terça-feira, 23 de junho de 2020

Duendes : Vencedor do Prêmio Le Blanc

Pessoas Queridas,

No dia 20 de junho aconteceu a live que anunciou o Prêmio Le Blanc, organizado pela ECO/UFRJ e pela UVA - Universidade Veiga de Almeida.

Após os votos populares terem determinado os finalistas, um júri técnico ligado a cada área entrou em ação. Foram premiadas várias categorias de quadrinhos, tirinhas, trabalhos de animação e, ainda, o melhor romance e a melhor coletânea de Literatura Fantástica publicados em 2019. Eeeee...


Sim! Duendes levou o prêmio!

Quero agradecer muitíssimo ao Erick e ao Raphael, da Editora Draco, aos autores que colaboraram com o livro e aos apoiadores que o adquiriram no Catarse, bem como a todo mundo que leu, divulgou, resenhou e se interessou de alguma forma. A vitória é de todos esses e não apenas minha.

Para os que quiserem assistir à cerimônia, conhecer os outros vencedores e me ver pagar mico online, a live está disponível no Instagram.

Aqui, uma prévia do livro, com seu interior e alguns trechinhos dos onze contos, no site do Omelete

E como eu seu que você gostou e vai querer comprar, aqui vão os links para a obra no site da Editora Draco e na Amazon.

Espero que vocês gostem, e... Ai, como estou feliz!

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Na Mesa do Escritor: Coluna no Blog Ficções Humanas


Pessoas Queridas,

Venho contar pra vocês uma novidade muito legal: estou responsável por uma coluna do blog Ficções Humanas, aquele das resenhas e dicas literárias incríveis!


O convite foi feito pelo Paulo Vinícius, e a ideia é compartilhar um pouco da minha experiência como escritora e organizadora de coletâneas. Os assuntos serão os mais variados, indo desde a construção de mundos e personagens até questões ligadas ao mundo editorial.

Os dois primeiros artigos já foram publicados, e vocês podem conferi-los aqui:


Apresentação

Essa Tal de Pesquisa


Espero que vocês passem por lá, deixem comentários e sugestões para textos futuros. Vou adorar!

E fiquem com a famosa "mensagem que eu deixo para meus leitores"...



Até breve, aqui ou no blog Ficções!

domingo, 26 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Epílogo)


O dia em que inauguraram o anfiteatro entrou para os anais do Castelo das Águias. Foi no solstício do inverno, ao fim do segundo ano de fundação da Escola de Artes Mágicas, e a primeira peça apresentada foi uma criação de Cyprien de Pwilrie. Guedésio, o velho avarento, foi vivido por Donovan, a maga poderosa por Marla; as crianças arrancaram aplausos em seu entreato como duendes, e Elina ficou nos bastidores com Cyprien, ajudando-o a soprar as falas esquecidas. Além da peça, houve também um ritual, e tudo terminou com uma festa, à qual compareceu um visitante trazido ao Castelo por Thalia. Era Shanion de Ardost, um experiente Mestre de Sagas, que começou suas aulas dois ou três dias após o solstício e dirigiu todas as peças até deixar a Escola, anos depois, para se casar com a jovem escolhida para ele pela família. Então veio Anna de Bryke, e o anfiteatro voltou a se encher de risos e brincadeiras, como acontecera durante a breve estadia de Cyprien.


O saltimbanco não ficou por muito tempo mais em Vrindavahn. Tomas e sua família insistiram que o fizesse, assim como os aprendizes, especialmente a menina que ele chamava de Pardalzinho; mas Cyprien tomara uma decisão, e não era de seu feitio voltar atrás. Ainda passou um quarto de lua ensinando malabarismo, mas sua intenção era apenas ganhar mais algum dinheiro, e com isso pagar uma passagem de barco até Pwilrie. Então, quando ficou claro que iria mesmo embora, Hector organizou um jantar de despedida, e foi quando Theoddor e Cyprien se encontraram pela última vez. Não houve confidências, como na ocasião anterior, mas os dois riram juntos e ergueram vários brindes ao longo da noite.

Quando ficaram meio altos, foram até lá fora, onde se demoraram tomando um pouco de ar fresco. Sobre o que conversaram, se é que o fizeram depois de todo aquele vinho, Theoddor não contou em seu diário, apenas lamentou o fato de ter bebido demais e dado pouca atenção ao amigo que estava de partida. Também observou que o jovem estava mais calado que de costume, e que fitou durante um longo tempo o cata-vento que girava sobre o telhado. Quanto ao próprio Cyprien, não tinha como manter um diário, mas suas lembranças dessa noite ficaram para sempre misturadas às de sua chegada em Vrindavahn, com a dor da rejeição ainda recente e a pulseira de tinta azul. Esta, agora, estava apagada, como grande parte da raiva e da tristeza que trouxera de Madrath, e muito disso se devia a Theoddor e seu Castelo das Águias; mas na verdade tinha sido ali, admirando a obra singela de Hector, que ele pensara pela primeira vez em regressar a Pwilrie.
Voltar para o Povo Alto, vivenciar as lutas cotidianas ao lado de seus amigos. Usar sua arte em favor deles, e -- sim, montar um cata-vento bem colorido no alto de sua casa no Labirinto.
Quando os ventos da mudança soprassem, ele já estaria lá.

Imagem: Cyprien retratado por Angela Takagui.

Parte 1

Parte 15

****

Espero que tenham curtido esta história do Cyprien!

Querem saber o que foi feito dele uns anos depois? Cliquem aqui!

E até a próxima - que não irá demorar!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 15)

-- Eu acho que... Bom, sim, eu falo do que sinto. – Respirou fundo, pondo os pensamentos em ordem; preferia não ter essa conversa, mas não havia como escapar. – A arte mostra essas coisas, mostra as injustiças e o que gostaríamos que acontecesse para acabar com elas. E houve um tempo em que pensei em fazer mais do que isso, mas agora... não estou certo nem sequer sobre voltar a viver em Pwilrie.
Imagem do Pinterest, mostrando um cata-vento de jardim.
Sempre associei o Cyprien a cata-ventos.

