domingo, 26 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Epílogo)


O dia em que inauguraram o anfiteatro entrou para os anais do Castelo das Águias. Foi no solstício do inverno, ao fim do segundo ano de fundação da Escola de Artes Mágicas, e a primeira peça apresentada foi uma criação de Cyprien de Pwilrie. Guedésio, o velho avarento, foi vivido por Donovan, a maga poderosa por Marla; as crianças arrancaram aplausos em seu entreato como duendes, e Elina ficou nos bastidores com Cyprien, ajudando-o a soprar as falas esquecidas. Além da peça, houve também um ritual, e tudo terminou com uma festa, à qual compareceu um visitante trazido ao Castelo por Thalia. Era Shanion de Ardost, um experiente Mestre de Sagas, que começou suas aulas dois ou três dias após o solstício e dirigiu todas as peças até deixar a Escola, anos depois, para se casar com a jovem escolhida para ele pela família. Então veio Anna de Bryke, e o anfiteatro voltou a se encher de risos e brincadeiras, como acontecera durante a breve estadia de Cyprien.


O saltimbanco não ficou por muito tempo mais em Vrindavahn. Tomas e sua família insistiram que o fizesse, assim como os aprendizes, especialmente a menina que ele chamava de Pardalzinho; mas Cyprien tomara uma decisão, e não era de seu feitio voltar atrás. Ainda passou um quarto de lua ensinando malabarismo, mas sua intenção era apenas ganhar mais algum dinheiro, e com isso pagar uma passagem de barco até Pwilrie. Então, quando ficou claro que iria mesmo embora, Hector organizou um jantar de despedida, e foi quando Theoddor e Cyprien se encontraram pela última vez. Não houve confidências, como na ocasião anterior, mas os dois riram juntos e ergueram vários brindes ao longo da noite.

Quando ficaram meio altos, foram até lá fora, onde se demoraram tomando um pouco de ar fresco. Sobre o que conversaram, se é que o fizeram depois de todo aquele vinho, Theoddor não contou em seu diário, apenas lamentou o fato de ter bebido demais e dado pouca atenção ao amigo que estava de partida. Também observou que o jovem estava mais calado que de costume, e que fitou durante um longo tempo o cata-vento que girava sobre o telhado. Quanto ao próprio Cyprien, não tinha como manter um diário, mas suas lembranças dessa noite ficaram para sempre misturadas às de sua chegada em Vrindavahn, com a dor da rejeição ainda recente e a pulseira de tinta azul. Esta, agora, estava apagada, como grande parte da raiva e da tristeza que trouxera de Madrath, e muito disso se devia a Theoddor e seu Castelo das Águias; mas na verdade tinha sido ali, admirando a obra singela de Hector, que ele pensara pela primeira vez em regressar a Pwilrie.
Voltar para o Povo Alto, vivenciar as lutas cotidianas ao lado de seus amigos. Usar sua arte em favor deles, e -- sim, montar um cata-vento bem colorido no alto de sua casa no Labirinto.
Quando os ventos da mudança soprassem, ele já estaria lá.

Imagem: Cyprien retratado por Angela Takagui.

Parte 1

Parte 15

****

Espero que tenham curtido esta história do Cyprien!

Querem saber o que foi feito dele uns anos depois? Cliquem aqui!

E até a próxima - que não irá demorar!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 15)

-- Eu acho que... Bom, sim, eu falo do que sinto. – Respirou fundo, pondo os pensamentos em ordem; preferia não ter essa conversa, mas não havia como escapar. – A arte mostra essas coisas, mostra as injustiças e o que gostaríamos que acontecesse para acabar com elas. E houve um tempo em que pensei em fazer mais do que isso, mas agora... não estou certo nem sequer sobre voltar a viver em Pwilrie.
Imagem do Pinterest, mostrando um cata-vento de jardim.
Sempre associei o Cyprien a cata-ventos.

