-- Você... – disse Theoddor, e riu: os lábios de Cyprien tinham se aberto, naquele exato momento, para também pronunciar uma palavra. – Você entende que os aprendizes não fizeram por mal, não entende? E que, da minha parte, nunca houve qualquer desconfiança?
-- É claro. – Suspirou, passando a mão pela barba; não sabia se devia ser totalmente sincero, mas não tinha nada a perder. – Fiquei com raiva, confesso, porque Elina e o Mestre Finn vieram com a ideia de ler minha mente. O senhor vai dizer que isso não tem nada de errado, mas eu sou do Leste, lá não crescemos perto de magos, e os poucos que conheci em minhas andanças eram...
-- Pessoas más, ou pouco confiáveis. Eu entendo – disse Theoddor, apoiando os cotovelos na mesa. – Mesmo nas Terras Férteis, muitos pensam desse jeito a respeito de magos. Meu pai era um deles -- o antigo senhor do Castelo das Águias. Uma ironia, pode-se dizer, que só seria maior se eu tivesse conseguido meu intento: estudar na Escola de Magia de Riverast.
Sorriu, barba e faces avermelhadas pelo reflexo do fogo. Cyprien se endireitou no assento e o olhou com atenção, como se o visse através de um novo prisma. Um excêntrico, um erudito, Mestre de Ciências da Terra – isso era o que sabia a respeito de Theoddor, bem como o fato de haver cedido seu castelo para abrigar a Escola de Artes Mágicas. Que ele próprio tivesse desejado tornar-se um mago, bom, isso era novidade, mas não era de estranhar, dadas as circunstâncias. Mas que, rico e inteligente como era, e vivendo nas Terras Férteis, não tivesse conseguido... Qual a razão?
-- Foi seu pai que o impediu de seguir esses estudos? – perguntou. Theoddor fez que não, seus olhos se voltando para o pulso de Cyprien, agora finalmente livre dos vestígios de tinta.
-- Meu pai jurou me deserdar se eu me tornasse um mago, mas fui a Riverast mesmo assim, e lá fiz o que pude para ser aceito – contou ele. – No início não queriam nem me receber, porque eu já tinha vinte anos e nunca havia manifestado o Dom; mas insisti até que consegui passar por um teste prévio, e então...
-- Então? – fez o rapaz, com expectativa.
-- Então chegaram à conclusão de que eu jamais seria um mago, que seria perda de tempo me ensinar qualquer coisa, e me mandaram embora. Com bons modos, no início, e não tão bons depois de eu ter me revoltado e discutido com alguns dos mestres. No fim, deixei a cidade como indesejável, ainda que eu fosse um cidadão das Terras Férteis... exatamente como você ao partir de Madrath.
Cyprien teve um sobressalto, levou a mão ao pulso, mas teve sangue-frio suficiente para ficar sentado. O olhar de Theoddor era penetrante, mas não maldoso; ele o descobrira, não pretendia desmascará-lo. Além disso, segundo haviam lhe explicado em Madrath -- e confirmaram, para seu alívio, ao obter os papéis de permanência em Vrindavahn --, a marca em tinta azul significava que causara um pequeno distúrbio, que devia se afastar por um tempo a fim de refletir e não que era algum tipo de criminoso... não era isso?
-- Sim, essa é uma lei exclusiva de Madrath. Cada cidade tem as suas, além daquelas a que todas obedecem, próprias da Liga das Terras Férteis – Theoddor explicou melhor. – Em Madrath, há sempre um afluxo muito grande de forasteiros, por causa das Escolas de Artes e Teatro e todos os festivais, e os passes de entrada são sempre temporários. Quem tem um deles, e comete uma infração menor, tem que sair da cidade levando essa pulseira em tinta, que só desaparece cerca de uma lua depois, por mais que seja esfregada. Foi por isso que, tão logo o vi, eu soube de onde você vinha; e posso tentar adivinhar? Você tentou conseguir trabalho lá, ou aprendizado como ator, e o que acabou arranjando foi encrenca para si mesmo.
-- Mais ou menos isso – Cyprien teve que admitir. – Eu achava que tinha muito a aprender com os artistas de lá, mas que eles também aprenderiam um pouco comigo. Seria como uma troca, ou algo assim. Mas nem estavam interessados no que eu sabia, nem quiseram que eu aprendesse com eles. Eu não conseguiria acompanhar as aulas, disseram, porque me faltava... quer dizer, eu não sabia...
-- Ler. – Uma afirmação, não uma pergunta; Cyprien engoliu em seco, mas não pôde contestar. – Não poderia ler os textos das peças, assim como não pôde ler os avisos no nosso galpão de trabalho. Não é verdade?