-- Por quê? Entendi que você tem uma casa lá. Família, provavelmente. Ainda é tão jovem que talvez até seus pais...
-- Não. – Cyprien inclinou a cabeça. – Não tive pais nem irmãos, primos ou tios. Minha mãe era sozinha e morreu quando eu era pequeno. Fiquei com meu padrasto, que me ensinou muito do ofício, apesar de me bater e me explorar, aquele maldito. Ele também morreu, e desde os doze anos contei apenas com vizinhos e amigos.
-- Sinto muito – disse Theoddor, com simpatia. – Sua vida não parece ter sido nada fácil. A minha começou bem; nada me faltava, tive meus pais até depois dos vinte anos e um irmão de quem gostava muito. Infelizmente ele morreu jovem, e acabei por ser o único herdeiro do Castelo. Em outros tempos, teria um título, mas isso já havia caído, assim como vários privilégios da nobreza humana e élfica. Ainda assim tinha uma bela propriedade, e todo ano os cidadãos de Vrindavahn me pagavam uma taxa através do Conselho. Sabe o que fiz com tudo isso?
-- Sei. Fundou a Escola de Artes Mágicas.
-- Exato. Realizei meu sonho – afirmou Theoddor. – Escrevi para Camdell, o único amigo de verdade que fiz em Riverast e o único a defender a ideia de que a Magia podia despertar sem o Dom inato, desde que houvesse um aprendizado adequado. Passamos anos planejando cada detalhe. E quando estava tudo certo, fiz um acordo com o Conselho sobre os impostos e instalamos a Escola no Castelo das Águias. Que tal?
-- Impressionante – disse Cyprien, e refletiu por um momento. – A Escola é fantástica, e deve lhe dar muito orgulho. Só que... isso não é, exatamente, realizar o seu sonho, certo? O senhor queria estudar Magia... mesmo fundando sua própria escola aqui em Vrindavahn, deu a entender que não conseguiu.
-- É verdade, eu não. Mas, a partir de agora, um menino como o que eu era, meninos e meninas como alguns dos que vieram até aqui, também nascidos sem o Dom, podem despertá-lo através da Arte. Não é garantido, não é fácil, mas é um caminho onde antes não existia nenhum. Foi isso que fiz pelos meus – acrescentou, com calor. – Por eles, usei o que tinha, assim como você pode usar o que tem: seu talento e carisma.
-- Carisma... – Saboreou a palavra, pensativo; trazia ecos não muito distantes. – Já me disseram, mais de uma vez, que eu tinha isso. Até que seria um bom líder trabalhando pelo Povo Alto.
-- Seria mesmo, como não? – replicou Theoddor. – No Castelo, conseguiu logo o afeto das crianças, a confiança de vários de nós, e incomodou aqueles que se incomodam com o brilho alheio. Meu convite para que fique está de pé, mas, se for seu desejo partir, não perca de vista aquilo que você mesmo disse: o Povo Alto é oprimido, e a arte é uma das armas mais poderosas contra a opressão. Na verdade, é ao mesmo tempo uma arma e uma cura. Pense nisso, e não perca mais seu tempo brigando com os mestres de Madrath, como briguei com os de Riverast.
-- Mas não briguei com eles. – Cyprien franziu a testa. – Fui rejeitado na Escola de Teatro, aí passei três dias afogando as mágoas na casa de uma moça que eu tinha conhecido por lá. E meus papéis de permanência expiraram, então me deram a pulseira de indesejável, por causa de um único dia de atraso ao deixar a cidade.
-- O quê? Então o galhardo Cyprien de Pwilrie é menos belicoso do que este velho? – brincou Theoddor, exagerando o tom de surpresa. Ruguinhas se acentuaram em torno de seus olhos risonhos, e o rapaz sentiu-se aquecer por dentro: aquele era de fato um bom homem, assim como Tio Hector, como Mandol e Thespio e Sanson e todos os mestres que o haviam ajudado e aconselhado ao longo da vida. Também Rowenna, a curandeira, e o cego Omar, com suas histórias sobre os tempos gloriosos – com sua insistência para que ele, Cyprien, ficasse no Labirinto e comandasse um movimento em favor do Povo Alto. Mais que insistência, tinham fé em que, um dia, ele faria tudo acontecer. Ainda acreditavam quando o viram partir pela última vez, um jovem músico e malabarista atraído pela novidade que era o teatro de bonecos. O que teriam a lhe dizer depois de tantos anos?
Que histórias poderiam contar, diferentes das antigas, se o Povo Alto ainda sofria como antes?

Já pensaram que moinhos também são
cata-ventos?
Cyprien, o personagem, tem um pouco de
Quixote em seu DNA.

-- Com licença, Cyprien, Mestre Theoddor... Ainda vão demorar? – A porta se entreabriu, deixando à mostra as faces avermelhadas de Marla e Donovan. – Não é para apressá-los, pelo contrário; é para saber se temos tempo de começar um trabalho aqui com o Tomas.
-- Que trabalho? – Os dois homens se levantaram, ao mesmo tempo que Hector e Stela entravam na sala, vindos da cozinha. Aryan, bem desperto no colo da mãe e com o rosto sujo de molho, estendeu os braços para Cyprien, que o pegou e o acomodou sobre os ombros antes de seguir Theoddor até lá fora.
-- Ooooouuuu! Cuidado com a cabeça! – brincou, ele mesmo se abaixando mais que o necessário ao passar pela porta; o garotinho riu, e o som se misturou ao do vento e ao das vozes de Pardalzinho e dos meninos. Estavam diante da casa com Elina e Tomas, que acabava de explicar alguma coisa enquanto apontava para cima.
-- Escute isso, tio! – exclamou ele, vendo Hector assomar à porta. – Já temos quem nos ajude a fazer o próximo cata-vento!
-- Gostaram, crianças? – O velho artista sorriu. – Fiz o primeiro quando Tomas perdeu os pais e veio morar comigo. Ele era menor que vocês, mas me ajudou mesmo assim, e foi como começou a trabalhar na oficina.
-- Eu quero aprender. Quero fazer um cata-vento desses para o telhado da minha casa – disse Brenan.
-- Eu também! – exclamou Pardalzinho. – Podemos vir aqui e aprender, não podemos, Mestre Theoddor?
-- Claro que sim. Ou Hector e Tomas podem ir ao Castelo para ensinar. Mas ninguém vai fazer cata-vento nenhum – disse Theoddor, solene – antes de terminar a caixa e as fantasias da peça. Foi para isso que pegaram material, não foi?
-- Sim! Vamos poder participar? – Os olhos da menina brilharam: ela correu para Theoddor, hesitou, depois se voltou com expectativa para Cyprien, que acabava de passar o pequeno Aryan para os ombros do pai. – E ele vai ficar com a gente?
-- Até o solstício, sim – confirmou o saltimbanco. – Depois disso, eu...
-- Oba! – Pardalzinho saltitou, correu para ele e o abraçou pela cintura, sem querer ouvir mais nada. Seus amigos se entreolharam e marcharam para se juntar ao abraço, e Donovan e Marla também se aproximaram para cumprimentá-lo pela decisão. Por fim, quando os meninos e os dois aprendizes mais velhos tinham se afastado e apenas Pardalzinho permancecia a seu lado, Elina deu dois passos em direção a Cyprien, mantendo os braços cruzados, mas olhando-o sem reservas dentro dos olhos.
-- Eu só queria ajudar – disse ela.
-- Entendo – ele murmurou.
-- Queria dizer a todos que tinha comprovado, mas nunca achei que você estivesse mentindo. Estou feliz que fique no Castelo até o solstício. Vai voltar para o Leste depois?
-- Acho que sim – disse Cyprien, embora quase não restassem dúvidas. – Por um tempo, ao menos, para rever meus amigos e...
-- E...?
-- Construir um cata-vento – ele deixou escapar.
A elfa o encarou por um longo momento antes de assentir.

