segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Chá da Tarde com a Arquimaga (Parte 2)



Seus olhos o fitaram, parecendo velhos e cheios de malícia. Kieran franziu a testa, pouco à vontade, e olhou em torno. O aposento não lembrava as salas usadas para as conferências e práticas mágicas, nem mesmo os gabinetes em que ele fora recebido por Shiri e outros mestres, mas sim a sala principal da casa de alguém, com um divã confortável sob a janela e uma mesa baixa, em torno da qual havia várias almofadas. Uma parede tinha prateleiras com livros – alguns faltando, com os demais reclinados sobre o espaço vazio – e outra o retrato, pintado sobre tela, de uma menina elfa segurando um gato malhado. Junto à lareira, mais uma mesinha, e sobre ela uma bandeja onde estavam uma jarra, um pote liso de cerâmica e algumas tigelas. Deviam ser os utensílios do chá, ele pensou, sem mover um músculo.
-- A água está quase fervendo. – A Arquimaga indicou uma panela suspensa sobre o fogo. – Há água fresca na jarra, e a tília está naquele pote. Devo lhe dizer como preparar o chá?
-- Acho que consigo sozinho – ele resmungou. Com dois ou três passos largos, alcançou a lareira, destapou o pote de cerâmica e encontrou um monte de florzinhas secas, branco-amareladas. Era muito para usar de uma vez; ele ficou na dúvida entre pegar um punhado ou derramar um pouco na panela, direto do pote, mas, antes que decidisse, a Arquimaga fez nova pergunta.
-- Vocês costumam tomar chá na sua residência? Digo, quando estão juntos – precisou. – Imagino que viver com outras pessoas propicie momentos assim.
-- Alguns deles às vezes comem em casa. – Kieran endireitou as costas, com o pote na mão. – Eu prefiro o refeitório da Escola. É mais prático.
-- Dizem que a comida não é tão boa – ela comentou, em tom brincalhão, ao que ele apenas fungou e encolheu os ombros.
-- Para quem passou anos no exército... – murmurou, e então despejou algumas flores na palma da mão. Fez isso sem pensar, porque as palavras casuais trocadas com a Arquimaga tinham evocado uma imagem poderosa: a de um garoto magro, porém de ombros largos e músculos esculpidos pelo trabalho na fazenda, devorando uma tigela cheia até a borda de um ensopado de cor acinzentada e gosto duvidoso, enquanto os outros recém-chegados à Escola de Guerra se forçavam a engolir alguns bocados. Nenhum tinha um pai como o seu, que vigiava o que os filhos comiam e os fazia pagar cada grão com trabalho duro. E para sua mãe tinha sido ainda pior.
O último pensamento o fez cerrar o punho, amassando as flores. Ele se deu conta do que fazia e se apressou a jogá-las na panela, onde a água continuava a ferver. Olhou em torno, procurando com que tampá-la, e então outra lembrança lhe invadiu a mente, trazendo o rosto aquilino e preocupado de sua irmã..
-- Quando você voltar da guerra, não sei se irá encontrá-la. – Ela falava aos sussurros, ao mesmo tempo que tirava uma panela da lareira, segurando-a com um gancho de ferro. – Ainda assim, diga a seu mestre que estamos gratos. A mãe estaria sofrendo muito mais, com essa doença, não fossem os remédios dele.
Kieran assentiu, como fizera naquela tarde sombria quatro anos antes, e pousou a panela sobre um descanso de junco trançado, na mesa baixa cercada por almofadas. Estranho: não se lembrava de tê-la tampado, nem de onde tinha vindo aquele trapo de tecido grosso que usara para não queimar os dedos. No entanto, a panela ali estava, e a Arquimaga já não se encontrava em seu banquinho, mas sentada de pernas cruzadas diante da mesa. Tinha no rosto um leve sorriso, mas continuou em silêncio enquanto o jovem pegava as tigelas na mesa do canto. E só quando ele se curvou e destapou a panela, o ar se enchendo do cheiro espesso e adocicado das flores, ela voltou a fazer um comentário.
-- Percebi que você já preparou infusões, mas não sei se foram de tília. Esta é preciso coar. Há um pano fino, e limpo, na bandeja. Pode usá-lo.
Kieran tornou a assentir e foi buscar o pano. De fato já tinha preparado infusões, e decocções, e vários tipos de beberagem, mas isso se dera apenas ao longo do último ano, quando o Mestre das Águias de Scyllix começara a sentir aquelas dores na barriga. O aprendiz insistira para que visse os mestres de cura do exército, mas, apesar de bonachão na maior parte das vezes, o velho Mael sabia ser teimoso quando queria: se ele, sendo um mago, não soubesse como se curar, não seriam aqueles tontos que iriam conseguir. A contragosto, Kieran concordou em manter aquilo em segredo e tratou de ajudar seu mestre, enchendo-o de ervas curativas – ele se lembrava de ter usado um pano, como o da Arquimaga, para coar os chás – e aplicando cristais, a energia das mãos e tudo que pudesse aliviar seu desconforto. Após algumas luas, lembrou-se de usar a água da fonte âmbar, que ficava nas terras de sua família e tinha poderes de cura, e com isso Mael teve uma boa melhora, mas a essa altura ambos já sabiam que não conseguiria se livrar da doença. Das dores, por um tempo, sim; prolongar sua vida, sim, ao menos por alguns anos, enquanto ainda tivesse forças para comandar as águias. E a fim de que o rapaz se tornasse um sucessor à altura, e também para fazê-lo erguer os olhos além dos campos de batalha, Mael escrevera a um dos mestres em Riverast, contando sobre o talento do aprendiz e quase implorando que lhe dessem uma oportunidade na Escola de Magia.
