A expectativa de trabalhar na Escola de Artes Mágicas manteve Cyprien acordado boa parte da noite. Era a segunda na casa de Hector, numa cama confortável, ainda que improvisada, que já levara embora a fadiga da viagem. No dia anterior, pela manhã, ele fora se apresentar ao Conselho, acompanhado por Tomas e família; fizeram muitas perguntas, mas no fim lhe entregaram uma permissão de residência e trabalho, selada com as duas trombetas de Vrindavahn e com uma assinatura cheia de volteios. Dali foram almoçar com velhos amigos de Tomas, e todos se mostraram cordiais, mas Cyprien não conseguia tirar da cabeça a ideia de que o julgavam em silêncio, por sua origem, por seu ofício, pela cor de sua pele. Tinha uma dúzia de respostas na ponta da língua para dar a quem o insultasse. O julgamento, porém, ficou apenas nos olhos das pessoas, e ele aprendera muito cedo as duas maneiras possíveis de reagir a isso. Podia sustentar o olhar, permanecer altivo, manter-se sério ou até fechar a cara, de forma a deixar claro que não estava para brincadeira; ou, ao contrário, podia sorrir, mostrando que era um bom sujeito, sem nada a esconder, e não fazia jus à fama que acompanhava os saltimbancos de Pwilrie. Na verdade, todas as pessoas de Pwilrie, quando se vinha para as Terras Férteis. Pelo que vira em Madrath, até o prefeito de sua cidade seria olhado com desconfiança ao cruzar a fronteira.
O senhor do Castelo das Águias não se mostrara desconfiado, embora houvesse demonstrado alguma surpresa ao conhecê-lo. Cyprien se inclinava a pensar que era um homem bom, ou pelo menos decente, e algo lhe dizia que voltariam a se ver dentro em breve. Quanto às pessoas a quem ensinaria malabarismo, eram uma incógnita; vira alguns jovens no Castelo das Águias, mas não sabia se eram aprendizes, e estavam distraídos e distantes demais para sequer reparar nele. Toda a experiência ficara para o dia seguinte.
Hoje.
Quando os sinos do templo de Bragi anunciaram a nona hora, Cyprien se pôs a caminho, calculando o tempo que suas pernas jovens levariam em comparação ao passo descansado da égua de Hector. O velho artesão tinha ficado em casa, empenhado em organizar o anexo que lhe servia de oficina a fim de que Tomas reassumisse seu antigo lugar. Stela preparara o desjejum para todos e fora ao mercado com duas vizinhas, cada qual com um filho pequeno e mais que dispostas a acolher e aconselhar a moça estrangeira. Por sua vez, ela parecia contente em se ocupar apenas de Aryan e das tarefas de uma dona de casa. Talvez nem mesmo ajudasse nos próximos espetáculos, isso se chegassem a fazer algum, já que o trabalho no Castelo das Águias tinha rendido algumas economias. Um inverno tranquilo, pensou Cyprien, olhos presos às torres enquanto caminhava. Um inverno sem contar cada moeda, sem ter que passar o chapéu. Até onde se lembrava, essa seria a primeira vez.
-- E o amigo, quem é? – Os portões do castelo estavam abertos, e uma carroça entrou, carregada com sacos de trigo, enquanto o porteiro assentia ao ouvir seu nome. – Ah, sim, o artista que começa hoje a ensinar malabarismo. Sabe onde deve ir?
Cyprien fez que sim e rumou pelo caminho que fizera na véspera. Com o sol da manhã, o castelo parecia mais claro, mas o espaço exterior estava quase vazio, a não ser por umas poucas pessoas ocupadas em cuidar de uma horta. Ele passou por um tanque de peixes e um cercado de aves domésticas antes de virar à esquerda e chegar à ala tomada por tijolos e operários, além de um grupo de crianças praticando malabarismo diante do galpão de trabalho. Faziam-no muito mal, mesmo o garoto louro que era o único a conseguir manter três bolas no ar; nunca haveria uma quarta se ele não aprendesse a economizar os movimentos. A menina a seu lado mal conseguia cruzar duas bolas na altura do nariz. Era a menor de todas, onze ou doze anos talvez, com traços élficos bem pronunciados, como aliás todo o resto do grupo. Cinco pares de olhos oblíquos, cinzentos ou azulados, que não tardaram a perceber a presença de Cyprien.
-- Ih, olha. – O lourinho tocou o amigo mais próximo com o cotovelo. – Acho que ele chegou.
-- Você é malabarista? – perguntou, sem cerimônia, a menina mais nova; tinha uma voz bem infantil, e saltitou sobre os pés ao falar, fazendo-o pensar num passarinho. – Se for, é o nosso novo mestre. Somos do Primeiro Círculo.
-- Sou malabarista – disse Cyprien, sorrindo para ela. – E acho que sou seu mestre, mas não sei o que significa Primeiro Círculo.
-- Aprendizes iniciantes. Que ainda não praticam Magia, só fazem exercícios preparatórios e estudam muito – esclareceu um garoto de rosto comprido. – Até o Terceiro Círculo, se é considerado aprendiz. Sairemos da escola como magos, iniciados do Quarto Círculo, mas para ir adiante precisaremos achar um mestre, ou ser aceitos na Escola de Magia de Riverast.
-- Outra das Onze Cidades, não é? Bom, eu venho do Leste, de uma cidade chamada Pwilrie – disse Cyprien. -- Não entendo nada de Magia, mas – fez um gesto, pedindo que lhe entregassem as bolas pintadas --, de arte entendo bastante, pelo menos algumas. Vi a prática de vocês, enquanto me aproximava, e vamos ter que corrigir certos problemas na base, voltar um pouco atrás nos exercícios. Se não, irão em frente cometendo erros, e logo será quase impossível progredir.
-- Mas a gente... – o de rosto longo começou, mas fechou a boca, parecendo envergonhado.
-- A gente o quê? Pode falar – Cyprien o encorajou.
-- A gente não precisa progredir na arte. Com todo respeito – acrescentou o menino. – Não vamos ser malabaristas. Isso é só para aprendermos concentração.
-- É? Como assim? – Cruzou os braços, disposto a ouvir; talvez não tivesse entendido. – O Mestre Theoddor disse que vocês fazem outros exercícios, que aprendem com os magos, ao mesmo tempo que praticam. Mas mesmo assim têm que se aperfeiçoar nisso aqui, certo?
-- Certo. Precisamos fazer isso sem pensar – disse o de cabelos louros. – A ideia é que nos concentremos tanto que não pensemos mais nas mãos. E depois não vamos precisar das mãos. Só da vontade mágica.
-- Vontade mágica? A... a Magia vai mover os objetos para vocês? – Cyprien franziu a testa; parecia difícil de crer, mas todos estavam assentindo com entusiasmo, como se o cumprimentassem por ter entendido rápido. – Querem fazer malabarismo sem usar as mãos?
-- Isso mesmo! Mestre Finn consegue – disse o lourinho. – É o mestre de Forma e Pensamento aqui da Escola. Ele ainda não dá aula para a gente; antes disso, entre outras coisas, temos de aprender a jogar três bolas sem errar.
-- Logo, progredir na arte – disse Cyprien, com alívio; tinha encontrado o fio da meada, e não iria perdê-lo. – Se têm de fazer malabarismo com perfeição, não importa se é para ser magos ou artistas, devem parar de cometer erros. E eu estou aqui para ajudá-los. Vamos lá?
Imagem: Crianças dançando em livro medieval (cerca de 1500)
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