quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 1)

Pessoas Queridas,

O ano começa, e com ele um conto que também se refere a inícios. Sim, no plural: não estamos falando apenas do início da trajetória de Kieran como mago e como guerreiro, mas também a uma escolha que acabou por se transformar num plano de longo prazo.

A longa espera de Kieran começou (parece) a ser recompensada no livro O Castelo das Águias e terá continuidade nos próximos volumes da saga. Quero, porém, situar vocês em termos de tempo e avisar que este conto se passa 4 anos após os acontecimentos narrados em A Encruzilhada. Lembro também que nosso mago é quase 20 anos mais velho que sua futura prometida, nascida na floresta e criada pela avó, portanto façam suas deduções. Mas principalmente curtam o conto.

Feliz Ano Novo!


Amanhecia, e o sono se escoava pelos portões da cidadela. Nos catres estreitos, lado a lado em longas fileiras no alojamento da Escola de Guerra, os garotos resmungavam e se abraçavam às cobertas, agarrando-se ao que restava dos sonhos enquanto o primeiro clarim soava na torre de vigia. De cada canto da fortaleza se elevou um ruído, o ressoar de pés calçados em botas e de vozes ensonadas, que cresceu à medida que mais e mais homens saíam das casernas para o pátio e os corredores. Em poucos momentos, o próprio ar da cidadela era aquecido pelo burburinho, dentro do qual ninguém poderia se incomodar com o som de uma pena arranhando o papel.

Há quem ouça apenas o que quer ouvir.

- Pelo Esquerdo, rapaz! Já começou com isso de novo? Ou nem chegou a parar durante a noite?

Atarracado, de cabelos cinzentos espetados e metido numa camisa puída, Mael de Scyllix lançou um olhar zangado a Kieran, seu aprendiz de dezoito anos, e deste para os tocos de vela derretidos na superfície da mesa. Mais uma noite de vigília, na certa, e hoje era um dos dias em que ele cumpria seus deveres militares. Não haveria nenhuma oportunidade de descanso entre os exercícios. Mesmo assim – e ainda que estivesse decidido a repreendê-lo - Mael sabia que o garoto ia agüentar firme, e seu apreço por ele crescia na mesma medida que a irritação. Tão resistente e capaz quanto cabeça-dura. Se o poder de um mago residia em sua vontade, Kieran seria um dos grandes.

- Concluí as últimas páginas - disse o rapaz, fechando um livro grosso e esfarrapado. - Fiz anotações sobre minhas dúvidas. Queria esclarecê-las com o senhor no próximo tempo livre.

- Está bem... e até lá deixe isso comigo - disse Mael, pegando as folhas escritas pelo aprendiz. Um rápido olhar confirmou o que já suspeitava: ele se antecipara, e muito, à próxima lição. Além disso, levantara questões sobre as leis da Magia, questões com as quais Mael jamais se preocupara e que teria dificuldade para explicar. Se é que saberia explicá-las. Nos últimos tempos, suas respostas vinham sendo cada vez mais incompletas.

Kieran limpou com cuidado a pena de cisne e a guardou, junto com o resto do material de escrita, no estojo barato fornecido pelo Exército. Suas roupas também eram de tecido barato, embora resistente: as calças e a túnica de lã usadas pelos alunos da Escola de Guerra. Como todos os jovens válidos de Scyllix, ele se alistara aos quatorze anos, mas então já se sabia que estaria numa posição especial, como os rapazes que entravam para o ofício dos armeiros ou dos cirurgiões. No caso de Kieran, o aprendizado seria com o Mestre das Águias, um dos dois cargos ocupados por magos a soldo do Exército. Fora muita sorte, como o próprio Mael fez questão de dizer aos comandantes, ele haver topado com um garoto apto a ser treinado para sucedê-lo. Dificilmente algum outro, nascido numa cidade onde o serviço militar não fosse obrigatório, aceitaria se submeter às regras da Escola de Guerra, somando o estudo da Magia às práticas extenuantes destinadas a transformar meninos em soldados.

Mael obtivera dos oficiais que dispensassem seu aprendiz das marchas mais prolongadas, mas o esforço poupado ali era compensado pelas longas jornadas em busca de ervas curativas e de ninhos de águia. Além disso, as horas de folga, que os outros rapazes gastavam em diversão, eram empregadas por Kieran na resolução de problemas de estratégia, sem falar nas experiências que ele vinha conduzindo por sua conta. Era uma vida dura, sem conforto e sem grandes promessas para o futuro, mas o rapaz não se queixava, talvez porque sua infância tivesse sido mil vezes pior. Ele também se tornara tão duro quanto precisava ser.

Ainda assim, às vezes havia surpresas.