***

Eu sempre quis escrever sobre a visita de Cyprien ao Castelo das Águias, mas este conto só tomou forma depois de eu assistir a este vídeo, com uma musicalização de um lindo poema de Mário Quintana. O vídeo inspirou também a criação da personagem Pardalzinho. Espero que gostem!!

Parte 1

Parte 14

Epílogo

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 14)

-- Você... – disse Theoddor, e riu: os lábios de Cyprien tinham se aberto, naquele exato momento, para também pronunciar uma palavra. – Você entende que os aprendizes não fizeram por mal, não entende? E que, da minha parte, nunca houve qualquer desconfiança?


-- É claro. – Suspirou, passando a mão pela barba; não sabia se devia ser totalmente sincero, mas não tinha nada a perder. – Fiquei com raiva, confesso, porque Elina e o Mestre Finn vieram com a ideia de ler minha mente. O senhor vai dizer que isso não tem nada de errado, mas eu sou do Leste, lá não crescemos perto de magos, e os poucos que conheci em minhas andanças eram...
-- Pessoas más, ou pouco confiáveis. Eu entendo – disse Theoddor, apoiando os cotovelos na mesa. – Mesmo nas Terras Férteis, muitos pensam desse jeito a respeito de magos. Meu pai era um deles -- o antigo senhor do Castelo das Águias. Uma ironia, pode-se dizer, que só seria maior se eu tivesse conseguido meu intento: estudar na Escola de Magia de Riverast.
Sorriu, barba e faces avermelhadas pelo reflexo do fogo. Cyprien se endireitou no assento e o olhou com atenção, como se o visse através de um novo prisma. Um excêntrico, um erudito, Mestre de Ciências da Terra – isso era o que sabia a respeito de Theoddor, bem como o fato de haver cedido seu castelo para abrigar a Escola de Artes Mágicas. Que ele próprio tivesse desejado tornar-se um mago, bom, isso era novidade, mas não era de estranhar, dadas as circunstâncias. Mas que, rico e inteligente como era, e vivendo nas Terras Férteis, não tivesse conseguido... Qual a razão?
-- Foi seu pai que o impediu de seguir esses estudos? – perguntou. Theoddor fez que não, seus olhos se voltando para o pulso de Cyprien, agora finalmente livre dos vestígios de tinta.
-- Meu pai jurou me deserdar se eu me tornasse um mago, mas fui a Riverast mesmo assim, e lá fiz o que pude para ser aceito – contou ele. – No início não queriam nem me receber, porque eu já tinha vinte anos e nunca havia manifestado o Dom; mas insisti até que consegui passar por um teste prévio, e então...
-- Então? – fez o rapaz, com expectativa.
-- Então chegaram à conclusão de que eu jamais seria um mago, que seria perda de tempo me ensinar qualquer coisa, e me mandaram embora. Com bons modos, no início, e não tão bons depois de eu ter me revoltado e discutido com alguns dos mestres. No fim, deixei a cidade como indesejável, ainda que eu fosse um cidadão das Terras Férteis... exatamente como você ao partir de Madrath.
Cyprien teve um sobressalto, levou a mão ao pulso, mas teve sangue-frio suficiente para ficar sentado. O olhar de Theoddor era penetrante, mas não maldoso; ele o descobrira, não pretendia desmascará-lo. Além disso, segundo haviam lhe explicado em Madrath -- e confirmaram, para seu alívio, ao obter os papéis de permanência em Vrindavahn --, a marca em tinta azul significava que causara um pequeno distúrbio, que devia se afastar por um tempo a fim de refletir e não que era algum tipo de criminoso... não era isso?
-- Sim, essa é uma lei exclusiva de Madrath. Cada cidade tem as suas, além daquelas a que todas obedecem, próprias da Liga das Terras Férteis – Theoddor explicou melhor. – Em Madrath, há sempre um afluxo muito grande de forasteiros, por causa das Escolas de Artes e Teatro e todos os festivais, e os passes de entrada são sempre temporários.  Quem tem um deles, e comete uma infração menor, tem que sair da cidade levando essa pulseira em tinta, que só desaparece cerca de uma lua depois, por mais que seja esfregada. Foi por isso que, tão logo o vi, eu soube de onde você vinha; e posso tentar adivinhar? Você tentou conseguir trabalho lá, ou aprendizado como ator, e o que acabou arranjando foi encrenca para si mesmo.
-- Mais ou menos isso – Cyprien teve que admitir. – Eu achava que tinha muito a aprender com os artistas de lá, mas que eles também aprenderiam um pouco comigo. Seria como uma troca, ou algo assim. Mas nem estavam interessados no que eu sabia, nem quiseram que eu aprendesse com eles. Eu não conseguiria acompanhar as aulas, disseram, porque me faltava... quer dizer, eu não sabia...
-- Ler. – Uma afirmação, não uma pergunta; Cyprien engoliu em seco, mas não pôde contestar. – Não poderia ler os textos das peças, assim como não pôde ler os avisos no nosso galpão de trabalho. Não é verdade?
-- Sim. – Ele sentiu as faces quentes, sentiu-se irritado. – E eu não tinha acreditado nisso quando Tomas me contou. Será possível que todo homem e toda mulher nas Terras Férteis saiba ler e escrever?
-- É uma das leis da Liga, cumprida quase à risca nas Onze Cidades, embora muitos deixem de segui-la nas cidades de humanos e principalmente no campo. Em Vrindavahn, obedecemos à lei: há uma escola no Templo de Bragi, duas mantidas pelo Conselho e várias por mestres e mestras em suas casas, e creio que todas as crianças frequentam alguma. O que é uma coisa boa – disse Theoddor, parecendo querer convencê-lo de algo. – Quem sabe, se aprender a ler, você ainda consiga entrar na Escola de Teatro. Afinal, tem o Dom da Arte, ao contrário de mim, que nasci sem o da Magia.
-- Obrigado pelo elogio, mas acho que os mestres de Madrath não concordam – disse Cyprien, e um travo amargo lhe subiu à boca. – Não conversamos muitas vezes, mas pude ver que não têm o menor apreço, sequer respeito pelos saltimbancos. Para eles, o que fazem é sublime, o que faço é vulgar e grosseiro. Mais ou menos como disse a Mestra Thalia.
-- Sim, suponho que pensem desse jeito – suspirou Theoddor. – Lamento muito, e também pelo que aconteceu no Castelo das Águias. Vamos pôr tudo em pratos limpos, é claro, mas eu sei... Mesmo que nunca o acusem de mais nada, não é tão rápido quebrar uma crença, conquistar a estima daqueles que foram ensinados a desconfiar. Ainda assim, talvez fosse possível, se você ficasse conosco até o fim da estação. O que acha? Há bastante trabalho, e o bronze correspondente para você, além do carinho de todas aquelas crianças.
-- Eu sei. – Sorriu, sem muito humor. – Bom, pelas crianças, acho que posso ficar até o solstício. Assim, ao menos, a peça vai ser encenada, como vocês queriam. E, além disso, eu me comprometi a ajudar.
-- Bravo! Ficarão muito felizes! – Theoddor estendeu o braço e apertou seu ombro, os olhos cheios de calor. – E eu vou manter a esperança de que você acabe mudando de ideia e ficando por mais tempo na Escola. Temos grandes mestres de Magia, Cyprien, e os de Arte devem estar à altura.
-- Ah, mas estão! Tomas trabalhou comigo por vários anos; fizemos mais teatro de bonecos, mas ele entende do outro também, apesar de não ter estudado em Madrath. Ele vai ficar aqui com o tio, e pode ser muito útil no Castelo. Já eu devo mesmo partir logo após o solstício. Estou pensando em rever minha casa, passar o resto do inverno em Pwilrie enquanto espero o tempo melhorar para seguir rumo ao País do Norte. Faz tempo que não ponho os pés no Labirinto.
-- O bairro do Povo Alto, na colina que sobe para a Fortaleza, não é? Ouvi falar – disse Theoddor, afagando a barba. – Li um pouco sobre a história de vocês. Fizeram grandes coisas no Leste, mas hoje quase não têm direitos. Deve ser difícil viver lá.
-- Sim, é difícil. Além de todas as restrições, as leis são duras conosco. Quando não são as leis, são os juízes. Mas já foi pior – disse Cyprien, voltando a se lembrar dos contadores de histórias. – Logo após a Reconquista, havia um toque de recolher, o que impedia os artistas de trabalharem à noite. Houve revolta e várias prisões até acabarem com isso, e mais tarde o Povo Alto foi desobrigado de usar um retalho vermelho costurado na roupa. E, pouco antes de eu nascer, houve uma rebelião em que morreu muita gente, mas conquistou alguns direitos, como o de trabalhar em lojas e oficinas fora do Labirinto. Ainda não podemos ser os proprietários, nem ingressar na maioria das corporações de ofício. Mas isso virá.
-- Virá? – indagou Theoddor, arqueando a sobrancelha; Cyprien hesitou, e o velho homem foi mais direto. – Você vai lutar por esses direitos quando voltar a Pwilrie? Vai ajudar seu povo, falar em nome deles com suas peças e canções? Porque foi isso que eu senti – acrescentou. – Foi isso que você me pareceu ter a dizer, com aquela história sobre o homem que não gostava de saltimbancos.

