segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 3)



À sua esquerda, um grupo de operários passou carregando tábuas, e mais à frente se erguia a pilha de tijolos que a olaria entregara na véspera. Somando tudo, estavam indo bem, até adiantados na construção do anfiteatro, onde mestres e aprendizes da Escola de Artes Mágicas passariam a se reunir para festas e cerimônias. Outro grupo se empenhava em ampliar a ala destinada a hospedar os aprendizes, providência urgente em vista das cartas que não paravam de chegar. Vinham de todas as cidades e muitas aldeias das Terras Férteis: cartas de magos dando notícias de jovens promissores, a quem por alguma razão não podiam ensinar; cartas de conselheiros, de letrados e até mesmo de Prestes esclarecidos, com teor semelhante, mas escritas num tom cauteloso, indagando o que fazer com aqueles rapazes e moças cuja simples presença bastava para que a louça despencasse das prateleiras. Por fim, havia cartas enviadas pelos próprios jovens, uns orgulhosos, outros aflitos, muitos simplesmente esperançosos, pedindo ajuda para lidar com o Dom recém-descoberto da Magia ou manifestando o desejo de aprendê-la, ainda que todos ao seu redor afirmassem que seria impossível. Essas eram as preferidas de Theoddor, e ele prometera a si mesmo não medir esforços para receber e instruir os postulantes. Nem todos se tornariam magos – isso podia acontecer até mesmo com os que tinham o Dom inato --, mas em muitos a Magia iria florescer, alimentada pelo sonho e pela Arte. Talvez até nos três espertinhos que tinham se juntado, julgando-se escondidos por trás da pilha de tijolos, para jogar conversa fora em vez de praticar como deveriam.
Eles estavam no castelo havia mais de um ano, cada qual com seu talento, com seu sonho, com sua dificuldade. Donovan, o rapaz de nariz arrebitado, não conseguia cantar no tom. Elina de Herrien tinha dificuldade para se concentrar, e Marla de Kalket era tão desajeitada que tudo lhe caía das mãos, mas, desde que insistissem e fizessem os exercícios, todos iriam melhorar. Todos estavam ali por um propósito, assim como a Escola. E, sendo elfos e meio-elfos, e ainda por cima tão jovens, tinham todo o tempo do mundo para aprender.
Mesmo assim, era preciso que o usassem melhor.
-- Muito bem... Pegos em flagrante! – exclamou Theoddor, surgindo por detrás dos tijolos; os três se encolheram, e o mestre não disfarçou um sorriso. – Ou muito me engano ou há uma aula sendo dada neste momento, na qual todos vocês deveriam estar. Não é verdade?
-- Hum, não tenho certeza. – Donovan fez cara de inocente, olhou para a amiga mais próxima. – Tínhamos algo marcado para hoje?
-- Não estou bem lembrada – disse a moça de Kalket, entrando no jogo. – Deixe-me ver...
-- Ah, parem com isso! Tem uma aula com Mestra Thalia – disse a outra, e olhou para Theoddor, com ar constrangido. – Desculpe, Mestre. Nenhum de nós estava... inspirado para ouvir falar de símbolos e correspondências.
-- Oh! E o aprendizado depende apenas de inspiração? – Theoddor cruzou os braços, forjou uma expressão severa, que levaram mais ou menos a sério. – Lembrem-se, vocês três: a intenção está por trás de todo ato de Magia, e ela começa por querer fazer alguma coisa. Mesmo quando tudo que apetece é estar com os amigos, jogando conversa fora.
-- Mestre... Não era isso que estávamos fazendo. Não fomos à aula, é verdade, mas tínhamos que acertar detalhes sobre a peça do solstício de inverno – disse Elina de Herrien, uma elfa de cabelo prateado e olhos cor de violeta. – Mestre Camdell nos deu um roteiro, mas estamos com dificuldade.
-- Mas ainda têm bastante tempo antes da cerimônia. E uma excelente mestra para ensinar os princípios e as leis da Magia, que aliás podem lhes ser de boa ajuda – lembrou Theoddor. – Não entram símbolos na peça? Cores, aromas, representações? Em tudo isso Thalia pode orientá-los.