-- Por quê? Entendi que você tem uma casa lá. Família, provavelmente. Ainda é tão jovem que talvez até seus pais...
-- Não. – Cyprien inclinou a cabeça. – Não tive pais nem irmãos, primos ou tios. Minha mãe era sozinha e morreu quando eu era pequeno. Fiquei com meu padrasto, que me ensinou muito do ofício, apesar de me bater e me explorar, aquele maldito. Ele também morreu, e desde os doze anos contei apenas com vizinhos e amigos.
-- Sinto muito – disse Theoddor, com simpatia. – Sua vida não parece ter sido nada fácil. A minha começou bem; nada me faltava, tive meus pais até depois dos vinte anos e um irmão de quem gostava muito. Infelizmente ele morreu jovem, e acabei por ser o único herdeiro do Castelo. Em outros tempos, teria um título, mas isso já havia caído, assim como vários privilégios da nobreza humana e élfica. Ainda assim tinha uma bela propriedade, e todo ano os cidadãos de Vrindavahn me pagavam uma taxa através do Conselho. Sabe o que fiz com tudo isso?
-- Sei. Fundou a Escola de Artes Mágicas.
-- Exato. Realizei meu sonho – afirmou Theoddor. – Escrevi para Camdell, o único amigo de verdade que fiz em Riverast e o único a defender a ideia de que a Magia podia despertar sem o Dom inato, desde que houvesse um aprendizado adequado. Passamos anos planejando cada detalhe. E quando estava tudo certo, fiz um acordo com o Conselho sobre os impostos e instalamos a Escola no Castelo das Águias. Que tal?
-- Impressionante – disse Cyprien, e refletiu por um momento. – A Escola é fantástica, e deve lhe dar muito orgulho. Só que... isso não é, exatamente, realizar o seu sonho, certo? O senhor queria estudar Magia... mesmo fundando sua própria escola aqui em Vrindavahn, deu a entender que não conseguiu.
-- É verdade, eu não. Mas, a partir de agora, um menino como o que eu era, meninos e meninas como alguns dos que vieram até aqui, também nascidos sem o Dom, podem despertá-lo através da Arte. Não é garantido, não é fácil, mas é um caminho onde antes não existia nenhum. Foi isso que fiz pelos meus – acrescentou, com calor. – Por eles, usei o que tinha, assim como você pode usar o que tem: seu talento e carisma.
-- Carisma... – Saboreou a palavra, pensativo; trazia ecos não muito distantes. – Já me disseram, mais de uma vez, que eu tinha isso. Até que seria um bom líder trabalhando pelo Povo Alto.
-- Seria mesmo, como não? – replicou Theoddor. – No Castelo, conseguiu logo o afeto das crianças, a confiança de vários de nós, e incomodou aqueles que se incomodam com o brilho alheio. Meu convite para que fique está de pé, mas, se for seu desejo partir, não perca de vista aquilo que você mesmo disse: o Povo Alto é oprimido, e a arte é uma das armas mais poderosas contra a opressão. Na verdade, é ao mesmo tempo uma arma e uma cura. Pense nisso, e não perca mais seu tempo brigando com os mestres de Madrath, como briguei com os de Riverast.
-- Mas não briguei com eles. – Cyprien franziu a testa. – Fui rejeitado na Escola de Teatro, aí passei três dias afogando as mágoas na casa de uma moça que eu tinha conhecido por lá. E meus papéis de permanência expiraram, então me deram a pulseira de indesejável, por causa de um único dia de atraso ao deixar a cidade.
-- O quê? Então o galhardo Cyprien de Pwilrie é menos belicoso do que este velho? – brincou Theoddor, exagerando o tom de surpresa. Ruguinhas se acentuaram em torno de seus olhos risonhos, e o rapaz sentiu-se aquecer por dentro: aquele era de fato um bom homem, assim como Tio Hector, como Mandol e Thespio e Sanson e todos os mestres que o haviam ajudado e aconselhado ao longo da vida. Também Rowenna, a curandeira, e o cego Omar, com suas histórias sobre os tempos gloriosos – com sua insistência para que ele, Cyprien, ficasse no Labirinto e comandasse um movimento em favor do Povo Alto. Mais que insistência, tinham fé em que, um dia, ele faria tudo acontecer. Ainda acreditavam quando o viram partir pela última vez, um jovem músico e malabarista atraído pela novidade que era o teatro de bonecos. O que teriam a lhe dizer depois de tantos anos?
Que histórias poderiam contar, diferentes das antigas, se o Povo Alto ainda sofria como antes?

Já pensaram que moinhos também são
cata-ventos?
Cyprien, o personagem, tem um pouco de
Quixote em seu DNA.

