-- Nem posso acreditar, Tomas! Você, de volta... Depois de todos esses anos! – A emoção mal permitia que Tio Hector falasse; ele fitava intensamente o sobrinho, a ponto de não enxergar as outras pessoas ali paradas, de pé, a menos de dez passos. – Era um menino, mal tinha começado a fazer a barba, e agora, agora... Olhe só para você!
-- Nem tanto, tio. Eu já tinha dezessete – sorriu Tomas. – Claro que mudei, mas o principal é... Bom, melhor que você os veja por si mesmo.
-- Quem? Oh, claro, seus amigos. – Hector se voltou para o casal que aguardava em silêncio, a moça de cabelo castanho e o rapaz moreno com o bebê dormindo no ombro. – Sejam bem-vindos, caros... hum, como se chamam?
-- Eu sou... – Cyprien começou a falar, mas Tomas interveio, sorridente, ao mesmo tempo que puxava Stela para junto de si.
-- Olhe bem para o menino, tio! Não pode ser filho deles dois, pode? – indagou, sorrindo ao ver o espanto, logo transformado em ternura, nos olhos do velho tio. – Esta é minha mulher, Stela. Eu a conheci no País do Norte. E esse é nosso filho, Aryan...
-- Como seu pai!
-- Sim, tem o nome dele. O próximo será Hector – afirmou Tomas, cheio de certeza. – E agora lhe apresento Cyprien de Pwilrie, meu grande amigo e parceiro de estrada. Ele nunca tinha vindo às Terras Férteis, e não teve boa impressão do que já viu, por isso peço que me ajude a desfazê-la nos próximos dias.
-- Sim, claro! O que eu puder fazer por seu amigo! – exclamou Hector, ainda emocionado. – Seja bem-vindo, Cyprien. E você também, é claro, Stela! Bem-vinda à família! Entrem, fiquem à vontade!
-- Obrigado, senhor, mas... temos que acomodar o cavalo – disse Cyprien. Fez isso de propósito, porque não haveria problema em deixar o animal ali fora por uma hora ou duas, mas aquele era um momento de reencontro, de família. Tio Hector hesitou, mas logo compreendeu seus escrúpulos e explicou onde ficava o estábulo mais próximo, enquanto Stela pegava o bebê e Tomas retirava da carroça a bagagem de uso mais imediato. Então entraram na casa atrás do velho, e Cyprien esperou que fechassem a porta antes de conduzir o veículo até a rua seguinte.
Ao regressar, encontrou todos à mesa, ao redor de uma torta de carne temperada e copos de cerveja. Falavam sobre gente de Vrindavahn – vizinhos, conhecidos, companheiros de infância de Tomas, vários dos quais também já eram pais de família --, mas, ao mencionar outros artesãos, a voz de Hector abandonou o tom saudoso e se tornou animada, um prenúncio às boas novas que tinha para dar.
-- Você se lembra, é claro, de Theoddor, o ricaço que herdou o Castelo das Águias. – Era o castelo que Cyprien vislumbrara a distância, sobre a montanha. – Lembra como todos na cidade diziam que ele era excêntrico?
-- Lembro, é claro – Tomas confirmou. – Diziam que era um bom homem, muito generoso, mas só vivia colhendo flores e lendo livros e não regulava bem.
-- Sim, isso mesmo. Pois bem: ele resolveu fundar uma escola no castelo, mas não uma escola comum. – Fez uma pausa, aguçando o interesse dos três, e prosseguiu em tom solene: -- Ele fundou... uma escola de Magia.
-- O quê? – A exclamação foi uníssona.
-- É o que ouviram – declarou Hector, satisfeito com a reação. – Não entendam errado, Theoddor não é um... um feiticeiro ou coisa parecida. Ele explicou a todos, inclusive no Conselho, que a Magia pode servir para fazer o bem; para ajudar a curar doenças, para proteger a cidade, para conhecer as plantas e saber quando chove. E os Conselheiros fizeram algum acordo com ele sobre o Castelo das Águias, que tem a ver com impostos, e aí tudo começou. Um mago veio morar aqui – um elfo chamado Mestre Camdell --, e depois veio outra maga, e em seguida um casal, e cada um desses últimos trouxe meia dúzia de aprendizes. Agora já deve haver uns trinta ou quarenta vivendo lá, jovens e até crianças a partir dos doze anos. Mas o melhor vocês não sabem. – Inclinou-se, buscando cada um daqueles pares de olhos incrédulos. – Além de Magia, essa escola também oferece aprendizado em algumas artes. Música, pintura, teatro...
-- Teatro? – Cyprien se retesou no assento; aquilo lhe interessava. – Pensei que só se pudesse aprender em Madrath.
