Ouvindo isso, o velho marioneteiro se apressou em largar o atiçador e pegar as chaves. A porta se abriu, trazendo para dentro um vento frio e três crianças usando capas de inverno, que esvoaçaram como asas quando elas correram em direção a Cyprien.
-- Você ainda está aqui! – exclamou a menorzinha, com os olhos brilhando. – Que bom! Eu nunca iria me perdoar se não estivesse!
-- Por quê? O que houve? – Perplexo, ele olhou para Theoddor, que estava um passo atrás de Pardalzinho, ladeado por dois garotos. – Eles só querem se despedir antes que eu deixe Vrindavahn, ou...?
-- Pelo contrário: eles querem que você fique, e que volte ao Castelo das Águias – disse Theoddor. -- Mas antes vão explicar o que aconteceu e pedir desculpas. Não é mesmo, Linnet?
-- Sim! Eu, principalmente – disse Pardalzinho, em tom solene.
-- Mas por quê? O que as crianças fizeram? – Hector se acercou, curioso.
-- Trata-se da acusação que os artesãos fizeram a Cyprien. Sim, a acusação de roubo – disse Theoddor, e se voltou para o saltimbanco. – As crianças vão contar tudo, mas, para começar, quero esclarecer que elas também não conheciam as regras para usar os suprimentos do galpão de trabalho. Achavam que qualquer pessoa no Castelo podia pegá-los, e não voltaram a entrar lá depois que os avisos foram postos nas paredes. Já começou a entender?
-- Eu acho que... sim. – As palavras teceram uma teia na mente de Cyprien, aprisionaram memórias. – Quer dizer que as coisas que sumiram, que os artesãos me acusaram de ter roubado...
-- Fomos nós! Mas, como o Mestre Theoddor acabou de dizer, não sabíamos que era para anotar, e não fazíamos a menor ideia de que estavam suspeitando de você. Se soubéssemos, teríamos ido até lá e falado com os artesãos. Eu juro – disse Pardalzinho, e os meninos atrás dela confirmaram com acenos enérgicos.
-- Queríamos fazer uma surpresa... para você, mas também para todos no Castelo – explicou Brenan, o garoto de rosto comprido. – Estávamos montando uma caixa grande, que íamos pôr junto com os baús da casa da maga, na peça de solstício; de dentro da caixa sairíamos nós, vestidos como se fôssemos duendes do Reino Invisível, e faríamos uma correria pelo palco. O pessoal do Segundo e do Terceiro Círculo ia ficar sem saber o que fazer – concluiu, com uma risadinha --, mas íamos sair logo, é claro! Não queríamos atrapalhar a peça. Só aparecer um pouquinho nela.
-- E passar a lua seguinte copiando tratados de Princípios da Magia – disse Theoddor, sorrindo por trás da barba --, porque Thalia não deixaria isso barato. Mas eles decidiram que valeria a pena.
-- E ia mesmo. Mas nós nunca pensamos em causar problemas para Cyprien. Por isso viemos pedir desculpas – disse o lourinho, com as mãos para trás. – E amanhã Mestre Theoddor vai reunir os artesãos, e vamos explicar o que aconteceu e deixar claro que você nunca roubou nada do Castelo das Águias.
-- E a gente quer que você volte para lá, volte a nos ensinar malabarismo e quem sabe outras coisas, porque estamos gostando muito – disse Pardalzinho. – A gente – não só nós três, mas todo o Primeiro Círculo – a gente gosta muito de você.
-- E nós também – disse uma voz também feminina, porém mais adulta, vinda do extremo da sala. Cyprien ergueu os olhos e viu Marla de Kalket, a moça de faces rosadas, acompanhada por seus dois amigos inseparáveis: Elina, a jovem elfa que não conseguira ler seus pensamentos, e o rapaz de nariz arrebitado, Donovan. Tomas os fizera entrar em algum momento durante a fala das crianças, e o saltimbanco estava tão envolvido que nem mesmo ouvira a batida na porta.
-- Vocês aqui! – Theoddor franziu as sobrancelhas. -- Como foi que vieram, se eu trouxe o carro?
-- A pé, é claro. Na descida, andamos mais rápido que os cavalos, ainda mais nessa estrada cheia de buracos – replicou a elfa.