Imagem: Cyprien e Theoddor, retratados por Hidaru Mei.

Parte 1

Parte 13

Parte 15

domingo, 29 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 13)


Ouvindo isso, o velho marioneteiro se apressou em largar o atiçador e pegar as chaves. A porta se abriu, trazendo para dentro um vento frio e três crianças usando capas de inverno, que esvoaçaram como asas quando elas correram em direção a Cyprien.
-- Você ainda está aqui! – exclamou a menorzinha, com os olhos brilhando. – Que bom! Eu nunca iria me perdoar se não estivesse!

-- Por quê? O que houve? – Perplexo, ele olhou para Theoddor, que estava um passo atrás de Pardalzinho, ladeado por dois garotos. – Eles só querem se despedir antes que eu deixe Vrindavahn, ou...?
-- Pelo contrário: eles querem que você fique, e que volte ao Castelo das Águias – disse Theoddor. -- Mas antes vão explicar o que aconteceu e pedir desculpas. Não é mesmo, Linnet?
-- Sim! Eu, principalmente – disse Pardalzinho, em tom solene.
-- Mas por quê? O que as crianças fizeram? – Hector se acercou, curioso.
-- Trata-se da acusação que os artesãos fizeram a Cyprien. Sim, a acusação de roubo – disse Theoddor, e se voltou para o saltimbanco. – As crianças vão contar tudo, mas, para começar, quero esclarecer que elas também não conheciam as regras para usar os suprimentos do galpão de trabalho. Achavam que qualquer pessoa no Castelo podia pegá-los, e não voltaram a entrar lá depois que os avisos foram postos nas paredes. Já começou a entender?
-- Eu acho que... sim. – As palavras teceram uma teia na mente de Cyprien, aprisionaram memórias. – Quer dizer que as coisas que sumiram, que os artesãos me acusaram de ter roubado...
-- Fomos nós! Mas, como o Mestre Theoddor acabou de dizer, não sabíamos que era para anotar, e não fazíamos a menor ideia de que estavam suspeitando de você. Se soubéssemos, teríamos ido até lá e falado com os artesãos. Eu juro – disse Pardalzinho, e os meninos atrás dela confirmaram com acenos enérgicos.
-- Queríamos fazer uma surpresa... para você, mas também para todos no Castelo – explicou Brenan, o garoto de rosto comprido. – Estávamos montando uma caixa grande, que íamos pôr junto com os baús da casa da maga, na peça de solstício; de dentro da caixa sairíamos nós, vestidos como se fôssemos duendes do Reino Invisível, e faríamos uma correria pelo palco. O pessoal do Segundo e do Terceiro Círculo ia ficar sem saber o que fazer – concluiu, com uma risadinha --, mas íamos sair logo, é claro! Não queríamos atrapalhar a peça. Só aparecer um pouquinho nela.
-- E passar a lua seguinte copiando tratados de Princípios da Magia – disse Theoddor, sorrindo por trás da barba --, porque Thalia não deixaria isso barato. Mas eles decidiram que valeria a pena.
-- E ia mesmo. Mas nós nunca pensamos em causar problemas para Cyprien. Por isso viemos pedir desculpas – disse o lourinho, com as mãos para trás. – E amanhã Mestre Theoddor vai reunir os artesãos, e vamos explicar o que aconteceu e deixar claro que você nunca roubou nada do Castelo das Águias.
-- E a gente quer que você volte para lá, volte a nos ensinar malabarismo e quem sabe outras coisas, porque estamos gostando muito – disse Pardalzinho. – A gente – não só nós três, mas todo o Primeiro Círculo – a gente gosta muito de você.
-- E nós também – disse uma voz também feminina, porém mais adulta, vinda do extremo da sala. Cyprien ergueu os olhos e viu Marla de Kalket, a moça de faces rosadas, acompanhada por seus dois amigos inseparáveis: Elina, a jovem elfa que não conseguira ler seus pensamentos, e o rapaz de nariz arrebitado, Donovan. Tomas os fizera entrar em algum momento durante a fala das crianças, e o saltimbanco estava tão envolvido que nem mesmo ouvira a batida na porta.
-- Vocês aqui! – Theoddor franziu as sobrancelhas. -- Como foi que vieram, se eu trouxe o carro?
-- A pé, é claro. Na descida, andamos mais rápido que os cavalos, ainda mais nessa estrada cheia de buracos – replicou a elfa.
-- Ou não, pois acho que saímos quando o senhor ainda estava mandando aprontar o carro. Decidimos rápido – disse Donovan --, assim que soubemos o que as crianças tinham feito e que elas vinham pedir para Cyprien ficar no Castelo. Também queremos muito que ele fique. Pelo menos até o solstício.
