segunda-feira, 13 de abril de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 15)

-- Eu acho que... Bom, sim, eu falo do que sinto. – Respirou fundo, pondo os pensamentos em ordem; preferia não ter essa conversa, mas não havia como escapar. – A arte mostra essas coisas, mostra as injustiças e o que gostaríamos que acontecesse para acabar com elas. E houve um tempo em que pensei em fazer mais do que isso, mas agora... não estou certo nem sequer sobre voltar a viver em Pwilrie.
Imagem do Pinterest, mostrando um cata-vento de jardim.
Sempre associei o Cyprien a cata-ventos.

-- Por quê? Entendi que você tem uma casa lá. Família, provavelmente. Ainda é tão jovem que talvez até seus pais...
-- Não. – Cyprien inclinou a cabeça. – Não tive pais nem irmãos, primos ou tios. Minha mãe era sozinha e morreu quando eu era pequeno. Fiquei com meu padrasto, que me ensinou muito do ofício, apesar de me bater e me explorar, aquele maldito. Ele também morreu, e desde os doze anos contei apenas com vizinhos e amigos.
-- Sinto muito – disse Theoddor, com simpatia. – Sua vida não parece ter sido nada fácil. A minha começou bem; nada me faltava, tive meus pais até depois dos vinte anos e um irmão de quem gostava muito. Infelizmente ele morreu jovem, e acabei por ser o único herdeiro do Castelo. Em outros tempos, teria um título, mas isso já havia caído, assim como vários privilégios da nobreza humana e élfica. Ainda assim tinha uma bela propriedade, e todo ano os cidadãos de Vrindavahn me pagavam uma taxa através do Conselho. Sabe o que fiz com tudo isso?
-- Sei. Fundou a Escola de Artes Mágicas.
-- Exato. Realizei meu sonho – afirmou Theoddor. – Escrevi para Camdell, o único amigo de verdade que fiz em Riverast e o único a defender a ideia de que a Magia podia despertar sem o Dom inato, desde que houvesse um aprendizado adequado. Passamos anos planejando cada detalhe. E quando estava tudo certo, fiz um acordo com o Conselho sobre os impostos e instalamos a Escola no Castelo das Águias. Que tal?
-- Impressionante – disse Cyprien, e refletiu por um momento. – A Escola é fantástica, e deve lhe dar muito orgulho. Só que... isso não é, exatamente, realizar o seu sonho, certo? O senhor queria estudar Magia... mesmo fundando sua própria escola aqui em Vrindavahn, deu a entender que não conseguiu.
-- É verdade, eu não. Mas, a partir de agora, um menino como o que eu era, meninos e meninas como alguns dos que vieram até aqui, também nascidos sem o Dom, podem despertá-lo através da Arte. Não é garantido, não é fácil, mas é um caminho onde antes não existia nenhum. Foi isso que fiz pelos meus – acrescentou, com calor. – Por eles, usei o que tinha, assim como você pode usar o que tem: seu talento e carisma.
-- Carisma... – Saboreou a palavra, pensativo; trazia ecos não muito distantes. – Já me disseram, mais de uma vez, que eu tinha isso. Até que seria um bom líder trabalhando pelo Povo Alto.
-- Seria mesmo, como não? – replicou Theoddor. – No Castelo, conseguiu logo o afeto das crianças, a confiança de vários de nós, e incomodou aqueles que se incomodam com o brilho alheio. Meu convite para que fique está de pé, mas, se for seu desejo partir, não perca de vista aquilo que você mesmo disse: o Povo Alto é oprimido, e a arte é uma das armas mais poderosas contra a opressão. Na verdade, é ao mesmo tempo uma arma e uma cura. Pense nisso, e não perca mais seu tempo brigando com os mestres de Madrath, como briguei com os de Riverast.
-- Mas não briguei com eles. – Cyprien franziu a testa. – Fui rejeitado na Escola de Teatro, aí passei três dias afogando as mágoas na casa de uma moça que eu tinha conhecido por lá. E meus papéis de permanência expiraram, então me deram a pulseira de indesejável, por causa de um único dia de atraso ao deixar a cidade.
-- O quê? Então o galhardo Cyprien de Pwilrie é menos belicoso do que este velho? – brincou Theoddor, exagerando o tom de surpresa. Ruguinhas se acentuaram em torno de seus olhos risonhos, e o rapaz sentiu-se aquecer por dentro: aquele era de fato um bom homem, assim como Tio Hector, como Mandol e Thespio e Sanson e todos os mestres que o haviam ajudado e aconselhado ao longo da vida. Também Rowenna, a curandeira, e o cego Omar, com suas histórias sobre os tempos gloriosos – com sua insistência para que ele, Cyprien, ficasse no Labirinto e comandasse um movimento em favor do Povo Alto. Mais que insistência, tinham fé em que, um dia, ele faria tudo acontecer. Ainda acreditavam quando o viram partir pela última vez, um jovem músico e malabarista atraído pela novidade que era o teatro de bonecos. O que teriam a lhe dizer depois de tantos anos?
Que histórias poderiam contar, diferentes das antigas, se o Povo Alto ainda sofria como antes?

