terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Chá da Tarde com a Arquimaga (Parte 1)

Pessoas Queridas,

Aqui começa mais um dos nossos contos, que será dividido em três partes.

Trata-se de um episódio na vida do Kieran, quando ele, já iniciado no Terceiro Círculo (portanto um jovem mago e não mais aprendiz) tinha acabado de chegar à Escola de Magia de Riverast. E pelo jeito não estava conseguindo fazer muitos amigos.

É um conto bem simples, sem grandes reviravoltas. Espero que vocês gostem de lê-lo - e ficaria muito feliz se pudessem deixar um comentário.

   

   

Diante da porta fechada, ele parou.
Até então, não se detivera uma única vez, nem mesmo reduzira o passo ao longo de todo o percurso. Tinha prometido isso a si mesmo, muito tempo atrás: não só enfrentaria o que viesse pela frente, mas também não adiaria o confronto, nem procuraria maneiras de torná-lo suave, como se houvesse gentileza na guerra. Gentis, talvez, pudessem ser os diplomatas, mas não as pessoas como Kieran, que tinham combatido a vida toda, tinham nascido de punhos cerrados e morreriam de espada na mão. Era tudo que conhecia, e nem o aprendizado da Magia o fizera mudar, por isso ele não se encolhera ou se mostrara abalado ao receber a convocação da Arquimaga. Em vez disso, guardara a folha de papel de linho entre as páginas do seu grimório e continuara a escrever, sem ligar às elucubrações dos seus colegas de residência.
-- Quando o teste de confirmação é com a Arquimaga, dificilmente acaba em coisa boa – disse Ravnos, o meio-elfo melancólico que gostava de passear em cemitérios. – Ela já mandou iniciados do Quarto Círculo voltarem a práticas de aprendiz. Já tirou elfos do Principado da Luz e mandou para residências mistas – um deles não suportou ter que ajudar na limpeza da casa e voltou para o solar da família. E já recusou pedidos de admissão, mas... Bom, acredito que este não vá ser o caso.
-- Também acho que não. Kieran se saiu bem nos testes práticos. A não ser... que tenha quebrado alguma regra – aventou Jasini, para quem a menor nuvem no horizonte era prenúncio de tempestade. – Essas andanças solitárias pela cidade, pelas tavernas... Mesmo sem querer, ele pode ter feito alguma coisa interdita.
-- Ou ter desagradado aos mestres com esse jeito brusco. É o mais provável, em se tratando de Kieran – disse Isel, a outra elfa, de braços cruzados. – Tenho ouvido comentários, aqui e ali, e não são nada abonadores. E, o que é pior, se estendem a todos que vivem nesta casa.
-- Bom, a essa altura já deveríamos estar acostumados – contrapôs Axias, o morador mais antigo da Três Chaminés, que provocara vários desastres antes de aprender a controlar seus pensamentos.
-- Sim, mas nunca ouvi tantas insinuações como nesta última lua – replicou Isel. – Nunca tivemos entre nós uma pessoa com, digamos, um passado tão emocionante e um senso de humor tão peculiar. Vocês não acham?
Seus olhos se cravaram como presas nas costas de Kieran. Os outros o fitaram também, sem falar, mas era claro que a maioria concordava com a elfa. Não que fossem os estudantes mais exemplares da Escola de Magia de Riverast – a Casa das Três Chaminés era famosa por abrigar os excêntricos, os que não se encaixavam --, mas nunca tinham recebido alguém como Kieran, que viera da cidade dos guerreiros e pusera seus poderes a serviço do exército. Conheciam, é claro, quem houvesse lutado, pois muitos magos eram contratados para defender cidades e aldeias, mas quase sempre o que faziam era criar ilusões assustadoras para os inimigos e lançar encantos de proteção. Não tinham empunhado espadas em batalha, menos ainda comandado águias de garras mortíferas, o que parecia ter sido a principal ocupação de Kieran quando aprendiz. Não eram duros e sarcásticos como ele. E aqueles modos, que em apenas uma lua tinham-lhe granjeado antipatia e até inimizades entre os estudantes, podiam muito bem ter levado a Arquimaga a se decidir por sua exclusão.
Fosse como fosse, não tardariam a saber.