-- Espero que eu tenha feito certo -- Kieran murmurou, vertendo o chá amarelado numa tigela. – Talvez tenha usado flores demais.
-- Isso depende do gosto – replicou a Arquimaga. – Às vezes não existe uma receita, um ritual a seguir. Nem regras. Nem respostas absolutamente certas. Por exemplo, Shiri enviou você à Casa das Três Chaminés, mas havia lugar em outras residências. Teria sido melhor, nesta primeira lua, ficar com os Sobrinhos de Loki ou a Sociedade dos Mantos Azuis?
-- Não. – Ele fechou os olhos, a tigela entre as mãos, e inalou a fumaça doce. Definitivamente, ainda que não tivesse muito em comum com Ravnos e Isel e os demais, teria sido pior passar aquela lua nas outras casas, fosse com os adeptos inconsequentes de Magia da Forma ou com os imbecis que se arrogavam em futuros senhores do mundo. Na Três Chaminés, pelo menos, Kieran fora aceito sem muitas perguntas. Ou melhor: fora aceito, apesar de se negar a dar respostas. Pois nem aqueles jovens, acostumados à solidão e a ser incompreendidos, tinham refreado a curiosidade diante do rapaz carrancudo, de aura sempre avermelhada de raiva, que tinha suas despesas pagas pelo exército e se comprometera a voltar às fileiras pelo mesmo tempo que passasse na Escola de Magia.
Injusto, tinham dito, sem fazer ideia do quanto ele já estivera pior.
Um silêncio longo, concentrado, encheu o aposento enquanto os dois saboreavam o chá. A Arquimaga segurava a tigela com as duas mãos; Kieran sustinha a sua com a esquerda e olhava para o anel de prata no indicador direito. Seu anel de poder, por enquanto, mas ele sabia que herdaria o de Mael, em forma de serpente, mesmo que fosse mandado embora de Riverast. Ainda não tinha, estranhamente, nenhuma intuição a esse respeito; não sabia o que se passava na cabeça daquela elfa, nem a razão de toda aquela história com o chá, embora – e isso era ainda mais estranho – não estivesse irritado por ela tê-lo feito perder tempo ali. Pelo contrário, estava calmo, apaziguado, como raramente se sentira. Não apenas nessa última lua, mas em toda a sua vida.
Intrigado, ele desviou os olhos, que logo se deixaram atrair pela imagem da menininha com o gato. Tinha cabelos prateados, como a Arquimaga, mas o trabalho parecia recente demais para ser um retrato dela na infância. Era mais provável que fosse alguém da família, talvez a filha ou a neta de um irmão, já que, para serem iniciados nos Círculos superiores, os magos renunciavam a se casar e a ter descendência. Kieran tomou mais um gole, contemplando aquele rosto de criança, e de repente uma nova memória surgiu diante dos seus: não uma imagem do passado, como as de sua irmã e de si mesmo na Escola de Guerra, mas algo que viera até ele como uma visão.
Uma montanha enevoada, um castelo, uma mulher de tranças negras e sorriso radiante. Um menino, de olhos oblíquos como a pequena elfa, mas muito escuros, soltando a mão da mulher e correndo ao encontro de Kieran. Seria apenas um desejo, algo que ele criara para confortar a si mesmo e nunca teria de verdade, ou... Ou seria possível?

Continua...


Parte 1

Parte 3

Quer saber quando Kieran teve a visão da mulher e do menino? Clique aqui e leia o conto "Promessas da Lua", ambientado em Scyllix, a Cidade dos Guerreiros!

4 comentários:

  1. Opa, ficando bastante interessante! Kieran sempre reflexivo. Muito interessante vê-lo lembrar do passado sendo que li sobre isso há pouco tempo. E guardarei o link desse conto para ler também, com certeza!

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    1. Que bom que está gostando! Kieran é extremamente defensivo e desconfiado. Mas, como pode ver, até mesmo ele consegue perceber que nada ali está sendo feito para lhe causar qualquer mal.

      Se ler o outro conto - é bem longo! - me diga o que achou!

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  2. NHÓIN... a visão dele no final <3. Tão gostoso ler esses momentos de personagens cuja versão mais madura já conhecemos... é como se a gente fosse um espírito sábio que vislumbrou o futuro. :)

    Agora também estou curiosa para saber quem é a menininha do retrato!

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    1. Hum... temo que isso seja apenas algo usado para provocar uma reação em Kieran. Mas posso responder dizendo que ele acertou: é uma criança da família da Arquimaga e não ela mesma.

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