- Bom, mestre, estou de saída - disse Kieran, acabando de calçar as botas. - Tenho aulas a manhã toda e treino com o mestre de combate, mas à noite estou livre. Se não precisar de mim, peço licença para ir a Glen Thar, à festa de casamento de um vizinho.

- Glen Thar... Ah, sim, sim, é claro - fez Mael, recordando-se por fim do pequeno povoado além das muralhas. Fonte Âmbar, a fazenda onde Kieran crescera, ficava mais perto de Glen Thar do que de Scyllix; seus companheiros de infância eram os garotos da aldeia ou de outras fazendas dos arredores. Todos haviam se alistado na mesma época, e as amizades e rivalidades continuavam, embora, preso aos deveres do seu duplo treinamento, Kieran dedicasse cada vez menos tempo aos camaradas. Sair com eles nas noites de folga, então, era raríssimo. A não ser quando não conseguia se concentrar nos estudos - e ao pensar nisso o Mestre das Águias sorriu, lembrando-se da sua própria juventude, quando o sangue em suas veias corria mais rápido e todas as mulheres eram belas.

- Sei o que você vai fazer em Glen Thar - afirmou, rindo diante do ar desconcertado do rapaz. - Por que essa cara? Está com vergonha?

- Eu...

- Bobagem, garoto. Sei como são as coisas na sua idade - tornou Mael. - O estudo, a prática, tudo isso é muito bom, mas não é o bastante. Um homem tem que descarregar, de vez em quando, não é?

- Hum, sim - resmungou Kieran, recobrando o sangue-frio. - O senhor deve ter razão.

- Claro que tenho! Vá, divirta-se na festa, e que você encontre uma garota bem boazinha. Amanhã cedo falamos sobre... sobre isto - acrescentou Mael, dando mais uma olhada nas anotações. - Lei da atração, não é? Bom, vamos ver. Agora, pode ir, você já deve estar atrasado.

Kieran assentiu e saiu sem olhar para trás. O ar gelado da manhã lhe estapeou o rosto, mas, à medida que se afastava dos aposentos do mago, foi-se sentindo envolver pela atmosfera de calor dos corredores. Uma lufada fria, de novo, ao cruzar um pátio e logo ele já estava na Escola de Guerra, misturado aos rapazes barulhentos que se acotovelavam à porta do refeitório.

- Eu primeiro! Fiquei a noite toda de serviço!

- E nós vamos participar da marcha com equipamento! Vinte milhas carregando nas costas um peso igual ao nosso!

- Para trás, garotos! Vocês conhecem a regra... Veteranos primeiro! - bradou, lá de trás, o vozeirão de Doron ap Gwil, vizinho e auto-nomeado melhor amigo de Kieran. Vendo o aprendiz de Mael em meio ao nó formado pelos companheiros, ele passou o braço enorme em torno dos seus ombros e o arrastou consigo enquanto abria caminho até o refeitório. Lá, numa fila mais ordenada, os dois esperaram sua vez de se servir de uma concha de mingau de aveia, depois receberam um pão e uma caneca de cerveja das mãos de um empregado. Era isso que devia sustentá-los até a refeição do meio-dia.

- Ali. Lugar - disse Doron, por entre os dentes que já mastigavam um naco de pão. Mais uma vez, ele forçou sua passagem e a de Kieran entre os companheiros até chegar à última das mesas de tábua crua alinhadas no salão.

- Cheguem os traseiros para lá - disse, e os garotos se apertaram para lhe dar espaço. - Vamos ver que tal está a gororoba hoje. Argh! Isso parece pior a cada dia!

- Pelo menos mata a fome - disse Teig ap Donnell, sentado logo à frente. Era um rapaz de cabelos finos e castanhos, um pouco baixo para os padrões de Scyllix - quase fora recusado no alistamento - mas com um rosto de traços perfeitos que faziam dele o favorito das moças. Apesar disso, e a despeito do seu temperamento alegre, Teig era tímido quando se tratava de mulheres, e Doron troçava dele, afirmando que ainda era tão virgem quanto a irmã mais nova.

Não tão jovem assim, aliás, já que era ela a noiva daquela noite.

- Pois é, quem diria... A pequena Brigid vai se casar - comentou Doron, esvaziando sua caneca. - Ainda ontem andava por aí com uma boneca de pano... e então, mal fechamos os olhos, ela cresceu e virou a cabeça de Bran ap Avaloch. E ele também, não é? Quem diria que ia se casar tão moço...!

