segunda-feira, 19 de março de 2012

Em Nome de Thonarr (Parte 4)

- Mas, mãe, por que não posso ir ao Castelo das Águias? Só para conhecer! Eu sempre quis ver como é lá dentro!

O tom agudo na voz de Padraig traía sua frustração. Moira não se voltou para responder. Perto do meio-dia, havia muito que fazer na cozinha da “Espada e o Lírio”, e ela já perdera tempo demais. Não tinha cabimento explicar as mesmas coisas pela segunda vez.

- Você ouviu o que eu disse à tal Mestre Sophia – foi sua única concessão à insistência do filho. – Não tenho nada contra eles em princípio. Mas o Castelo não é lugar para um menino como você. E o assunto está encerrado – acrescentou, como se adivinhasse que haveria uma réplica.
Padraig apertou os lábios para não retrucar. Em geral não tinha problemas para aceitar a autoridade de Moira – ela era experiente, sabia o que dizia, e além do mais era sua mãe – mas ele ouvira os argumentos dos magos do Castelo, e, cada um ao seu modo, todos pareciam convincentes. Não que acreditasse que possuía um grande Dom, como insistira o Mestre Kieran, mas, por outro lado, não lhe faria mal conhecer a Escola. Muitos garotos de sua idade viviam lá, inclusive humanos de sangue puro, confiados aos mestres por suas famílias. Alguns até apareciam no Templo com certa frequência, provando que o convívio com os magos não os afastara de Deus e dos Heróis. Por que, então, a mãe lhe proibira até uma visita? Essa era a coisa mais injusta que ela já fizera com ele.

- Já que está aí com essa carranca, faça algo de útil – Moira tampou a panela que estivera mexendo e, finalmente, olhou para o filho. – Leve as geleias para o Templo. Irmão Brenn voltou a me lembrar disso no Dia de Descanso, por isso não quero esperar pelo próximo.

Dizendo isso, ela apontou para um canto da cozinha, onde havia uma cesta cheia de potes lacrados com cera. Cada um continha uma boa quantidade das famosas geleias de Moira, de cereja-brava, amora e marmelos dos pomares de Vrindavahn, e até algumas exóticas, feitas com figos e damascos vendidos por mercadores do Leste. As frutas eram caras e dava trabalho fazer as geleias, mas Moira conseguia um bom lucro vendendo-as para os fregueses da estalagem. Só os Prestes ganhavam alguns potes de graça.

Padraig ergueu a cesta para o ombro e se endireitou com um resmungo. Não porque estivesse pesado: ele ainda estava aborrecido com a mãe. No entanto, uma parte da irritação se dissipou ao sair e dar com a rua cheia de sol, pessoas parecendo satisfeitas e a visão do templo, a apenas alguns passos de sua casa, pronto a acolhê-lo, como sempre fizera, quando se sentia triste ou em dúvida. Seria esse o caso de hoje? Com doze anos, e sendo um devoto de Thonarr, Padraig não demorou a decidir que sim.

E, assim que decidiu, soube quem poderia ajudá-lo.

A entrada do templo era franqueada a todos os devotos, assim como a nave principal e os altares nas laterais. Uma pequena porta dava acesso aos aposentos internos, e esta era guardada por um funcionário, a quem se devia informar a finalidade da visita. Padraig, no entanto, era uma das pessoas mais assíduas por ali, e as geleias podiam ser farejadas de longe, por isso o guardião apenas sorriu e lhe indicou o corredor que levava à residência dos Prestes.

- Guarde um pouco da de figo para mim, hem? – recomendou, com uma piscadela. Padraig prometeu que guardaria e seguiu caminho. Teria ido direto à despensa se algo não lhe houvesse chamado a atenção: passando junto a uma fileira de pilares, viu que estavam cercados por andaimes, e que uma feia rachadura aparecera na base do andar superior. Espero que não caia, pensou o menino, e por via das dúvidas passou ao largo.

As geleias foram recebidas com entusiasmo pelo despenseiro, Irmão Brenn, que Padraig encontrou conferindo uma lista de suprimentos na cozinha. Era um homem de meia-idade, muito magro – coisa rara de se ver, num cargo como o seu – e bastante simpático, o que deixou Padraig à vontade para perguntar pelo Superior da congregação.

- Preste Drusius? Voltou agora mesmo do Conselho e foi para a cela. Espere um pouco que ele deve passar por aqui. Provavelmente não comeu, e já limparam o refeitório... Ah, ah, olhe! Isso é que é um garoto de sorte! – concluiu, apontando para a porta, por onde o Preste Drusius acabava de entrar.

