.
-- Isso depende do gosto – replicou a Arquimaga. – Às vezes não existe uma receita, um ritual a seguir. Nem regras. Nem respostas absolutamente certas. Por exemplo, Shiri enviou você à Casa das Três Chaminés, mas havia lugar em outras residências. Teria sido melhor, nesta primeira lua, ficar com os Sobrinhos de Loki ou a Sociedade dos Mantos Azuis?
-- Não. – Ele fechou os olhos, a tigela entre as mãos, e inalou a fumaça doce. Definitivamente, ainda que não tivesse muito em comum com Ravnos e Isel e os demais, teria sido pior passar aquela lua nas outras casas, fosse com os adeptos inconsequentes de Magia da Forma ou com os imbecis que se arrogavam em futuros senhores do mundo. Na Três Chaminés, pelo menos, Kieran fora aceito sem muitas perguntas. Ou melhor: fora aceito, apesar de se negar a dar respostas. Pois nem aqueles jovens, acostumados à solidão e a ser incompreendidos, tinham refreado a curiosidade diante do rapaz carrancudo, de aura sempre avermelhada de raiva, que tinha suas despesas pagas pelo exército e se comprometera a voltar às fileiras pelo mesmo tempo que passasse na Escola de Magia.
Injusto, tinham dito, sem fazer ideia do quanto ele já estivera pior.
Um silêncio longo, concentrado, encheu o aposento enquanto os dois saboreavam o chá. A Arquimaga segurava a tigela com as duas mãos; Kieran sustinha a sua com a esquerda e olhava para o anel de prata no indicador direito. Seu anel de poder, por enquanto, mas ele sabia que herdaria o de Mael, em forma de serpente, mesmo que fosse mandado embora de Riverast. Ainda não tinha, estranhamente, nenhuma intuição a esse respeito; não sabia o que se passava na cabeça daquela elfa, nem a razão de toda aquela história com o chá, embora – e isso era ainda mais estranho – não estivesse irritado por ela tê-lo feito perder tempo ali. Pelo contrário, estava calmo, apaziguado, como raramente se sentira. Não apenas nessa última lua, mas em toda a sua vida.
Intrigado, ele desviou os olhos, que logo se deixaram atrair pela imagem da menininha com o gato. Tinha cabelos prateados, como a Arquimaga, mas o trabalho parecia recente demais para ser um retrato dela na infância. Era mais provável que fosse alguém da família, talvez a filha ou a neta de um irmão, já que, para serem iniciados nos Círculos superiores, os magos renunciavam a se casar e a ter descendência. Kieran tomou mais um gole, contemplando aquele rosto de criança, e de repente uma nova memória surgiu diante dos seus: não uma imagem do passado, como as de sua irmã e de si mesmo na Escola de Guerra, mas algo que viera até ele como uma visão.
Uma montanha enevoada, um castelo, uma mulher de tranças negras e sorriso radiante. Um menino, de olhos oblíquos como a pequena elfa, mas muito escuros, soltando a mão da mulher e correndo ao encontro de Kieran. Seria apenas um desejo, algo que ele criara para confortar a si mesmo e nunca teria de verdade, ou... Ou seria possível?

Continua...


Parte 1

Parte 3

Quer saber quando Kieran teve a visão da mulher e do menino? Clique aqui e leia o conto "Promessas da Lua", ambientado em Scyllix, a Cidade dos Guerreiros!