O fogo crepitou, e o ruído levou embora as imagens, embora não sua perplexidade. Kieran olhou para a tigela, só então percebendo que a esvaziara, depois para a Arquimaga, que não olhava para ele e sim para o papel que em algum momento fizera surgir sobre a mesinha. Havia uma pena de ganso em sua mão, ela escrevia muito rápido, como se soubesse exatamente o que havia a ser dito. Dobrou o papel, inserindo-o num envelope, e o estendeu para o jovem mago, só então deixando que seus olhos voltassem a se encontrar com os dele.
-- Muito obrigada, Kieran, por ter feito o chá. Isso me ajudou a compreender algumas coisas – disse ela. -- Agora, peço-lhe que vá ao lugar indicado no envelope e entregue a mensagem ao dono da casa. Ele saberá o que fazer.
Sua voz tinha uma nota mais grave, uma vibração que ele sabia carregada de energia mágica. Ela me encantou, pensou Kieran, mas não tentou lutar, porque não teria conseguido vencê-la e porque, mesmo naquele estado próximo ao transe, tinha a consciência de que nada do que fora feito ali lhe causaria algum mal. Seus dedos se fecharam em torno do envelope; ele viu a si mesmo se levantando das almofadas, ouviu sua própria voz cumprimentando a Arquimaga, o som de seus passos se dirigindo até a porta. Cruzou a vila às escuras e passou pelo portão, e só ao atravessar o jardim – vazio, silencioso, iluminado por meio de um encanto que o fazia parecer cheio de vaga-lumes – voltou a controlar a si mesmo o suficiente para ler o que estava no envelope.
-- Praça do Mercado, casa com janelas azuis – murmurou, e franziu a testa. Era um endereço, mas não lhe dizia nada. Também as palavras da elfa, ao se despedirem, não tinham deixado nada claro: se Kieran fora finalmente admitido à Escola de Magia, se fora rejeitado, se seu período de experiência devia prosseguir e um novo teste o aguardava na casa de janelas azuis. Ele seguiu em direção aos portões da Escola, passando por uns poucos estudantes, que deviam estar a caminho do refeitório, e por um empregado que carregava um ancinho e um saco abarrotado de folhas secas. Ninguém o cumprimentou; tampouco o fizeram as pessoas com as quais cruzou ao sair e se dirigir à Praça do Mercado. Uma cidade de estranhos, um mundo de estranhos. Muito cedo ele aprendera a ver as coisas assim.
E agora, mal recobrado do encanto da Arquimaga, estava prestes a bater à porta de mais um estranho. Este vivia no centro da cidade, numa casa de dois andares, como várias dentre as que o Conselho de Riverast cedera aos estudantes de Magia. Talvez até estivesse diante de uma delas, pensou Kieran, vendo que havia uma tabuleta sobre a porta azul. Talvez a Arquimaga houvesse decidido transferi-lo para lá. No entanto, assim que bateu, ele se lembrou de que a elfa o mandara falar com o dono da casa, e não com os veteranos, e ao erguer os olhos para a tabuleta não encontrou o nome de uma residência. Em vez disso, havia a pintura chamativa de um alaúde e um trecho de música, e ele se perguntava o que aquilo podia querer dizer quando um meio-elfo de barba rala e olhos vivos surgiu à porta.
-- Boa noite! Como lhe posso ser útil? – perguntou, com uma mesura brincalhona que era também um convite para entrar. Sem saber o que dizer, Kieran avançou e lhe estendeu o envelope, ao mesmo tempo que relanceava os olhos pela sala. Estava quase às escuras, exceto pela lâmpada que o meio-elfo pousara sobre um balcão, e os móveis consistiam em bancadas sobre as quais havia cítaras e alaúdes em vários estágios de construção ou restauro. Uma dezena de outros, completos e em bom estado, estavam presos à parede, o que acabava de completar o quadro: esta não era uma residência da Escola de Magia, e sim a loja de um fabricante e comerciante de instrumentos.
E ele – o dono da casa em pessoa – tinha acabado de ler a mensagem da Arquimaga.
-- Pelas barbas de Bragi! – O artesão invocou o protetor dos bardos, deu uma risada divertida. – Então você é um mago poderoso, mas tem que controlar sua raiva? E devo lhe ensinar música? Seria melhor eles admitirem de uma vez que o tal Camdell estava certo e não há Magia sem Arte... não é verdade?