-- Com licença, Cyprien, Mestre Theoddor... Ainda vão demorar? – A porta se entreabriu, deixando à mostra as faces avermelhadas de Marla e Donovan. – Não é para apressá-los, pelo contrário; é para saber se temos tempo de começar um trabalho aqui com o Tomas.
-- Que trabalho? – Os dois homens se levantaram, ao mesmo tempo que Hector e Stela entravam na sala, vindos da cozinha. Aryan, bem desperto no colo da mãe e com o rosto sujo de molho, estendeu os braços para Cyprien, que o pegou e o acomodou sobre os ombros antes de seguir Theoddor até lá fora.
-- Ooooouuuu! Cuidado com a cabeça! – brincou, ele mesmo se abaixando mais que o necessário ao passar pela porta; o garotinho riu, e o som se misturou ao do vento e ao das vozes de Pardalzinho e dos meninos. Estavam diante da casa com Elina e Tomas, que acabava de explicar alguma coisa enquanto apontava para cima.
-- Escute isso, tio! – exclamou ele, vendo Hector assomar à porta. – Já temos quem nos ajude a fazer o próximo cata-vento!
-- Gostaram, crianças? – O velho artista sorriu. – Fiz o primeiro quando Tomas perdeu os pais e veio morar comigo. Ele era menor que vocês, mas me ajudou mesmo assim, e foi como começou a trabalhar na oficina.
-- Eu quero aprender. Quero fazer um cata-vento desses para o telhado da minha casa – disse Brenan.
-- Eu também! – exclamou Pardalzinho. – Podemos vir aqui e aprender, não podemos, Mestre Theoddor?
-- Claro que sim. Ou Hector e Tomas podem ir ao Castelo para ensinar. Mas ninguém vai fazer cata-vento nenhum – disse Theoddor, solene – antes de terminar a caixa e as fantasias da peça. Foi para isso que pegaram material, não foi?
-- Sim! Vamos poder participar? – Os olhos da menina brilharam: ela correu para Theoddor, hesitou, depois se voltou com expectativa para Cyprien, que acabava de passar o pequeno Aryan para os ombros do pai. – E ele vai ficar com a gente?
-- Até o solstício, sim – confirmou o saltimbanco. – Depois disso, eu...
-- Oba! – Pardalzinho saltitou, correu para ele e o abraçou pela cintura, sem querer ouvir mais nada. Seus amigos se entreolharam e marcharam para se juntar ao abraço, e Donovan e Marla também se aproximaram para cumprimentá-lo pela decisão. Por fim, quando os meninos e os dois aprendizes mais velhos tinham se afastado e apenas Pardalzinho permancecia a seu lado, Elina deu dois passos em direção a Cyprien, mantendo os braços cruzados, mas olhando-o sem reservas dentro dos olhos.
-- Eu só queria ajudar – disse ela.
-- Entendo – ele murmurou.
-- Queria dizer a todos que tinha comprovado, mas nunca achei que você estivesse mentindo. Estou feliz que fique no Castelo até o solstício. Vai voltar para o Leste depois?
-- Acho que sim – disse Cyprien, embora quase não restassem dúvidas. – Por um tempo, ao menos, para rever meus amigos e...
-- E...?
-- Construir um cata-vento – ele deixou escapar.
A elfa o encarou por um longo momento antes de assentir.

***

Eu sempre quis escrever sobre a visita de Cyprien ao Castelo das Águias, mas este conto só tomou forma depois de eu assistir a este vídeo, com uma musicalização de um lindo poema de Mário Quintana. O vídeo inspirou também a criação da personagem Pardalzinho. Espero que gostem!!

Parte 1

Parte 14

Epílogo

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 14)

-- Você... – disse Theoddor, e riu: os lábios de Cyprien tinham se aberto, naquele exato momento, para também pronunciar uma palavra. – Você entende que os aprendizes não fizeram por mal, não entende? E que, da minha parte, nunca houve qualquer desconfiança?