-- Ou não, pois acho que saímos quando o senhor ainda estava mandando aprontar o carro. Decidimos rápido – disse Donovan --, assim que soubemos o que as crianças tinham feito e que elas vinham pedir para Cyprien ficar no Castelo. Também queremos muito que ele fique. Pelo menos até o solstício.
-- Vai ficar? – perguntou Elina, sem rodeios. – Agora, que já não podem acusá-lo de roubar e mentir?
Não graças ao seu feitiço, pensou Cyprien, mas conseguiu segurar a língua e apenas olhar para ela. Com seu rosto de neve e manto ricamente bordado, a moça também lhe devia desculpas, mas, ao contrário de Pardalzinho e das outras crianças, sequer lhe passava pela cabeça pedi-las. Isso acabou, em grande parte, com a boa vontade que a atitude dos pequenos despertara nele.
-- Não sei se devo – disse, sem olhá-los, para não ver a decepção em seus rostos. – Posso provar que sou inocente desta vez, mas para mim já ficou claro: a maior parte das pessoas daqui vai sempre me olhar de lado, por tudo que eles ouviram a respeito de Pwilrie. Não só no Castelo das Águias, mas em Vrindavahn, nas Terras Férteis... Este não é um bom lugar para o meu povo.
-- Claro que é! Gostamos tanto de você! – exclamou Pardalzinho, e começou a saltitar enquanto enumerava. – Só no Castelo, tem a gente, o Mestre Theoddor, o Mestre Finn e o Mestre Camdell, e Mestra Sophia deve gostar também, mesmo sem ter falado nada. Os empregados gostam de você, principalmente a Netta, da cozinha; ela disse que você é divertido, e as moças que servem as mesas acham que é muito educado, sempre agradecendo por tudo, e o Gurion, que cuida das contas...
-- Linnet, querida, acho que Cyprien já entendeu – Theoddor interrompeu com brandura. – Ele sabe que muitas pessoas o apreciam; a questão é outra. E, Cyprien, eu gostaria de conversar a respeito, só nós dois, se não se importar em passar um pouco de frio lá fora. O povo do Leste costuma ser friorento... – Interrompeu-se, abanando a cabeça, como numa censura a si mesmo. – Ou talvez essa seja mais uma crença tola.
-- Pwilrie é muito quente no verão, e os invernos são amenos, por isso a maioria de nós estranha o clima frio. Mas eu passei os últimos cinco anos viajando pelo Norte – disse o rapaz. – O outono das Terras Férteis não é nada para quem viu a neve de Siberlint.
-- Oh, mas eu tenho uma ideia melhor! Por que não jantamos antes de vocês conversarem? – interveio Hector. – Desculpem a franqueza, mas minha barriga está roncando. E Stela fez comida para um batalhão.
-- Muito obrigado, mas nós já comemos – disse Theoddor. – E achei que vocês também tinham; peço desculpas por atrapalhar. Fico lá fora com os jovens enquanto vocês jantam.
-- Eu não estou com fome – disse Cyprien. – Posso sair com o senhor.
-- Eu também prefiro comer mais tarde. Agora, poderia levar todos vocês para conhecer a oficina – sugeriu Tomas, dirigindo-se aos aprendizes. – Já sei que alguns têm prática em mexer com fantoches, e outros vão começar na primavera. Talvez gostem de ver o que fazemos por aqui.
-- Isso! Dê a eles uns doces de amêndoas, daqueles que comprei mais cedo. Assim me livram da tentação de, amanhã, passar o dia todo beliscando enquanto trabalho – incentivou Tio Hector. – E Stela e eu vamos para a cozinha com o pequeno, e jantamos por lá, onde também está quentinho; e Theoddor e Cyprien podem ficar aqui na sala e conversar à vontade. Bebem um pouco de vinho, não bebem?
-- Hector, não quero atrapalhar... – começou Theoddor, mas se calou vendo que os outros agiam conforme a sugestão dos dois artistas. Em poucos momentos, o jovem ruivo tinha saído, acompanhado pelos aprendizes; sua mulher pôs sobre a mesa um pão de centeio, manteiga e algumas maçãs, Hector trouxe copos e uma jarra de vinho, e os dois deixaram a sala levando o bebê. Ficaram Theoddor e Cyprien, agora sentados frente a frente e pouco à vontade.
Ou talvez fosse apenas uma questão de tempo até começarem a falar.
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Imagem: Crianças e o Flautista de Hamelin, por Arthur Rackham (1867 - 1939).Parte 1
Parte 12
Parte 14
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