-- Vai ficar? – perguntou Elina, sem rodeios. – Agora, que já não podem acusá-lo de roubar e mentir?
Não graças ao seu feitiço, pensou Cyprien, mas conseguiu segurar a língua e apenas olhar para ela. Com seu rosto de neve e manto ricamente bordado, a moça também lhe devia desculpas, mas, ao contrário de Pardalzinho e das outras crianças, sequer lhe passava pela cabeça pedi-las. Isso acabou, em grande parte, com a boa vontade que a atitude dos pequenos despertara nele.
-- Não sei se devo – disse, sem olhá-los, para não ver a decepção em seus rostos. – Posso provar que sou inocente desta vez, mas para mim já ficou claro: a maior parte das pessoas daqui vai sempre me olhar de lado, por tudo que eles ouviram a respeito de Pwilrie. Não só no Castelo das Águias, mas em Vrindavahn, nas Terras Férteis... Este não é um bom lugar para o meu povo.
-- Claro que é! Gostamos tanto de você! – exclamou Pardalzinho, e começou a saltitar enquanto enumerava. – Só no Castelo, tem a gente, o Mestre Theoddor, o Mestre Finn e o Mestre Camdell, e Mestra Sophia deve gostar também, mesmo sem ter falado nada. Os empregados gostam de você, principalmente a Netta, da cozinha; ela disse que você é divertido, e as moças que servem as mesas acham que é muito educado, sempre agradecendo por tudo, e o Gurion, que cuida das contas...
-- Linnet, querida, acho que Cyprien já entendeu – Theoddor interrompeu com brandura. – Ele sabe que muitas pessoas o apreciam; a questão é outra. E, Cyprien, eu gostaria de conversar a respeito, só nós dois, se não se importar em passar um pouco de frio lá fora. O povo do Leste costuma ser friorento... – Interrompeu-se, abanando a cabeça, como numa censura a si mesmo. – Ou talvez essa seja mais uma crença tola.
-- Pwilrie é muito quente no verão, e os invernos são amenos, por isso a maioria de nós estranha o clima frio. Mas eu passei os últimos cinco anos viajando pelo Norte – disse o rapaz. – O outono das Terras Férteis não é nada para quem viu a neve de Siberlint.
-- Oh, mas eu tenho uma ideia melhor! Por que não jantamos antes de vocês conversarem? – interveio Hector. – Desculpem a franqueza, mas minha barriga está roncando. E Stela fez comida para um batalhão.
-- Muito obrigado, mas nós já comemos – disse Theoddor. – E achei que vocês também tinham; peço desculpas por atrapalhar. Fico lá fora com os jovens enquanto vocês jantam.
-- Eu não estou com fome – disse Cyprien. – Posso sair com o senhor.
-- Eu também prefiro comer mais tarde. Agora, poderia levar todos vocês para conhecer a oficina – sugeriu Tomas, dirigindo-se aos aprendizes. – Já sei que alguns têm prática em mexer com fantoches, e outros vão começar na primavera. Talvez gostem de ver o que fazemos por aqui.
-- Isso! Dê a eles uns doces de amêndoas, daqueles que comprei mais cedo. Assim me livram da tentação de, amanhã, passar o dia todo beliscando enquanto trabalho – incentivou Tio Hector. – E Stela e eu vamos para a cozinha com o pequeno, e jantamos por lá, onde também está quentinho; e Theoddor e Cyprien podem ficar aqui na sala e conversar à vontade. Bebem um pouco de vinho, não bebem?
-- Hector, não quero atrapalhar... – começou Theoddor, mas se calou vendo que os outros agiam conforme a sugestão dos dois artistas. Em poucos momentos, o jovem ruivo tinha saído, acompanhado pelos aprendizes; sua mulher pôs sobre a mesa um pão de centeio, manteiga e algumas maçãs, Hector trouxe copos e uma jarra de vinho, e os dois deixaram a sala levando o bebê. Ficaram Theoddor e Cyprien, agora sentados frente a frente e pouco à vontade.
Ou talvez fosse apenas uma questão de tempo até começarem a falar.
***
Imagem: Crianças e o Flautista de Hamelin, por Arthur Rackham (1867 - 1939).

Parte 1

Parte 12

Parte 14

quarta-feira, 25 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 12)


-- Cyprien, por favor, não se precipite! – pediu Hector, olhos e tom de alarme. -- Deixe-me ir ao Castelo, falar com Theoddor, esclarecer a situação. Podemos ir amanhã, assim que o sol nascer. Eu sei que ele estará disposto a escutar!
-- E se as coisas não se resolverem você pode deixar a Escola e ainda assim ficar conosco até o final do inverno – Tomas ajuntou às palavras do tio. – Vamos fazer novos bonecos e cenários, criar novas histórias, e além de Vrindavahn podemos apresentá-los em duas ou três vilas aqui perto. Que tal isso?



