-- Como assim? – Theoddor encarou o homem, espantado. – Como assim, o sujeito de Pwilrie? O que o faz pensar que a culpa é dele?
-- Só pode ser! – afirmou Ruaridh, com veemência. – Antes de ele chegar, isso não acontecia. Claro, vez por outra alguém se esquecia de anotar uma peça de tecido, levava um martelo para casa por engano, mas não seguidamente, como agora. Várias coisas sumiram só neste último quarto de lua! E, se a gente não viu...
-- Calma, homem. Muita calma. – Theoddor ergueu as mãos. – Diga, em primeiro lugar, o que sumiu. Lona e pregos, foi isso? E alguém viu Cyprien mexer nessas coisas?
-- Na nossa frente, não – admitiu o construtor, aborrecido. – Ah, já o vimos pegar ferramentas, mas essas ele pôs de volta antes de ir embora. Eram para consertar o banco da carroça do Hector.
-- E a lona e os pregos, para que seriam? Se ele ensina malabarismo e ensaia uma peça de teatro?
-- Isso é aqui no Castelo. Em Vrindavahn, tem a oficina de bonecos – lembrou Ruaridh. – Talvez ele use essas coisas lá.
-- Coisas da Escola? Hector não permitiria – disse Theoddor, e coçou a barba; aquilo lhe parecia no mínimo estranho. – E me diga uma coisa: tem certeza de que Cyprien foi avisado sobre as regras? Alguém explicou a ele que deveria anotar, lá naquele calhamaço de vocês, a retirada de qualquer material de trabalho?
-- O velho Hector deve ter explicado. Foi ele que o trouxe para cá.
-- Mas Hector não tem vindo ao Castelo. Nem o sobrinho – disse Theoddor. – Talvez Cyprien tenha pegado alguma coisa no galpão e deixado de registrar, simplesmente por desconhecer essa prática. Isso se tiver mesmo sido ele que fez isso.
-- Se tiver? Só pode ter sido ele! – exclamou o artesão, bufando pelas narinas. – É a única pessoa nova por aqui, entrando e saindo do galpão feito um gato: mais de uma vez me virei e dei com ele lá dentro, sem ter escutado um ruído sequer. Além disso – baixou a voz, assumindo um ar cúmplice --, ele veio de Pwilrie, não foi? Aquela cidade é cheia de trapaceiros.
-- Agora você disse uma asneira! – Algo se eriçou dentro de Theoddor. – É tão absurdo como quando os elfos de família nobre fazem questão de casar entre si, achando que os outros valem menos e os humanos não valem nada. Ninguém é trapaceiro só por ter nascido em determinada cidade.
-- Mas eles são, os de Pwilrie. Todos dizem isso!
-- Eu sei, e estão errados. É injusto acusar alguém com base nessas crenças. Aliás, é injusto acusar sem provas quem quer que seja. Quanto às regras do galpão, pelo que vejo, ninguém falou delas a Cyprien.
-- Bom... É, a gente não fala muito com ele – admitiu o outro, reticente.
-- Então, devem fazer isso, ao menos para que fique informado. Mas, por favor, sem forçar, sem acusá-lo. Vai ver como tudo se resolve – disse Theoddor.
Ruaridh fez cara feia, mas teve que concordar. Logo havia se despedido e voltado ao trabalho. Theoddor suspirou e se voltou para Finn, que ouvira tudo em silêncio, de braços cruzados.
-- Década vai, década vem, e as coisas não mudam – desabafou. – Um rapaz talentoso, prestativo, simpático... Era de se esperar que tivesse feito camaradagem com os outros artistas. Mas todos desconfiam dele, simplesmente porque veio de Pwilrie.
-- Nós, não – disse o outro, mas logo um sorriso cúmplice encurvou seus lábios. – Bom, mas o fato é não somos como a maioria das pessoas, e a Escola é além de tudo um lugar de acolhida. Nem todos pensam assim, mas já é alguma coisa educarmos nossos aprendizes nesse sentido.
-- É verdade. E os aprendizes adoram Cyprien. Existe até uma espécie de disputa – riu Theoddor. – Começou com os pequenos, a quem ele ensina malabarismo, fazendo questão de tomar parte na peça. Cyprien sugeriu que aparecessem como os moradores da cidade do tal Guedésio, mas então foi a vez de os outros dizerem que não: que é preciso ter público para o espetáculo, e a vez dos menores de estar no palco chegaria quando passassem ao Segundo Círculo. Pediram que Thalia interferisse, e ela deu razão aos mais velhos; disse que as crianças fariam melhor em estudar os símbolos e aprender a tabela de equivalência. É o que estão fazendo, mas desde então os dois grupos andam meio estremecidos.
-- Mesmo? Não notei nada em meus aprendizes, só que estão entusiasmados com a peça, mas, agora que falou, já tinha percebido que os menores têm estado de cara emburrada. Até Camdell, sempre tão distraído, foi capaz de notar alguma coisa. Finn, você sabe se Linnet e Brenan estão com algum problema?, ele me perguntou. Disse que os viu cochichando pelos cantos, e que Linnet parece mais calada e mais concentrada. Ela que nunca para quieta, muito menos em silêncio.
-- Riverast terá trabalho com nossos pupilos dentro de uns anos – disse Theoddor, sem reprimir um sorriso: por mais justa que fosse a sua causa, e melhores as intenções, a fundação da Escola de Artes Mágicas representava de certa forma uma vingança.
Contra as regras excludentes, não as da Magia, mas aquelas que os mestres haviam criado no passado a fim de manter suas tradições seguras. Contra as próprias tradições, que tinham fechado tantas portas para Theoddor e outros como ele. Contra os julgamentos apressados. Felizmente, desta vez, ele chegara a tempo de evitar o pior... ou assim pensou durante os dois dias seguintes, nos quais não foi ao anfiteatro e não tornou a ver Ruaridh. Cyprien apareceu no refeitório para o almoço, um dia cercado pelas crianças, no outro acompanhado pelos que ensaiavam a peça, sempre parecendo muito alegre e seguro de si. Quem adivinharia o que estava por vir?
...
Imagem: Ferramentas medievais de carpintaria. Imagem livre, encontrada em sites educativos e Pinterest.
Parte 1
Parte 8
Parte 10
Nenhum comentário:
Postar um comentário