domingo, 2 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (parte 4)

O velho marioneteiro estava de costas para a porta e mostrava alguma coisa ao rapaz arruivado, que olhava atentamente para suas mãos. Assim, só o moreno viu o senhor bem-vestido entrar no galpão de trabalho, e na mesma hora assumiu uma postura defensiva. O sorriso apareceu no instante seguinte, um sorriso claro e fácil de artista, de quem depende da simpatia do público para comer. Esse rapaz deve ter passado maus bocados na vida, pensou Theoddor.
-- Mestre. – O jovem tocou o ombro de Hector, alertou-o com os olhos.
-- O quê? Ah, Theoddor! – O artesão se voltou, sorrindo, ele também, porém sem reserva. – Não imagina a alegria que o dia de ontem me trouxe! Veja, este é meu sobrinho, Tomas... Já lhe falei sobre ele, não?
-- Sim, sim! Sobrinho e aprendiz de ofício, certo? – Estendeu a mão para o ruivo, que a apertou com firmeza, a expressão séria. – É um prazer conhecê-lo. Vai ficar na cidade?
-- Ele não sabe – Hector respondeu pelo rapaz --, mas vai passar o inverno, e me dará uma boa mão na oficina. Se decidir ficar, talvez possa me auxiliar na Escola. Já o amigo dele está vindo hoje porque, além de trabalhar com fantoches, é malabarista. Ouvi, por esses dias, os aprendizes dizendo que precisavam de um.
-- Pois precisamos – disse Theoddor, e olhou dentro dos olhos do rapaz. Estavam inquietos, mas eram límpidos e sustentavam seu olhar: ele não escondia nada além da desconfiança. E, ao perceber os traços de tinta em seu pulso, Theoddor teve uma boa ideia do motivo.
-- Cyprien de Pwilrie – repetiu, ao lhe apertar a mão. – Veio de longe, Cyprien. É sua primeira visita às Terras Férteis?
-- Pode apostar – disse o rapaz, e completou com um instante de atraso: -- Senhor Theoddor.
-- Hum, bom, não vou dizer para me chamarem pelo nome, como Hector, porque vocês são quase crianças perto de nós. Mas, se é para ter cerimônia, prefiro que me chamem de Mestre. É o que sou, na Escola de Artes Mágicas... onde, suponho, você pretende trabalhar.
-- Sim, meu tio pensou nisso, mas só se houver trabalho para mim – disse Tomas, com seu jeito sério. – Se não, ficarei na oficina, em Vrindavahn, e ajudarei nos espetáculos. Não se incomode conosco.
-- Não é incômodo! Seu tio Hector é excelente artesão; combinamos que ele voltaria logo após o solstício, e se você estiver com ele será bem-vindo. Já seu amigo... Bem, malabarismo é uma das artes mais usadas para ajudar na concentração, e nossos meninos e meninas mais novas continuam precisando de um mestre. Alguém que seja paciente e bom no que faz.
-- Cyprien é muito bom – afirmou Tomas, e se voltou para o amigo. – Mostre a ele.
-- Oh, não. Isso pode ficar para... – começou Theoddor, mas se calou ao ver o rapaz moreno se pôr em movimento. Ele nunca estivera naquele galpão, mas foi direto a um canto onde ficavam algumas bolas usadas no malabarismo e, mesmo agachado, atirou cada uma para cima e as sopesou nas mãos para escolher as que lhe convinham. 


Ao se levantar – aos poucos, com movimentos fluidos como os de um gato --, já tinha começado sua demonstração, as bolas de madeira pintada saltando sem esforço de suas mãos e girando no ar, cinco seis, sete, um círculo completo que se repetiu três vezes antes que Cyprien introduzisse uma variação. Suas mãos não hesitavam, o olhar agora suavizado, atento às bolas que fazia cruzar sobre sua cabeça, passar por baixo do braço ou da perna, quicar no chão antes de retomá-la e devolvê-la ao círculo multicor que girava à sua volta, como se o artista fosse o sol. Perfeito, preciso, concentrado, pensou Theoddor. O que Camdell não poderia ter feito por esse rapaz, se ele fosse dez ou doze anos mais jovem?
-- Er... Cyprien, acho que já chega. – A voz de Hector quebrou o encanto. – Mestre Theoddor já viu que você é bom nisso.
-- Sou? – Um sorriso encurvou os lábios do rapaz, as bolas ainda no ar, os olhos voltados para Theoddor.
-- Certamente! O melhor que já vi – foi a resposta sincera. Cyprien assentiu e, a partir daí, foi retendo as bolas coloridas e as deixando uma a uma sobre uma mesinha, enquanto Theoddor voltava a falar.
-- Se quiser trabalhar conosco, e espero que queira, sua função será orientar tanto iniciantes quanto jovens que já têm alguma prática. Esses, durante o treino, vão fazer alguns exercícios propostos pelos Mestres de Magia, e você deve ser tolerante com o tempo e as necessidades deles. Pagamento, seis peças de bronze a cada quarto de lua, e todas as refeições no castelo. Temos um trato?
-- Seis de bronze, mais a comida? Nem tenho o que pensar – sorriu o rapaz. Parecia outro, mais confiante, mais aberto, mais amigável, como se mostrar o que sabia o houvesse feito baixar suas defesas. Se lhe perguntassem, Theoddor diria que tinha gostado dele.
-- Então está certo. Pode vir amanhã cedo, ao nascer do sol, se quiser tomar o desjejum; ou pela décima hora, se preferir dormir um pouco mais e só chegar para o treino. Os aprendizes serão avisados para vir à sua procura. E, Tomas, após o solstício, você é bem-vindo para se juntar a nós, na qualidade de ajudante de seu tio. O pagamento dele aumentará em três bronzes, e eu tenho certeza de que ele será justo com você.
-- Serei, sim! Vou até puxar a orelha dele como antigamente – brincou o velho.
-- Posso apostar que ele merecia – Theoddor riu junto. – Bem, tudo encaminhado. Mandem dizer se precisarem de alguma coisa.
Os três assentiram, deixando claro, pela expressão em seus rostos, que nada tinham a acrescentar para o momento. Um pouco mais e ficariam constrangidos, por isso Theoddor se despediu e deixou o galpão de trabalho. Continuou a caminhar pela ala, inspecionando as obras do anfiteatro e tomando notas para futuras providências, mas volta e meia se descobria pensando nos recém-chegados. Ou melhor, em Cyprien de Pwilrie, que na verdade não vinha de tão longe, mas cuja presença nas Terras Férteis era no mínimo inusitada.
Fosse quem fosse, ele devia ter boas histórias para contar.


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Imagem: malabarista, retratado no Gradual de Saint-Etienne de Toulouse, coleção Europeana da British Library.

Parte 1

Parte 3

Parte 5


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