-- E que a única Escola de Magia fosse em Riverast – disse Tomas, corroborando o que tinham lhe dito sobre as leis da Liga das Terras Férteis. – Não sabia que podiam fundar outras.
-- Nem eu, mas pelo jeito é possível, tanto que o fizeram. E ensinam artes, como eu disse. Com isso, alguns de nós, artistas e mestres artesãos de Vrindavahn, fomos convidados para ir lá e oferecer esse aprendizado.
-- Quê...! – Tomas ergueu as sobrancelhas, sem fôlego. – Então você, Tio Hector, foi ensinar os magos a... a fazer fantoches?
-- Os magos, não. Os aprendizes. Garotos, com dezessete ou dezoito no máximo, e umas poucas meninas. Todos de orelha comprida, e alguns com o nariz em pé, como seria de se esperar. Mas, no geral, gosto deles, são inteligentes, esforçados... Gosto de Theoddor e do Mestre Camdell, que me tratam com respeito. E, é claro – riu, de um jeito que o fez parecer mais novo --, gosto do bom dinheirinho que isso me traz a cada quarto de lua. É bem melhor que depender do que pinga no chapéu.
-- E ainda faz apresentações? – Tomas, de repente parecendo apreensivo. – Teve dificuldades, nesses anos em que estive fora?
-- Dificuldades? Ah, meu filho, qual o artista que não tem? Não se sinta culpado. – Sorriu, de novo transformado em velho tio, rugas de bonomia em torno dos olhos, sobrancelhas espessas. – Sempre consigo ajuda aqui e ali, e não se esqueça de que sou o primeiro a ser procurado quando se trata de fazer ou consertar bonecos. Passei a ter muitos prontos, com ou sem cordéis, e as crianças já os conhecem, sempre vêm comprar. Nunca faltou um prato de comida ao velho Hector.
-- Fico feliz por saber disso, tio. Eu... sei que agi mal, deixando-o tanto tempo sozinho – disse Tomas, contraindo a boca. – Mas agora vou ajudá-lo, vou retomar meu lugar na oficina, nos espetáculos, vou... bem, fazer o que houver para ser feito. Stela também. Não pretendemos viver às suas custas, pode ter certeza.
-- Oh, eu sei, eu sei, mas então... Vieram para ficar? De vez, não só para uma visita?
Pousou a mão sobre a de Tomas, os velhos olhos brilhando, marejados. Cyprien relanceou um olhar para Stela, viu-a também comovida, respirou fundo. Com um tio tão querido e uma casa confortável, ainda mais tendo esposa e filho a quem devia prover, eram mínimas as chances de que seu parceiro quisesse voltar às estradas. Mas quem poderia culpá-lo?
-- De vez, não posso afirmar, Tio Hector – disse Tomas, porém seus olhos transbordavam de promessas. – Mas vamos passar o inverno aqui com você, nós três. Quer dizer, nós quatro. Espero que Cyprien...?
-- Claro! Eu já não disse? Seu amigo é bem-vindo. Há trabalho de sobra na oficina, se ele tiver jeito para isso. No Castelo, por ora, as coisas estão um pouco paradas, pois estão se preparando para as festas do solstício de inverno. A não ser... Bom, pelo que você contou, entendi que ele domina outras artes. E lá precisam muito de malabaristas que treinem os aprendizes mais novos.
-- Mesmo? Então eles têm sorte: eu trouxe o melhor! – exclamou Tomas, batendo nas costas de Cyprien. – Viu só? Eu disse que em Vrindavahn você seria bem recebido!
-- É verdade. – Voltou-se para o velho, disfarçando sua inquietação com um sorriso. – Obrigado, Mestre Hector.
-- Que é isso, rapaz. Um amigo de Tomas também é meu amigo. Além disso, somos todos artistas. Não se deixa um companheiro de ofício na mão, não é mesmo?
Cyprien assentiu, mas, pelo resto da noite, não conseguiria ficar inteiramente à vontade. A ideia de tratar mais uma vez com elfos, como pareciam ser as pessoas do Castelo das Águias, não lhe agradava nem um pouco, e ainda por cima aqueles eram praticantes de Magia. Poderiam lançar feitiços sobre ele e dominá-lo; ou, pior ainda, podiam amaldiçoá-lo, de forma que nada, nunca, desse certo em sua vida.
A não ser que fosse mais forte do que isso. E que fizesse seu próprio destino, como até agora.
E, enquanto os outros brindavam ao reencontro e a um futuro ensolarado, Cyprien de Pwilrie cerrou os lábios, decidido a não permitir que os magos do Castelo das Águias lhe causassem qualquer mal.
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