De estatura média e mais para magro, com a longa barba começando a encanecer, o Preste não era um homem imponente à primeira vista. Era, no entanto, um dos mais importantes de Vrindavahn: superior do Templo de Bragi, o maior da cidade, e líder do Conselho eleito pelos habitantes. Isso ocupava muito do seu tempo, mas mesmo assim ele era acessível, dispondo-se a ouvir – desde que as resumissem – as dúvidas e queixas dos fiéis e lhes dar conselhos. Gostava especialmente dos jovens, muitos dos quais tinham feito os primeiros estudos na pequena escola mantida pelo Templo. Padraig fora um deles até o ano anterior, e, desde aquela época, se habituara a recorrer ao Preste Drusius quando precisava de respostas.

Isso, é claro, nas raras vezes em que as preces a Thonarr não eram o bastante.

- Você parece inquieto, Padraig – notou o Preste, após terem tocado cumprimentos. – Aconteceu alguma coisa?

- Mais ou menos. Eu tenho... umas perguntas que queria fazer ao senhor. Posso?

- Claro que sim, filho. Sente-se aqui – disse o Preste, acomodando-se num banco de madeira diante da mesa. O espaço à sua frente fora desocupado por um dos ajudantes de cozinha, que acabara de voltar trazendo pão, queijo e uma travessa fumegante de guisado. Padraig se sentou ao lado do Preste, mas recusou o convite para comer, embora ainda faltasse mais de uma hora para o almoço na estalagem. Mesmo ressentido com ela, mil vezes a comida de sua mãe à do Irmão cozinheiro.

- Então o que houve? – perguntou, solícito, o Preste Drusius. – Não venha me dizer que, com essa idade, já está apaixonado... Não é isso, é?

- Não, Preste. – O sangue tingiu de leve as faces do menino. – É minha mãe. Quer dizer, é uma coisa que eu queria fazer, mas ela não permite e não entendo a razão, por isso... queria saber, o senhor acha que seria errado eu visitar o Castelo das Águias?

- Errado, visitar o Castelo? Mas por quê? – O Preste franziu a testa, exatamente como Padraig esperava que fizesse. – Eles têm uma Escola de Magia, os ensinamentos nem sempre se coadunam com a doutrina do Templo, mas todos que conheço de lá são boas pessoas. E o Castelo em si é belíssimo. Especialmente a parte antiga. É um pedaço da história de Vrindavahn desde a fundação.

- Então, se alguém me convidasse, o senhor acha que eu poderia ir, não é? – Padraig voltou ao assunto. – Que não haveria problema numa visita?

- Hum... não, sinceramente não vejo problema – disse o Preste, cofiando a barba. – Mas quem o convidou? Fez amizade com algum aprendiz?

- Não. Foram os mestres – respondeu o garoto.

Os olhos do Preste se estreitaram com incredulidade. Padraig, então, se pôs a contar a história desde o início, incluindo o episódio com o cão – que atraíra a atenção de Kieran – e terminando com a visita de Finn e Sophia, que, percebendo a relutância de sua mãe, tinham passado a insistir para que o menino apenas visitasse o Castelo das Águias. Fora uma boa mudança de tática, e além disso eles tinham sido gentis e respeitosos, mas em vão: Moira não cedera nem uma polegada.

- E, como o senhor disse que não tinha problema em ir lá, eu acho que ela está errada dessa vez – concluiu Padraig. – Acho que devia deixar eu fazer uma visita. Ainda mais porque eu sempre quis saber como é o Castelo por dentro.

- Ah, sim... Vale a pena. – O Preste parecia refletir. – Bem, meu filho, acho que entendo o que se passa com sua mãe. Ela tem receio, sabe? Receio do que os magos possam fazer ou dizer a você. E não deve culpá-la por isso: houve muitas situações em que a Magia foi usada para o Mal. Mas nestes anos em que estou no Conselho vim a conhecer muito bem o Mentor da Escola de Artes Mágicas, e sei que ele não agasalharia nenhuma serpente no peito, por isso... acho que sei o que fazer. – Ergueu a cabeça, olhando com ar satisfeito para o menino. – Eu tenho de ir ao Castelo, dentro de um ou dois dias, para tratar dos impostos devidos aos herdeiros do Senhor Theoddor. Acho que sua mãe não se oporá se pedir para você vir comigo.

- Sério? O senhor vai fazer isso mesmo? - Um calor, como a explosão de um sol, encheu o peito de Padraig. - Vai me levar ao Castelo das Águias e... deixar eu falar com os mestres?

- Vou, sim. Não estou dizendo? Mas, olhe, não crie tantas expectativas – sorriu o Preste, com benevolência. – Pelo que sei de você, creio que Moira tem razão, e não o Mestre Kieran. A Escola dos magos não é o seu lugar. No Templo, como um sacerdote, ou fora dele, como um trabalhador e futuro pai de família... você nasceu para servir a Deus, Padraig. E nada do que os magos lhe digam o afastará desse caminho.