- Bom, a família tem dinheiro, e Brigid vai ficar com eles enquanto Bran está no exército; e ele já disse que vai sair aos vinte e um e entrar no negócio de carne. Não vai haver problema - disse Teig, um pouco nervoso. Era evidente que tentava esconder a história por trás do casamento da irmã, o que pareceu funcionar ao menos com Doron. Quanto a Kieran, não disse o que sabia, o que constatara num simples olhar a Brigid e a sua aura amarela e rosada: ela já esperava um filho de Bran. Aquilo era muito comum entre as famílias do campo, e elas resolviam tudo na surdina, de preferência rápido o bastante para que ninguém notasse a gravidez. Que as crianças nascessem, robustas e bem-formadas, cinco ou seis Luas após o casamento - bom, isso devia ser uma bênção divina. De qualquer forma, nem Brigid, nem seu filho, nem os escrúpulos de Teig tinham importância para Kieran, por isso ele deixou o assunto de lado, indo direto ao único ponto que era de seu interesse.

- O que vocês souberam sobre o Mão de Ferro? - Os companheiros o olharam sem entender, mas ele insistiu. - Declan Mão de Ferro andou espalhando que também pretendia casar; que ia pedir a mão de Alix, a filha da viúva Ellen, e que seria na festa de Brigid e Bran. Lembram disso?

- Ah, sim! Ele disse mesmo - confirmou Doron. - Quando ouvi, até achei estranho, porque, pelo que eu sei, até hoje ele mal teve oportunidade de falar com ela. Mas a moça é bonita, e vai herdar uma fazenda de bom tamanho... então, é possível que Declan esteja pensando em garantir o futuro.

- E se ele pedir ela vai aceitar, mesmo que os dois mal se conheçam, só porque ele se destacou na campanha do ano passado. Agora, todos em Glen Thar estão achando que ele vai ter uma carreira brilhante, e família nenhuma vai lhe recusar uma filha. Isso apesar dele ser um imbecil - resmungou Teig. Doron assentiu vigorosamente, arrotando para manifestar seu desprezo, mas Kieran permaneceu em silêncio, seus pensamentos voltados para uma história em que se mesclavam o presente e o passado.

Declan ap Llud não tinha sido o pior pesadelo de sua infância - Fergus, seu pai, fora imbatível nesse papel - mas o que começara como uma rivalidade entre garotos crescera com o correr dos anos, até o ponto em que tornou impossível serem outra coisa senão inimigos. Não se podia dizer que Declan era o único culpado, mas, por ser mais violento e muito mais forte, suas investidas representavam uma séria ameaça para Kieran. Quando ambos tinham quinze anos, chegara perto de matá-lo, atingindo-o com o punho de ferro que o pai trouxera do País do Norte; isso lhe valeu a alcunha que carregava até hoje, e a Kieran várias costelas quebradas e uma insaciável sede de vingança.

A partir daí, ele aproveitou todas as oportunidades possíveis para levar a melhor sobre Declan, superando-o nas aulas de estratégia e história militar, vencendo-o nas competições que envolviam mais habilidade que força e, quando achava uma ocasião propícia, fazendo-o passar pelo idiota que realmente era. Todos na Escola de Guerra se lembravam do episódio em que Declan se perdeu num treino de orientação, apenas por não acreditar que o mapa desenhado por Kieran fornecesse as direções certas. No entanto, a mesma honestidade que involuntariamente lhe servira de arma sempre o impedira de desferir um golpe sujo, de manobrar para tornar Declan malquisto pelos Comandantes.

Assim, na campanha do ano anterior - a primeira de que haviam participado, contra um dos inúmeros clãs do Oeste -, o Mão de Ferro fora elogiado por sua bravura no campo de batalha, enquanto Kieran não fizera mais do que cuidar das águias guerreiras mantidas de prontidão. Deixá-las fora do combate tinha sido decisão de Mael, mas seu aprendiz ainda era questionado a esse respeito, e o tom usado pelos outros o fazia crer que o julgavam inseguro ou incompetente. Declan o chamava em alto e bom som de covarde. Com a reputação elevada entre alunos e mestres, o bracelete conquistado pelo bom desempenho faiscando no bíceps avantajado, ele se pavoneava por toda a cidadela, seus camaradas secundando-o nas provocações a Kieran, cujo ânimo ia se tornando mais e mais sombrio. Tão sombrio que seus escrúpulos haviam se esfumaçado, fazendo-o prometer a si mesmo que usaria todos os meios ao seu alcance para ir à forra.

E o que acabara de ouvir confirmava que tinha encontrado um meio.

Parte 2

...

Conto ilustrado por uma espada celta que encontrei aqui. Logo falaremos sobre umas parecidas.

2 comentários:

  1. Oi Ana!

    Esse é meu primeiro comentário do ano, então, aproveito o ensejo para desejar um excelente 2013 para você, repleto de boas histórias e um belo livro (o segundo da série)saindo do forno!

    Então Kieran tem um inimigo de infância? Declan.... Vamos torcer para nosso jovem mago não trocar os pés pelas mãos em sua vingança...

    Beijos,
    vania

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  2. Hmmmm... o que é que o Kieran vai fazer??

    Muito legal o conto, Ana... curiosa para saber o que vai acontecer!

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