-- Sim... E em cada uma vão me olhar de lado, e me acusar de ladrão na primeira oportunidade. – Cyprien se deteve, segurando a camisa que dobrava, e encarou o amigo. – Você conhece minha história, e não vou mentir: eu já roubei muitas coisas, desde uma fruta no mercado até a prataria de casas ricas, mas nunca tirei nada de alguém que tivesse me acolhido, me hospedado, feito alguma coisa por mim. Não toquei nos suprimentos daquele galpão. Quando precisei das tábuas, perguntei se podia pegar, então tiveram a ideia de preparar essa armadilha. E, apesar de terem me defendido, impedido que os artesãos me espancassem, os aprendizes não acreditaram no que eu disse. Tentaram usar Magia para ver se eu estava mentindo. Se nem eles confiam em mim, o que esperar dos outros?
Meteu a camisa na mochila, socando-a junto com o resto de suas roupas -- um pobre substituto para as caras que gostaria de esmurrar. Estavam na sala de Hector, aquecida por lenha de madeira; o jantar estava pronto, porém Stela o deixara na cozinha e viera, com o filho no colo, participar da discussão. Tinha, é claro, a mesma opinião do marido e do Tio Hector, mas por ela a tentativa de falar com Theoddor seria deixada de lado, e Cyprien começaria desde já a trabalhar na oficina. Ali não correria o risco de que voltassem a acusá-lo de roubo, e não havia magos nem aprendizes que tentassem enfeitiçá-lo.
-- Não é feitiço, meu amor – Tomas corrigiu com brandura. – Não é para dominar ou fazer mal à pessoa.
-- Não é para ler os pensamentos? Isso é dominar – replicou Stela. – Imagine se eu soubesse o que você está pensando, a todo momento; se você pensasse em outra mulher, se decidisse comer escondido aquele queijo que você adora, mas que não lhe faz bem... Acha que eu ia deixar por isso mesmo?
-- Nunca – suspirou Tomas. – Ia encher meus ouvidos, no mínimo.
-- Ou ia dar um jeito de você não encontrar a mulher, ou esconder o queijo. Stela tem razão: ler os pensamentos de alguém é dominá-lo – disse Cyprien, que continuava a guardar suas roupas. Teria que abrir mão de uma parte a fim de levar, da sua bagagem de artista, o indispensável para garantir seu sustento na viagem. E, sabendo que o tempo não lhe permitiria chegar ao País do Norte, contentou-se com a ideia de passar o inverno em sua casinha no Labirinto, o bairro destinado aos descendentes do Povo Alto após a Reconquista de Pwilrie, várias gerações atrás, como explicavam os contadores de histórias.
Com todos os problemas, e não eram poucos, que enfrentava por conta deles, Cyprien tinha muito orgulho dos seus antepassados. Vindos de um lugar misterioso – além das névoas do Mar Interior, diziam as lendas --, os primeiros a chegar eram sábios e capazes, amavam a música e a arte e estudavam as estrelas, mas também eram guerreiros que conquistaram várias cidades e as fizeram prosperar. Sinnlann, Faglan, Berlot, Pwilrie, principalmente Pwilrie, tornada capital do Povo Alto e redesenhada com ruas bem traçadas, jardins refrescados por fontes e a gloriosa Fortaleza sobre a colina. Com o tempo, a era dos guerreiros deu lugar à dos artesãos e comerciantes sagazes, que buscavam fortuna, mas faziam o possível para manter a paz – o que, no entanto, não bastou para afastar a inveja e a cobiça das cidades vizinhas. Lideradas por Altamir, a mais poderosa e única a ser governada por um rei, elas moveram guerra contra o Povo Alto, destruíram seus jardins e observatórios e os reduziram em grande parte à servidão.
Na capital, onde o poder foi devolvido aos antigos senhores – os Fundadores, como chamavam a si mesmos, embora muitos ocultassem o sangue mestiço --, os poucos membros sobreviventes do Povo Alto foram proibidos de possuir terras e de fazer parte das guildas de artes e ofícios, além de várias outras regras, parte das quais ainda vigorava. Com tantas portas fechadas, tiveram que se arranjar como foi possível, e logo ganharam fama de trapaceiros e ladrões, que os senhores ajudaram a espalhar sem se dar conta de que, fora dos muros de Pwilrie, ela se estendia cada vez mais a toda a população da cidade. Atualmente, bastava alguém dizer que vinha de lá para atrair olhares enviesados, e isso era ainda pior nas Terras Férteis do que no Leste ou no País do Norte, como Cyprien tivera ocasião para comprovar. Fora um erro, um estúpido erro pensar que poderia superar aquilo, passar por cima de uma desconfiança construída ao longo de séculos, ser aceito... Embora, é claro, em toda parte houvesse encontrado exceções.
-- No meio disso tudo, fica o meu agradecimento a vocês – disse ele, olhando demoradamente para cada um, e também para o pequeno Aryan; não voltaria a cantar para que ele dormisse, e já sentia saudade. – Aqui não deu certo para mim, mas gostei de conhecer o senhor, Mestre Hector, e de ver a família reunida. E, Tomas... Foi um prazer ser seu parceiro nestes quatro anos.
-- Mas ainda somos parceiros – disse o amigo, embora sua voz hesitasse a partir dali. – Se não vai mesmo passar o inverno em Vrindavahn, nós podemos... podemos nos reencontrar daqui a algumas luas, talvez meio ano. Ou eu posso escrever para você aos cuidados do Templo de Pwilrie e aí combinamos tudo. Ainda não sei se vou ficar aqui de vez.
-- Não há por que nos iludirmos. – Cyprien inclinou a cabeça. -- Nós dois sabemos muito bem que você vai ficar. E está mais do que certo: seu tio precisa de você aqui, e a vida vai ser mais tranquila para Stela e Aryan. E outros filhos, que com certeza vão vir. Mas isso não quer dizer que nunca mais nos veremos – prosseguiu, tentando soar otimista. – Vamos manter contato, de um jeito ou de outro, e um dia ainda vamos nos reencontrar. Só que agora, bem...
Fez uma pausa, respirando fundo, e ia voltar a falar quando uma súbita batida na porta o interrompeu. Stela o encarou com alarme, e Tomas ergueu as sobrancelhas, ao passo que o Tio Hector seguiu o que parecia ser seu protocolo nessas ocasiões.
-- Quem é? – perguntou, empunhando o atiçador da lareira.
-- Ele também se armou antes de saber que éramos nós, da primeira vez? – Cyprien sussurrou para Tomas, sem conseguir se conter.
-- Abra sem susto, meu amigo. Sou eu, Theoddor – disse a voz conhecida lá fora, e uma espécie de chilreio antecipou o que revelaria em seguida. – E aqui comigo estão certas pessoas... que têm uma longa história para contar.


***

Imagem: teatro de fantoches medieval. Manuscrito da Bodleian Library, ca. século XVI.

Parte 1

Parte 11

Parte 13

quarta-feira, 18 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 11)

-- Nem pense em lançar um encanto, em me dominar com sua Magia – tornou ele, pronunciando bem cada sílaba; Finn se viu tão perplexo que não pôde retrucar, e Cyprien se voltou para encarar os outros. – Quanto a vocês, não se preocupem mais: sua armadilha deu certo, irei embora do Castelo e da sua preciosa cidade. Só não encostem em mim. E isso inclui você e seus amigos – acrescentou, com o que Elina também baixou a mão que pretendia pousar em seu braço.



