quarta-feira, 25 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 12)


-- Cyprien, por favor, não se precipite! – pediu Hector, olhos e tom de alarme. -- Deixe-me ir ao Castelo, falar com Theoddor, esclarecer a situação. Podemos ir amanhã, assim que o sol nascer. Eu sei que ele estará disposto a escutar!
-- E se as coisas não se resolverem você pode deixar a Escola e ainda assim ficar conosco até o final do inverno – Tomas ajuntou às palavras do tio. – Vamos fazer novos bonecos e cenários, criar novas histórias, e além de Vrindavahn podemos apresentá-los em duas ou três vilas aqui perto. Que tal isso?



-- Sim... E em cada uma vão me olhar de lado, e me acusar de ladrão na primeira oportunidade. – Cyprien se deteve, segurando a camisa que dobrava, e encarou o amigo. – Você conhece minha história, e não vou mentir: eu já roubei muitas coisas, desde uma fruta no mercado até a prataria de casas ricas, mas nunca tirei nada de alguém que tivesse me acolhido, me hospedado, feito alguma coisa por mim. Não toquei nos suprimentos daquele galpão. Quando precisei das tábuas, perguntei se podia pegar, então tiveram a ideia de preparar essa armadilha. E, apesar de terem me defendido, impedido que os artesãos me espancassem, os aprendizes não acreditaram no que eu disse. Tentaram usar Magia para ver se eu estava mentindo. Se nem eles confiam em mim, o que esperar dos outros?
Meteu a camisa na mochila, socando-a junto com o resto de suas roupas -- um pobre substituto para as caras que gostaria de esmurrar. Estavam na sala de Hector, aquecida por lenha de madeira; o jantar estava pronto, porém Stela o deixara na cozinha e viera, com o filho no colo, participar da discussão. Tinha, é claro, a mesma opinião do marido e do Tio Hector, mas por ela a tentativa de falar com Theoddor seria deixada de lado, e Cyprien começaria desde já a trabalhar na oficina. Ali não correria o risco de que voltassem a acusá-lo de roubo, e não havia magos nem aprendizes que tentassem enfeitiçá-lo.
-- Não é feitiço, meu amor – Tomas corrigiu com brandura. – Não é para dominar ou fazer mal à pessoa.
-- Não é para ler os pensamentos? Isso é dominar – replicou Stela. – Imagine se eu soubesse o que você está pensando, a todo momento; se você pensasse em outra mulher, se decidisse comer escondido aquele queijo que você adora, mas que não lhe faz bem... Acha que eu ia deixar por isso mesmo?
-- Nunca – suspirou Tomas. – Ia encher meus ouvidos, no mínimo.
-- Ou ia dar um jeito de você não encontrar a mulher, ou esconder o queijo. Stela tem razão: ler os pensamentos de alguém é dominá-lo – disse Cyprien, que continuava a guardar suas roupas. Teria que abrir mão de uma parte a fim de levar, da sua bagagem de artista, o indispensável para garantir seu sustento na viagem. E, sabendo que o tempo não lhe permitiria chegar ao País do Norte, contentou-se com a ideia de passar o inverno em sua casinha no Labirinto, o bairro destinado aos descendentes do Povo Alto após a Reconquista de Pwilrie, várias gerações atrás, como explicavam os contadores de histórias.
Com todos os problemas, e não eram poucos, que enfrentava por conta deles, Cyprien tinha muito orgulho dos seus antepassados. Vindos de um lugar misterioso – além das névoas do Mar Interior, diziam as lendas --, os primeiros a chegar eram sábios e capazes, amavam a música e a arte e estudavam as estrelas, mas também eram guerreiros que conquistaram várias cidades e as fizeram prosperar. Sinnlann, Faglan, Berlot, Pwilrie, principalmente Pwilrie, tornada capital do Povo Alto e redesenhada com ruas bem traçadas, jardins refrescados por fontes e a gloriosa Fortaleza sobre a colina. Com o tempo, a era dos guerreiros deu lugar à dos artesãos e comerciantes sagazes, que buscavam fortuna, mas faziam o possível para manter a paz – o que, no entanto, não bastou para afastar a inveja e a cobiça das cidades vizinhas. Lideradas por Altamir, a mais poderosa e única a ser governada por um rei, elas moveram guerra contra o Povo Alto, destruíram seus jardins e observatórios e os reduziram em grande parte à servidão.
Na capital, onde o poder foi devolvido aos antigos senhores – os Fundadores, como chamavam a si mesmos, embora muitos ocultassem o sangue mestiço --, os poucos membros sobreviventes do Povo Alto foram proibidos de possuir terras e de fazer parte das guildas de artes e ofícios, além de várias outras regras, parte das quais ainda vigorava. Com tantas portas fechadas, tiveram que se arranjar como foi possível, e logo ganharam fama de trapaceiros e ladrões, que os senhores ajudaram a espalhar sem se dar conta de que, fora dos muros de Pwilrie, ela se estendia cada vez mais a toda a população da cidade. Atualmente, bastava alguém dizer que vinha de lá para atrair olhares enviesados, e isso era ainda pior nas Terras Férteis do que no Leste ou no País do Norte, como Cyprien tivera ocasião para comprovar. Fora um erro, um estúpido erro pensar que poderia superar aquilo, passar por cima de uma desconfiança construída ao longo de séculos, ser aceito... Embora, é claro, em toda parte houvesse encontrado exceções.
-- No meio disso tudo, fica o meu agradecimento a vocês – disse ele, olhando demoradamente para cada um, e também para o pequeno Aryan; não voltaria a cantar para que ele dormisse, e já sentia saudade. – Aqui não deu certo para mim, mas gostei de conhecer o senhor, Mestre Hector, e de ver a família reunida. E, Tomas... Foi um prazer ser seu parceiro nestes quatro anos.
-- Mas ainda somos parceiros – disse o amigo, embora sua voz hesitasse a partir dali. – Se não vai mesmo passar o inverno em Vrindavahn, nós podemos... podemos nos reencontrar daqui a algumas luas, talvez meio ano. Ou eu posso escrever para você aos cuidados do Templo de Pwilrie e aí combinamos tudo. Ainda não sei se vou ficar aqui de vez.
-- Não há por que nos iludirmos. – Cyprien inclinou a cabeça. -- Nós dois sabemos muito bem que você vai ficar. E está mais do que certo: seu tio precisa de você aqui, e a vida vai ser mais tranquila para Stela e Aryan. E outros filhos, que com certeza vão vir. Mas isso não quer dizer que nunca mais nos veremos – prosseguiu, tentando soar otimista. – Vamos manter contato, de um jeito ou de outro, e um dia ainda vamos nos reencontrar. Só que agora, bem...
Fez uma pausa, respirando fundo, e ia voltar a falar quando uma súbita batida na porta o interrompeu. Stela o encarou com alarme, e Tomas ergueu as sobrancelhas, ao passo que o Tio Hector seguiu o que parecia ser seu protocolo nessas ocasiões.
-- Quem é? – perguntou, empunhando o atiçador da lareira.
-- Ele também se armou antes de saber que éramos nós, da primeira vez? – Cyprien sussurrou para Tomas, sem conseguir se conter.
-- Abra sem susto, meu amigo. Sou eu, Theoddor – disse a voz conhecida lá fora, e uma espécie de chilreio antecipou o que revelaria em seguida. – E aqui comigo estão certas pessoas... que têm uma longa história para contar.


***

Imagem: teatro de fantoches medieval. Manuscrito da Bodleian Library, ca. século XVI.

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