-- É claro. – Suspirou, passando a mão pela barba; não sabia se devia ser totalmente sincero, mas não tinha nada a perder. – Fiquei com raiva, confesso, porque Elina e o Mestre Finn vieram com a ideia de ler minha mente. O senhor vai dizer que isso não tem nada de errado, mas eu sou do Leste, lá não crescemos perto de magos, e os poucos que conheci em minhas andanças eram...
-- Pessoas más, ou pouco confiáveis. Eu entendo – disse Theoddor, apoiando os cotovelos na mesa. – Mesmo nas Terras Férteis, muitos pensam desse jeito a respeito de magos. Meu pai era um deles -- o antigo senhor do Castelo das Águias. Uma ironia, pode-se dizer, que só seria maior se eu tivesse conseguido meu intento: estudar na Escola de Magia de Riverast.
Sorriu, barba e faces avermelhadas pelo reflexo do fogo. Cyprien se endireitou no assento e o olhou com atenção, como se o visse através de um novo prisma. Um excêntrico, um erudito, Mestre de Ciências da Terra – isso era o que sabia a respeito de Theoddor, bem como o fato de haver cedido seu castelo para abrigar a Escola de Artes Mágicas. Que ele próprio tivesse desejado tornar-se um mago, bom, isso era novidade, mas não era de estranhar, dadas as circunstâncias. Mas que, rico e inteligente como era, e vivendo nas Terras Férteis, não tivesse conseguido... Qual a razão?
-- Foi seu pai que o impediu de seguir esses estudos? – perguntou. Theoddor fez que não, seus olhos se voltando para o pulso de Cyprien, agora finalmente livre dos vestígios de tinta.
-- Meu pai jurou me deserdar se eu me tornasse um mago, mas fui a Riverast mesmo assim, e lá fiz o que pude para ser aceito – contou ele. – No início não queriam nem me receber, porque eu já tinha vinte anos e nunca havia manifestado o Dom; mas insisti até que consegui passar por um teste prévio, e então...
-- Então? – fez o rapaz, com expectativa.
-- Então chegaram à conclusão de que eu jamais seria um mago, que seria perda de tempo me ensinar qualquer coisa, e me mandaram embora. Com bons modos, no início, e não tão bons depois de eu ter me revoltado e discutido com alguns dos mestres. No fim, deixei a cidade como indesejável, ainda que eu fosse um cidadão das Terras Férteis... exatamente como você ao partir de Madrath.
Cyprien teve um sobressalto, levou a mão ao pulso, mas teve sangue-frio suficiente para ficar sentado. O olhar de Theoddor era penetrante, mas não maldoso; ele o descobrira, não pretendia desmascará-lo. Além disso, segundo haviam lhe explicado em Madrath -- e confirmaram, para seu alívio, ao obter os papéis de permanência em Vrindavahn --, a marca em tinta azul significava que causara um pequeno distúrbio, que devia se afastar por um tempo a fim de refletir e não que era algum tipo de criminoso... não era isso?
-- Sim, essa é uma lei exclusiva de Madrath. Cada cidade tem as suas, além daquelas a que todas obedecem, próprias da Liga das Terras Férteis – Theoddor explicou melhor. – Em Madrath, há sempre um afluxo muito grande de forasteiros, por causa das Escolas de Artes e Teatro e todos os festivais, e os passes de entrada são sempre temporários.  Quem tem um deles, e comete uma infração menor, tem que sair da cidade levando essa pulseira em tinta, que só desaparece cerca de uma lua depois, por mais que seja esfregada. Foi por isso que, tão logo o vi, eu soube de onde você vinha; e posso tentar adivinhar? Você tentou conseguir trabalho lá, ou aprendizado como ator, e o que acabou arranjando foi encrenca para si mesmo.
-- Mais ou menos isso – Cyprien teve que admitir. – Eu achava que tinha muito a aprender com os artistas de lá, mas que eles também aprenderiam um pouco comigo. Seria como uma troca, ou algo assim. Mas nem estavam interessados no que eu sabia, nem quiseram que eu aprendesse com eles. Eu não conseguiria acompanhar as aulas, disseram, porque me faltava... quer dizer, eu não sabia...
-- Ler. – Uma afirmação, não uma pergunta; Cyprien engoliu em seco, mas não pôde contestar. – Não poderia ler os textos das peças, assim como não pôde ler os avisos no nosso galpão de trabalho. Não é verdade?