Parte 5

segunda-feira, 5 de março de 2012

Em Nome de Thonarr (Parte 3)

- Vai, Kieran, conte de novo – pediu Finn, com um riso nos cantos dos lábios. – Quero lembrar com todos os detalhes de como você foi expulso da estalagem por uma mulher de caçarola em punho.

- Não fui expulso. Ela apenas se recusou a me ouvir – replicou o Mestre de Magia do Pensamento. – Disse que o filho não viria ao Castelo e, quando insisti, deu-me as costas e começou a cozinhar. Foi uma espécie de insulto, é verdade. Mas não foi como você está dizendo.

- Que pena! Teria sido mais divertido – concluiu Finn, piscando para Sophia. Estavam no jardim de ervas, um grande espaço cultivado por trás da Ala Verde, cercados por aprendizes que trabalhavam nos canteiros. Quase todos eram do Segundo Círculo, portanto já treinados no que faziam, mas poucos demonstravam entusiasmo: as Artes da Cura não tinham muitos adeptos no Castelo das Águias. Mesmo assim, os jovens cumpriam aplicadamente suas tarefas, julgando-se observados pelos mestres a pequena distância. Mal sabiam que a conversa há muito os levara para longe dali.

- Insulto ou não, o importante é que temos um rapaz com um Dom promissor – Sophia resumiu a questão. – E cuja mãe, ao que parece, tem medo de qualquer coisa que cheire a Magia.

- Isso apesar do Kieran e de seus incríveis talentos diplomáticos – disse Finn, mas em seguida passou a falar sério. – Esse receio é comum entre as pessoas do povo. Fora das Onze Cidades – e talvez até em algumas delas – nós somos respeitados, mas, infelizmente, continuamos a ser temidos. E isso é ainda pior entre os adeptos desse Deus único.

- O rapaz manifestou sua vontade através do nome de Thonarr – lembrou Kieran. – Tem fé no Herói e não em si próprio. Ele precisa de alguém que o oriente.

- Se quiser ser orientado – disse Finn.

- Mas ele quer - replicou o outro. – Eu vi o brilho nos olhos dele quando falei com a mãe, e como ficou desapontado quando ela não permitiu que me acompanhasse. Pode ser só curiosidade por enquanto, mas o garoto está disposto a saber mais. Pelas regras...

- ... É nosso dever oferecer aprendizado aos que buscam o Caminho – Sophia citou a regra que todos aprendiam ao alcançar a o Terceiro Círculo. – Não sei se é bem esse o caso, Kieran, mas concordo com o que você disse no início. Toda criança que demonstra o Dom inato deve ter a orientação de um mago, e, como os mais próximos, cabe a nós oferecê-la a esse menino. E vamos fazer isso, sem dúvida. Quanto à mãe dele, deixe comigo; não creio que seja tão difícil convencê-la. É só colocar as coisas do jeito certo.

Olhou de esguelha para Kieran, que resmungou alguma coisa por entre os dentes e não respondeu. Tinha consciência de sua brusquidão – direto e seco demais, autoritário algumas vezes – mas suas demandas quase sempre eram atendidas, e ele não sabia o que dera errado com a mãe de Padraig. Tinham sido seus modos ao entrar na cozinha e se dirigir sem rodeios a ela? Ou era o que representava – a Magia, que punha acima de tudo a força do pensamento e ignorava a fé dos Homens em seu Deus?

Fosse como fosse, ele não tivera sucesso, e, embora houvesse relutado em lhes contar a história, sentia-se aliviado com o apoio de Finn e Sophia. Pelos preceitos da Escola e pelos da própria Magia, um jovem nascido com o Dom devia ter uma chance de desenvolvê-lo, portanto eles iriam à estalagem – um casal de embaixadores sorridentes, bem mais hábeis que o antigo Mestre das Águias – e usariam seu poder de persuasão com a mãe de Padraig. Se tudo desse certo, o garoto ingressaria no Primeiro Círculo, um nível ainda muito básico dos estudos, mas nada impedia que um dos mestres de Magia o acompanhasse mais de perto. E como os modos do rapaz não indicassem um temperamento afeito à Magia da Forma, nem um futuro alquimista ou curandeiro, tudo indicava que esse mestre seria Kieran de Scyllix.

A não ser que estivessem diante de um caso raro, muito improvável em se tratando de um garoto sem mescla de sangue élfico.

E, se assim fosse, a vinda de Padraig para a Escola se tornava ainda mais importante.

Parte 4