-- Mas, Cyprien, você não entendeu! Ninguém quer dominá-lo, era só... –Donovan começou a dizer, mas se calou ao ver que o outro lhe dava as costas. Theoddor esperou que Ruaridh tentasse detê-lo, ou algum dos outros, mas em vez disso se afastaram para lhe dar passagem, resmungando entre si e coçando os cotovelos enquanto ele marchava a passos largos para longe da ala. Por que isso me surpreende?, pensou, com desalento. Expulsá-lo, mandar embora a escória de Pwilrie -- era o que todos queriam desde o início.
-- Mestre Theoddor, faça alguma coisa! – pediu Marla, aflita. – Ele não pode ir embora desse jeito!
-- Melhor que vá, menina – disse Ranald. – É um ladrão e mentiroso.
-- Ninguém provou nada disso! Por favor, Mestre – insistiu a garota. – E o senhor também, Mestre Finn, explique o que ia fazer, que isso era para ajudá-lo...
-- Ele não entenderia – disse Theoddor. – Não neste momento. E nem sei se iria adiantar... se Finn ou Elina afirmassem que Cyprien falou a verdade – acrescentou, respirando fundo enquanto seus olhos relanceavam pelos rostos dos homens.
-- Mas nem vai falar com ele, Mestre? Tudo vai ficar por isso mesmo? – perguntou Donovan.
-- Ainda não sei o que vou fazer. Mas sim, pretendo falar com Cyprien. Assim que os ânimos esfriarem um pouco.
-- Tem de ser logo, antes que ele deixe Vrindavahn. Foi o que entendi que ia fazer – lembrou o rapaz, e sua boca se torceu sob o nariz arrebitado. – E ele deveria ficar até a peça do solstício.
-- Sim! Foi um compromisso que assumiu conosco – afirmou Elina, erguendo a cabeça. – E além de nós, do Segundo e Terceiro Círculos, tem também as crianças. Como elas vão se sentir, se ele for embora sem dizer adeus?
-- As crianças! Você me deu uma boa ideia – disse Finn, estalando os dedos. – Quer dizer, uma ideia para sugerir a Theoddor, se ele gostar. Venham, vamos voltar ao Castelo – acrescentou, com um gesto que incluía o amigo e os aprendizes. – De qualquer forma, está quase na hora do jantar.
-- Sim! O dia já acabou. Podem recolher as ferramentas – disse Theoddor aos artesãos, e se conteve para não acrescentar: e esses malditos sorrisos satisfeitos. Os homens se dispersaram, e ele seguiu até o refeitório ao lado de Finn, cuja sugestão, como o meio-elfo não tardou a explicar, consistia em levar alguns dos aprendizes mais novos quando fosse esclarecer as coisas com Cyprien.
-- Ele está com raiva e magoado, mas isso não tem a ver com as crianças, que o adoram e que ele sem dúvida adora – arrazoou o mago. – Talvez, se elas pedirem, ele permita que o ajudemos a provar que estava dizendo a verdade.
-- Não acho que ele concorde em passar por qualquer coisa que envolva Magia – replicou Theoddor --, e, como disse, não sei se isso iria ajudar muito. Vão continuar a hostilizá-lo de um jeito ou de outro. Mas podemos levar as crianças, para tentar mantê-lo aqui até o solstício. Ou pelo menos – acrescentou, com um suspiro – para que ele se despeça delas e aceite as nossas desculpas.
Finn concordou, a expressão grave. Também fizera algo de que se desculpar: a forma como se dirigira a Cyprien sem explicações, sem pedir permissão ou mesmo dirigir-lhe a palavra antes de quase vasculhar seus pensamentos. Não tinha sido por mal, as intenções de Finn eram sempre as melhores, mas fora uma atitude inconsequente, como várias vezes Theoddor já o vira tomar. Finn deveria trabalhar com um parceiro, pensou ele, vendo o rosto suave e contraído de seu amigo. Devia dividir suas práticas com Thalia, ou com um mestre de Magia do Pensamento tão firme quanto ela. Não pude ser um mago, mas estudei o bastante para saber que a Forma depende de uma vontade forte o bastante para ancorá-la.
Theoddor havia antecipado uma chegada sem alarde, mas as notícias voavam como águias naquele castelo: tão logo pisaram no salão principal, ele e Finn se viram cercados por aprendizes do Primeiro e do Segundo Círculo, perplexos e exaltados, perguntando se era verdade que Cyprien tinha decidido deixar a Escola.
-- Calma, crianças! Sim, ele disse isso, houve uma confusão com o pessoal que está trabalhando no anfiteatro – explicou Theoddor; pôs a mão no ombro de Linnet, a menorzinha, que balançava inquieta sobre os próprios pés, e prosseguiu em tom de confidência. – Ele saiu daqui muito ofendido, e com isso nem deve ter se lembrado de falar com vocês. Mas sei que gosta muito de todos, e por isso tive... Na verdade, foi Mestre Finn que teve essa ideia, mas acho que vai funcionar. Por que alguns de vocês não vêm comigo até Vrindavahn, e lá falamos com Cyprien e pedimos para ele voltar ao Castelo? Ao menos para a festa do solstício, quando irão encenar a peça. Acho que, se forem vocês a pedir, ele acaba aceitando. O que me dizem?
-- A gente vai! – afirmou um dos meninos, com o que os outros concordaram em coro. Alguns dentre eles, porém, se entreolharam com expressões culpadas, e o último relance de olhos foi para Linnet, que parecia – Theoddor percebeu, e ficou alerta – não apenas agitada, mas quase ao ponto de chorar.
-- Mestre, a gente não sabe muito bem o que houve – sussurrou ela, com aquela vozinha infantil. – Mas agora há pouco disseram que Cyprien foi chamado de ladrão... só por causa de umas tintas e lonas que estavam no galpão de trabalho. Isso é verdade?
-- Sim, Linnet, foi isso que aconteceu, mas ele disse que não pegou nada, e nós acreditamos – Theoddor tentou acalmá-la. – Devem ter posto as coisas fora do lugar. Não achamos que Cyprien tenha feito...
-- Não! Ele não roubou nada! – gritou a menina, e bateu com o pé no chão; Theoddor recuou, chocado, e o salão e todos dentro dele congelaram antes que Linnet retomasse a fala.
-- Cyprien não fez nada de errado, e temos que ir atrás dele agora mesmo. – Lágrimas escorriam por suas faces; ela se voltou para Brenan e os que estavam a seu lado, todos de cabeça baixa. – E eu nunca mais vou conseguir dormir... se a gente não trouxer ele de volta para o Castelo.
...