Na tarde seguinte, ele rumou para a ala noroeste da Escola a fim de atender à comvocação. Alguns mestres residiam ali, e o acesso aos seus aposentos era restrito, mas os estudantes podiam circular pelos jardins; era onde vários se sentavam para ler e conversar, aproveitando o fraco sol de inverno. Kieran reconheceu alguns deles, lembrou-se de dois ou três nomes, mas não fez ou recebeu qualquer cumprimento. Melhor assim, pensou, enquanto se aproximava de um portão de madeira, entalhado com peixes de corpos sinuosos, e apresentava a convocação ao funcionário que ali montava guarda.
-- Reunião com a Arquimaga, muito bem – murmurou o homem, fazendo tilintar as chaves que trazia presas no cinto. – Bata na última porta que vir, à esquerda, após a fonte de pedra. Se não abrir de primeira, insista. Ela costuma se distrair com os livros, mas teria mandado avisar se não pudesse vê-lo.
Abriu o portão e se afastou, deixando que o jovem mago avançasse pelo caminho calçado com pedras arredondadas. Ficava a céu aberto, num recorte entre duas paredes do edifício, e nestas havia portas de cada lado, bem espaçadas entre si. Também havia duas ou três árvores pequenas ao longo do caminho, além de arbustos que dariam flores tão logo chegasse a primavera. Era quase como uma vila, dentro do palácio élfico que sediava a Escola de Magia. E mesmo ele teve de reconhecer que era um lugar aprazível.
A fonte de pedra estava quase no final do caminho, diante de uma porta delicadamente entalhada com flores e folhas. Havia uma aldrava de bronze, e Kieran pousou a mão sobre ela enquanto tentava refazer os traços da Arquimaga em sua memória. Era uma elfa, claro – dificilmente meio-elfos passavam do Sétimo Círculo, e para humanos como ele isso era quase impossível --, e seu nome não era segredo, mas todos em Riverast se referiam a ela pelo título. Fazia tempo que não dava aulas, apenas uma conferência de quando em quando, e não costumava se dirigir aos estudantes, mas era voz corrente que se informava a respeito deles e discutia cada detalhe com Mestra Shiri, a encarregada das admissões. Certamente se mantinha a par das ações e atitudes de cada um no período de experiência, que variava entre uma e duas luas e no qual os candidatos passavam por vários testes. Depois, vinha a confirmação, geralmente por parte da própria Shiri, ou, no caso dos que pendiam para a Magia da Alma, de Nessios, um meio-elfo que perdera a visão em circunstâncias misteriosas e se deixava guiar por um gato branco. Raramente era algum dos outros Mestres, e quase nunca a Arquimaga em pessoa. Kieran se perguntou se ela teria a mesma opinião dos colegas a seu respeito -- se a convocação significaria de fato uma recusa --, depois deu de ombros e bateu duas vezes com a aldrava. Por que perder seu tempo imaginando o que seria, quando estava tão perto de comprová-lo?
A porta se abriu no instante seguinte à segunda batida. Abriu-se, como ele esperava, por um encanto ou palavra de poder; não havia ninguém atrás dela, nem a Arquimaga, nem um serviçal. O jovem esperou alguns momentos e, como ninguém aparecesse, empurrou a porta entreaberta, até um ponto em que supôs estar visível para quem se achasse do outro lado.
-- Pode entrar, Kieran. Seja bem-vindo – disse uma voz bem modulada. Soou quase familiar, assim como o rosto da elfa que ele encontrou sentada num banquinho, diante de um fogo alegre que crepitava na lareira.
-- Não sei se lembra de mim – disse ela, indo ao encontro do seu embaraço: elfos brilhantes se pareciam tanto entre si, ele talvez não a reconhecesse em meio a outras mulheres de orelhas alongadas e cabelos cor de prata. – Só deve ter me visto duas ou três vezes, se tanto. Mas imagino que saiba quem sou.
-- Sim, mestra. – Era o jeito certo de se dirigir a ela, assim como a qualquer mago que ministrasse cursos na Escola. -- Só não sei por que fui chamado até aqui.
-- Vai saber – replicou ela, sem se importar com sua franqueza. – Mas antes, Kieran, pode fazer um pouco de chá para nós? Tenho decisões a tomar, e o chá de tília é bom para essas ocasiões. Ainda mais em tardes de inverno.

Parte 2