Já pensaram que moinhos também são
cata-ventos?
Cyprien, o personagem, tem um pouco de
Quixote em seu DNA.

-- Com licença, Cyprien, Mestre Theoddor... Ainda vão demorar? – A porta se entreabriu, deixando à mostra as faces avermelhadas de Marla e Donovan. – Não é para apressá-los, pelo contrário; é para saber se temos tempo de começar um trabalho aqui com o Tomas.
-- Que trabalho? – Os dois homens se levantaram, ao mesmo tempo que Hector e Stela entravam na sala, vindos da cozinha. Aryan, bem desperto no colo da mãe e com o rosto sujo de molho, estendeu os braços para Cyprien, que o pegou e o acomodou sobre os ombros antes de seguir Theoddor até lá fora.
-- Ooooouuuu! Cuidado com a cabeça! – brincou, ele mesmo se abaixando mais que o necessário ao passar pela porta; o garotinho riu, e o som se misturou ao do vento e ao das vozes de Pardalzinho e dos meninos. Estavam diante da casa com Elina e Tomas, que acabava de explicar alguma coisa enquanto apontava para cima.
-- Escute isso, tio! – exclamou ele, vendo Hector assomar à porta. – Já temos quem nos ajude a fazer o próximo cata-vento!
-- Gostaram, crianças? – O velho artista sorriu. – Fiz o primeiro quando Tomas perdeu os pais e veio morar comigo. Ele era menor que vocês, mas me ajudou mesmo assim, e foi como começou a trabalhar na oficina.
-- Eu quero aprender. Quero fazer um cata-vento desses para o telhado da minha casa – disse Brenan.
-- Eu também! – exclamou Pardalzinho. – Podemos vir aqui e aprender, não podemos, Mestre Theoddor?
-- Claro que sim. Ou Hector e Tomas podem ir ao Castelo para ensinar. Mas ninguém vai fazer cata-vento nenhum – disse Theoddor, solene – antes de terminar a caixa e as fantasias da peça. Foi para isso que pegaram material, não foi?
-- Sim! Vamos poder participar? – Os olhos da menina brilharam: ela correu para Theoddor, hesitou, depois se voltou com expectativa para Cyprien, que acabava de passar o pequeno Aryan para os ombros do pai. – E ele vai ficar com a gente?
-- Até o solstício, sim – confirmou o saltimbanco. – Depois disso, eu...
-- Oba! – Pardalzinho saltitou, correu para ele e o abraçou pela cintura, sem querer ouvir mais nada. Seus amigos se entreolharam e marcharam para se juntar ao abraço, e Donovan e Marla também se aproximaram para cumprimentá-lo pela decisão. Por fim, quando os meninos e os dois aprendizes mais velhos tinham se afastado e apenas Pardalzinho permancecia a seu lado, Elina deu dois passos em direção a Cyprien, mantendo os braços cruzados, mas olhando-o sem reservas dentro dos olhos.
-- Eu só queria ajudar – disse ela.
-- Entendo – ele murmurou.
-- Queria dizer a todos que tinha comprovado, mas nunca achei que você estivesse mentindo. Estou feliz que fique no Castelo até o solstício. Vai voltar para o Leste depois?
-- Acho que sim – disse Cyprien, embora quase não restassem dúvidas. – Por um tempo, ao menos, para rever meus amigos e...
-- E...?
-- Construir um cata-vento – ele deixou escapar.
A elfa o encarou por um longo momento antes de assentir.

***

Eu sempre quis escrever sobre a visita de Cyprien ao Castelo das Águias, mas este conto só tomou forma depois de eu assistir a este vídeo, com uma musicalização de um lindo poema de Mário Quintana. O vídeo inspirou também a criação da personagem Pardalzinho. Espero que gostem!!

Parte 1

Parte 14

Epílogo

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