Imagem: Um centro de energia muito utilizado na Magia do Pensamento

Parte 1

Parte 10

Parte 12



quarta-feira, 11 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 10)

Foi no terceiro dia após sua visita às obras, num fim de tarde frio e ventoso em que Theoddor trabalhava no jardim de ervas. O aviso foi trazido por um adolescente, filho e ajudante de um dos pedreiros, cuja pressa em encontrá-lo e pedir ajuda demonstrava um claro senso de justiça. Pelo menos isso.


-- Mestre, está havendo uma briga séria lá no galpão de trabalho. Aquele artista de Pwilrie... ele está sendo acusado de roubo – afirmou o rapaz, sem fôlego, os olhos arregalados. – Ele diz que nunca antes pegou nada, só que o pessoal...
-- Oh, pelas joias de Freya! Será possível? – Levantou-se quase de um salto, sem ligar à dor nos joelhos. – Corra na frente, menino, e diga que estou indo! Diga que esperem por mim antes de tomarem qualquer atitude!
O garoto assentiu e disparou entre os canteiros. Theoddor o seguiu, o mais rápido possível, alarmado com a urgência e com o caminho que as coisas poderiam tomar. Os sons da briga já se ouviam bem antes de chegar ao galpão, diante do qual todos os artesãos e operários da obra estavam reunidos. Também boa parte dos aprendizes mais velhos, inclusive os Três Espertinhos – Marla, Elina e Donovan --, cuja intervenção, sob a forma de protestos e dos próprios corpos usados como escudo, era o que impedia Cyprien de Pwilrie de ser agarrado e espancado pelos homens furiosos.
Não que ele mesmo não soubesse se defender.
-- Estou avisando. O próximo que tocar em mim sai de braço quebrado – Theoddor o ouviu dizer, num tom pausado em que procurava conter os limites de sua raiva. Tinha os pés bem plantados no chão, um joelho flexionado, como se pronto para saltar; as mãos estavam abertas, e os dedos longos eram muito fortes. Isso já fora comprovado por um dos gesseiros, que estava numa ponta do grupo, com expressão dolorida, massageando o próprio braço. Theoddor passou por ele e se aproximou de Ruaridh, que já esperava encontrar ali, à frente dos acusadores, com a cara toda vermelha e os punhos cerrados.
-- Ainda bem que o senhor chegou. Eu mal estou conseguindo me segurar – bufou ele, assim que viu Theoddor. – Nós pegamos esse daí saindo com duas pranchas de madeira; não tinha registrado isso no livro, e ainda se fez de desentendido, disse que tinha perguntado ao Ranald e ele respondeu que podia levar o que quisesse! E que não sabia que devia anotar, e que era a primeira vez que tirava alguma coisa do galpão!
-- Mas eu nunca tinha pegado nada, a não ser ferramentas, que sempre ponho de volta! – replicou o saltimbanco. – Por que me acusa do que não fiz?
-- E por que você não anotou? – indagou, de braços cruzados, Ranald, um carpinteiro cuja família trabalhava havia gerações para a de Theoddor. – Eu não disse simplesmente que podia levar. Disse para fazer como manda a regra, e ontem mesmo eu me dei ao trabalho de escrever um aviso e deixar bem à vista na parede. E você tem dois bons olhos, não tem?
-- Aviso? – Theoddor se voltou para o construtor, que mordia o próprio bigode. – Não falaram com Cyprien sobre as regras, como pedi?
-- Não, mas escrevemos. Deixamos um aviso bem claro sobre o livro de registro em cada canto do galpão. Não dá na mesma? – disse o outro, em tom de desafio.
Theoddor o encarou sem saber o que pensar, depois olhou para Cyprien, ainda escudado pelos jovens aprendizes. Suas faces morenas estavam avermelhadas, mas, por baixo disso, surgira uma palidez que por si só teria sido capaz de trai-lo. Um fingidor, mortificado ao ser descoberto -- mas que, com toda certeza, não se sentira desse jeito até um momento atrás. Foi isso que fez Theoddor compreender.
Não, Cyprien não tinha roubado nada. Mas também não tinha lido os avisos.
E as leis das Terras Férteis, que os senhores do Castelo das Águias tinham feito cumprir até pelas famílias mais humildes de Vrindavahn, faziam com que os homens nem sequer suspeitassem da razão.
-- Eu... Não sabia das regras – tornou o saltimbanco, após alguns instantes, respirando fundo. – Ninguém me falou, e não... não reparei que aqueles papéis na parede eram sobre isso. Da próxima vez, prometo que...
-- E das outras vezes? – Não foi Ruaridh, nem Ranald que perguntou, mas sim o gesseiro, que segurava o braço como se estivesse numa tipoia. – E tudo aquilo que só começou a sumir depois de você estar na Escola?
-- Sobre isso, já falei: não sei de nada – disse Cyprien, voltando à defensiva; o vozerio recomeçou, mas, antes que os ânimos se elevassem demais, Finn abriu caminho e irrompeu em meio ao círculo de homens zangados.  
-- O que está acontecendo? – perguntou, olhando de um lado para o outro e depois para Theoddor. – Uma das moças da cozinha viu o garoto ir à sua procura, e você sair correndo da horta... e agora todo mundo parece em pé de guerra! Tem a ver com o Cyprien? É aquilo de que Ruaridh nos falou há dois ou três dias?
-- O quê? Você tinha falado com os mestres a meu respeito? – Cyprien se voltou para o construtor, a expressão contraída, fazendo-o parecer mais velho.
-- E se falei? Quem não deve, não teme – retrucou o outro. – Prove que não tirou nada do galpão sem avisar!
-- Prove você que tirei! – Agora, peito estufado, ele também parecia mais alto.
-- Ei, vocês dois, tenham calma. Há um jeito muito simples de resolver o impasse – disse Finn, e se voltou para os aprendizes. – Não sei como vocês não pensaram nisso.
-- Eu pensei – respondeu Elina, e suas faces brancas como neve se tingiram de um tom rosado. – E até tentei... mas não consegui.
-- Entendo. Não é simples, com a comoção. Na verdade, nem para mim – sorriu o mestre, e deu um passo em direção a Cyprien. – Mas veja, para saber se alguém está mentindo, é preciso focar na...
-- Nem ouse!
Finn se deteve em meio ao gesto de erguer a mão e arregalou os olhos. Cyprien estava em pé diante dele, o indicador apontado, uma ameaça muito clara sobre o que o aguardava se cruzasse o limite. Era apenas um saltimbanco, apenas um homem sendo acusado por muitos – mas sua voz, ainda assim, soara cheia de poder.

...

Imagem: Iluminura de códice medieval (séc. XV-XV) retratando um jardim de ervas.

Parte 1

Parte 9

Parte 11