-- Sim, mas é que... nosso problema não é esse. É a peça em si – disse Donovan, coçando a ponta do nariz. – A história que vamos contar. Precisa ter os símbolos, mas... mas não é só isso.
-- Não sabemos o que e como fazer – explicou Marla de Kalket, meio-elfa como o rapaz. – Mestre Camdell sugeriu uma porção de livros, mas não temos tanto tempo assim. Queríamos algo mais direto.
-- Entendo – disse Theoddor, com um suspiro. – É, eu sei, ainda não conseguimos um Mestre de Sagas. Mas, olhem: por enquanto, se quiserem, posso ouvir as ideias de vocês e tentar ajudá-los.
-- Ótimo! Por mim, podia ser agora mesmo! – afirmou Marla. Os colegas assentiram sem muito entusiasmo, como se soubessem o que Theoddor diria em seguida.
-- Agora, de jeito nenhum, porque vocês estão perdendo uma aula importante. Já para a torre, sem discussão! – Resmungos dos três: eles tinham que representar seu papel até o fim. – Cheguem ao refeitório uma hora antes do jantar, e então conversaremos.
Mais resmungos, dessa vez em concordância, enquanto os jovens se punham a caminho da Ala Azul. Theoddor os acompanhou com o olhar, consciente de que havia mais uma questão a ser resolvida. A Escola não podia seguir sem um Mestre de Sagas, nem, por mais que houvesse músicos excelentes em Vrindavahn, sem um mestre de Música que entendesse de ritos e cerimônias mágicas. Ele partilhara sua preocupação com Camdell, que prontamente escrevera a seus amigos em Kalket pedindo indicações; recebeu algumas respostas, mas sua intuição de mago e mentor da Escola o fez recusar todos os candidatos, à exceção de uma jovem Mestra de Sagas que seguia os ensinamentos do sábio Odravas. Queria estar mais próxima da natureza, e, embora Vrindavahn ficasse a um pulo de distância, o Castelo das Águias e sua floresta pareciam uma boa opção. No fim, porém, acabou se mudando para uma aldeia lá no Norte distante, de onde enviava longas cartas contando sobre o frio, a gentileza dos elfos da tribo local e as conversas sempre curiosas que mantinha com o xamã.
Ao menos não tivemos problemas com os mestres de Magia, pensou Theoddor, enquanto retomava a caminhada. Finn e Sophia, Thalia e Camdell, além dele próprio, responsável pelas Ciências da Terra, que sempre tinham sido sua paixão – ali estava uma ótima equipe, mesmo que ainda não fosse a ideal. Quanto aos mestres das Artes, não poderiam estar mais bem servidos do que em Vrindavahn. A menos, talvez, que tivessem ido a Madrath, onde havia a Escola de Teatro, os estúdios de grandes pintores e escultores, a Arte mais sublime das Terras Férteis... Mas seria ingênuo supor que uma proposta como a de Camdell seria bem aceita em Madrath ou em qualquer das Onze Cidades.
-- Senhor Theoddor! – Um operário acenou a curta distância, um homem de meia-idade que crescera em Vrindavahn, acostumado a olhar com deferência para os membros de sua família. – O velho Hector, o dos fantoches, estava à sua procura um pouco mais cedo. Deve estar no galpão de trabalho, ele e dois rapazes que vieram junto. E me pediu para avisar se o senhor aparecesse por aqui.
Theoddor agradeceu e deu meia-volta rumo ao galpão. O antigo depósito fora reformado para comportar um espaço amplo, com mesas de trabalho, ganchos e prateleiras para guardar as ferramentas de vários ofícios. Era o local onde estocavam boa parte dos suprimentos, onde os mestres artesãos preparavam o material para suas aulas e às vezes recebiam os aprendizes, principalmente quando chovia. A área pertencia a eles, franqueada por Theoddor desde que os convidara a trabalhar na Escola; mas seu uso devia obedecer a uma infinidade de regras, e Hector dera prova de estar cumprindo uma delas.
Parentes, ajudantes, artistas ou operários em busca de trabalho: qualquer pessoa trazida ao Castelo das Águias pela primeira vez devia ser apresentada ao anfitrião.


Imagem: construtores, retratados em pintura de livro medieval

Parte 1

Parte 2

Parte 4


Nenhum comentário:

Postar um comentário