-- Não entendi – Kieran se retraiu.
-- Ah, me desculpe. Isso não vem ao caso. Ocorre que a Arquimaga me escreveu dizendo que você, ah – lançou os olhos à carta --, Kieran de Scyllix, tem um Dom muito forte, é honrado e procura ser justo, mas seus modos são grosseiros e sua personalidade é uma desgraça. Ela pediu que eu lhe ensinasse um instrumento, à sua escolha, para equilibrar sua energia; e tem mais – acrescentou, vendo o rapaz abrir a boca, indignado. – Mandou avisar que essa é uma condição inegociável para que você continue na Escola. A Mestra Shiri vai lhe indicar os cursos de Magia que deve seguir e eu vou reportar seus progressos na música.
-- Você só pode estar brincando – murmurou Kieran, sentindo o sangue esquentar suas faces.
-- De jeito nenhum. Você não é o primeiro que ela me envia – replicou o artesão, sem se intimidar. – Bom, é tarde para uma primeira aula, mas seria bom já escolher um instrumento. Deixe-me ver suas mãos. Hum, parecem boas, ágeis, dedos longos... Mas você não tem cara de quem vai gostar do alaúde. Vamos tentar uma cítara. Melhor ainda: uma harpa. Veja esta aqui, eu a consertei há poucos dias, é simples e de boa qualidade. Experimente!
Empurrou o instrumento contra o peito de Kieran, ainda não refeito do choque. Suas mãos se fecharam sobre a madeira polida enquanto tentava decidir: aquilo era mais um teste, proposto pela Arquimaga após o encontro para o chá; ou talvez o encontro houvesse sido o verdadeiro teste, ela o usara para saber quem era aquele rapaz e o que ele escondia por trás de suas defesas.
-- Experimente – insistiu, persuasiva, a voz do artesão. Kieran deixou as pontas dos dedos correrem sobre a harpa – salgueiro, pressentiu, mais do que reconheceu – e ao longo das cordas de tripa torcida. Uma nota quase inaudível se elevou dali, e ele repetiu o gesto, agora com mais vontade, o som trazendo à sua mente a imagem de um arco-íris refletido na água. Nada mau, pensou, lembrando os versos que escrevera quando adolescente e nunca mostrara a ninguém, envergonhado, não da poesia em si, mas de perder com ela o tempo precioso que deveria ser dedicado à Magia.
E agora – finalmente ele percebeu, e se sentiu tolo e vitorioso por isso --, agora uma das magas mais sábias de Athelgard o autorizara a fazê-lo. Mais que isso, ela ordenara que o fizesse, trouxera a Arte como um presente de volta à sua vida. Por intermédio da música, dessa vez, mas isso também foi uma escolha sábia, Kieran nunca fora muito bom com as palavras. Ele pensou em como contaria sobre o encontro aos companheiros de residência, adivinhou o seu espanto, o alívio de alguns, talvez algum sarcasmo por parte de Isel. Pensou também que poderia, quando saísse dali, comprar um bolo numa das bancas ainda abertas do mercado e comer com eles.
E ao dedilhar mais uma vez as cordas da harpa, antes de devolvê-la ao artesão e seu futuro mestre, Kieran de Scyllix fechou os olhos e voltou a sentir o gosto das flores de tília. Antecipando a paz no abraço do menino de olhos negros. Ouvindo o som de um amor vitorioso na risada da moça de tranças.
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Parte 1
Parte 2
E agora que você já sabe que o futuro Mestre de Magia do Pensamento continuou em Riverast, que tal ler uma história dele, também ambientada lá, e de quebra onze contos de autores incríveis sobre Magos e Magias? Eles estão nesta coletânea , publicada pela Editora Draco, que venceu o Prêmio Argos 2018!
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Obrigada por terem chegado até aqui. Espero que continuem acompanhando as histórias de Athelgard!
Tão curtinha essa parte, mas um fim digno para esse trecho da vida de Kieran!E com certeza todo mundo tem que ler a coletânea Magos, recomendo!
ResponderExcluirAh, a ideia era mostrar como a arte retornou à vida de Kieran e fez dele um cara (um pouco) menos casmurro! Que bom que achou digno... Espero que mais pessoas leiam a Magos!
ExcluirAh, que lindeza! Tô aqui com os olhos marejados.
ResponderExcluirQue bom que você gostou. :)
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