-- Sim. – Ele sentiu as faces quentes, sentiu-se irritado. – E eu não tinha acreditado nisso quando Tomas me contou. Será possível que todo homem e toda mulher nas Terras Férteis saiba ler e escrever?
-- É uma das leis da Liga, cumprida quase à risca nas Onze Cidades, embora muitos deixem de segui-la nas cidades de humanos e principalmente no campo. Em Vrindavahn, obedecemos à lei: há uma escola no Templo de Bragi, duas mantidas pelo Conselho e várias por mestres e mestras em suas casas, e creio que todas as crianças frequentam alguma. O que é uma coisa boa – disse Theoddor, parecendo querer convencê-lo de algo. – Quem sabe, se aprender a ler, você ainda consiga entrar na Escola de Teatro. Afinal, tem o Dom da Arte, ao contrário de mim, que nasci sem o da Magia.
-- Obrigado pelo elogio, mas acho que os mestres de Madrath não concordam – disse Cyprien, e um travo amargo lhe subiu à boca. – Não conversamos muitas vezes, mas pude ver que não têm o menor apreço, sequer respeito pelos saltimbancos. Para eles, o que fazem é sublime, o que faço é vulgar e grosseiro. Mais ou menos como disse a Mestra Thalia.
-- Sim, suponho que pensem desse jeito – suspirou Theoddor. – Lamento muito, e também pelo que aconteceu no Castelo das Águias. Vamos pôr tudo em pratos limpos, é claro, mas eu sei... Mesmo que nunca o acusem de mais nada, não é tão rápido quebrar uma crença, conquistar a estima daqueles que foram ensinados a desconfiar. Ainda assim, talvez fosse possível, se você ficasse conosco até o fim da estação. O que acha? Há bastante trabalho, e o bronze correspondente para você, além do carinho de todas aquelas crianças.
-- Eu sei. – Sorriu, sem muito humor. – Bom, pelas crianças, acho que posso ficar até o solstício. Assim, ao menos, a peça vai ser encenada, como vocês queriam. E, além disso, eu me comprometi a ajudar.
-- Bravo! Ficarão muito felizes! – Theoddor estendeu o braço e apertou seu ombro, os olhos cheios de calor. – E eu vou manter a esperança de que você acabe mudando de ideia e ficando por mais tempo na Escola. Temos grandes mestres de Magia, Cyprien, e os de Arte devem estar à altura.
-- Ah, mas estão! Tomas trabalhou comigo por vários anos; fizemos mais teatro de bonecos, mas ele entende do outro também, apesar de não ter estudado em Madrath. Ele vai ficar aqui com o tio, e pode ser muito útil no Castelo. Já eu devo mesmo partir logo após o solstício. Estou pensando em rever minha casa, passar o resto do inverno em Pwilrie enquanto espero o tempo melhorar para seguir rumo ao País do Norte. Faz tempo que não ponho os pés no Labirinto.
-- O bairro do Povo Alto, na colina que sobe para a Fortaleza, não é? Ouvi falar – disse Theoddor, afagando a barba. – Li um pouco sobre a história de vocês. Fizeram grandes coisas no Leste, mas hoje quase não têm direitos. Deve ser difícil viver lá.
-- Sim, é difícil. Além de todas as restrições, as leis são duras conosco. Quando não são as leis, são os juízes. Mas já foi pior – disse Cyprien, voltando a se lembrar dos contadores de histórias. – Logo após a Reconquista, havia um toque de recolher, o que impedia os artistas de trabalharem à noite. Houve revolta e várias prisões até acabarem com isso, e mais tarde o Povo Alto foi desobrigado de usar um retalho vermelho costurado na roupa. E, pouco antes de eu nascer, houve uma rebelião em que morreu muita gente, mas conquistou alguns direitos, como o de trabalhar em lojas e oficinas fora do Labirinto. Ainda não podemos ser os proprietários, nem ingressar na maioria das corporações de ofício. Mas isso virá.
-- Virá? – indagou Theoddor, arqueando a sobrancelha; Cyprien hesitou, e o velho homem foi mais direto. – Você vai lutar por esses direitos quando voltar a Pwilrie? Vai ajudar seu povo, falar em nome deles com suas peças e canções? Porque foi isso que eu senti – acrescentou. – Foi isso que você me pareceu ter a dizer, com aquela história sobre o homem que não gostava de saltimbancos.

Imagem: Cyprien e Theoddor, retratados por Hidaru Mei.

Parte 1

Parte 13

Parte 15