-- Sim. – Ele sentiu as faces quentes, sentiu-se irritado. – E eu não tinha acreditado nisso quando Tomas me contou. Será possível que todo homem e toda mulher nas Terras Férteis saiba ler e escrever?
-- É uma das leis da Liga, cumprida quase à risca nas Onze Cidades, embora muitos deixem de segui-la nas cidades de humanos e principalmente no campo. Em Vrindavahn, obedecemos à lei: há uma escola no Templo de Bragi, duas mantidas pelo Conselho e várias por mestres e mestras em suas casas, e creio que todas as crianças frequentam alguma. O que é uma coisa boa – disse Theoddor, parecendo querer convencê-lo de algo. – Quem sabe, se aprender a ler, você ainda consiga entrar na Escola de Teatro. Afinal, tem o Dom da Arte, ao contrário de mim, que nasci sem o da Magia.
-- Obrigado pelo elogio, mas acho que os mestres de Madrath não concordam – disse Cyprien, e um travo amargo lhe subiu à boca. – Não conversamos muitas vezes, mas pude ver que não têm o menor apreço, sequer respeito pelos saltimbancos. Para eles, o que fazem é sublime, o que faço é vulgar e grosseiro. Mais ou menos como disse a Mestra Thalia.
-- Sim, suponho que pensem desse jeito – suspirou Theoddor. – Lamento muito, e também pelo que aconteceu no Castelo das Águias. Vamos pôr tudo em pratos limpos, é claro, mas eu sei... Mesmo que nunca o acusem de mais nada, não é tão rápido quebrar uma crença, conquistar a estima daqueles que foram ensinados a desconfiar. Ainda assim, talvez fosse possível, se você ficasse conosco até o fim da estação. O que acha? Há bastante trabalho, e o bronze correspondente para você, além do carinho de todas aquelas crianças.
-- Eu sei. – Sorriu, sem muito humor. – Bom, pelas crianças, acho que posso ficar até o solstício. Assim, ao menos, a peça vai ser encenada, como vocês queriam. E, além disso, eu me comprometi a ajudar.
-- Bravo! Ficarão muito felizes! – Theoddor estendeu o braço e apertou seu ombro, os olhos cheios de calor. – E eu vou manter a esperança de que você acabe mudando de ideia e ficando por mais tempo na Escola. Temos grandes mestres de Magia, Cyprien, e os de Arte devem estar à altura.
-- Ah, mas estão! Tomas trabalhou comigo por vários anos; fizemos mais teatro de bonecos, mas ele entende do outro também, apesar de não ter estudado em Madrath. Ele vai ficar aqui com o tio, e pode ser muito útil no Castelo. Já eu devo mesmo partir logo após o solstício. Estou pensando em rever minha casa, passar o resto do inverno em Pwilrie enquanto espero o tempo melhorar para seguir rumo ao País do Norte. Faz tempo que não ponho os pés no Labirinto.
-- O bairro do Povo Alto, na colina que sobe para a Fortaleza, não é? Ouvi falar – disse Theoddor, afagando a barba. – Li um pouco sobre a história de vocês. Fizeram grandes coisas no Leste, mas hoje quase não têm direitos. Deve ser difícil viver lá.
-- Sim, é difícil. Além de todas as restrições, as leis são duras conosco. Quando não são as leis, são os juízes. Mas já foi pior – disse Cyprien, voltando a se lembrar dos contadores de histórias. – Logo após a Reconquista, havia um toque de recolher, o que impedia os artistas de trabalharem à noite. Houve revolta e várias prisões até acabarem com isso, e mais tarde o Povo Alto foi desobrigado de usar um retalho vermelho costurado na roupa. E, pouco antes de eu nascer, houve uma rebelião em que morreu muita gente, mas conquistou alguns direitos, como o de trabalhar em lojas e oficinas fora do Labirinto. Ainda não podemos ser os proprietários, nem ingressar na maioria das corporações de ofício. Mas isso virá.
-- Virá? – indagou Theoddor, arqueando a sobrancelha; Cyprien hesitou, e o velho homem foi mais direto. – Você vai lutar por esses direitos quando voltar a Pwilrie? Vai ajudar seu povo, falar em nome deles com suas peças e canções? Porque foi isso que eu senti – acrescentou. – Foi isso que você me pareceu ter a dizer, com aquela história sobre o homem que não gostava de saltimbancos.
Imagem: Cyprien e Theoddor, retratados por Hidaru Mei.
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