quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O Primeiro Outono - Conclusão


Circulado pela tatuagem escura, o olho de Zendak brilhava como uma estrela. Effimon o encarava sem reservas, os lábios contraídos, como se alguma coisa no xamã o incomodasse. Maryan não soube o que dizer. A intuição, assim como a experiência, a fazia pensar em algum tipo de armadilha – as mais traiçoeiras, tecidas com palavras – mas, uma vez iniciada, não podia pedir que Zendak interrompesse a história. Por fim, ela se limitou a assentir com um gesto, deixando que ele retomasse o fio da narrativa.

Caçar, para os homens, significa rastrear e matar, às vezes por diversão. Para nós, é diferente. Antes de uma caçada, uma pessoa deve se preparar, reunir seu espírito ao Grande Espírito que é partilhado com todas as criaturas. Ela deve estar disposta a honrar o animal que vai dar sua vida para lhe matar a fome.

Numa jornada de caça, isso é ainda mais importante. Você não quer carne, simplesmente: você tem algum outro propósito em vista. No caso de Kyara, era preciso, em primeiro lugar, obter pele suficiente para fazer um agasalho, e para isso ela entrou na floresta e rastreou dois gamos. Um velho e um jovem. Cada um deles foi morto da maneira adequada - com preces, dignidade e o mínimo de sofrimento - e um pouco do seu sangue foi dado ao fogo, assim como Kyara tinha dado o seu antes de começar a jornada. E dessa forma os três espíritos ficaram em paz.


- Interessante – comentou Maryan, tentando disfarçar um calafrio. – Uma barganha com os espíritos dos animais que ela caçou.

- Não foi barganha. Foi uma oferta de paz, para manter o equilíbrio. Essa parte da jornada se encerrou ali, porque Kyara teve que levar os gamos para casa, tratar da carne e da pele antes que se estragassem. Isso seria desperdício e uma afronta às criaturas que ela havia matado.

A jornada continuou na lua seguinte. Agora não seria preciso matar, apenas reunir alguns presentes dados pela floresta. Em homenagem aos quatorze anos da filha, Kyara queria adornar o agasalho com alguma coisa que pertencesse às três Casas, por isso fez uma prece ao Espírito do Corvo a fim de que lhe enviasse algumas penas. Lembro-me bem de quando isso aconteceu, porque nesse dia senti meu sangue me chamar de muito longe, e soube que havia um dos nossos vivendo e caçando além da Floresta dos Teixos. Mas eu não sabia que se tratava de minha prima: isso os corvos me contaram muito tempo depois. Quando era tarde demais para ir até lá e ajudá-la.

- Na guerra? O que você poderia fazer?

- Não sei – admitiu Zendak, sério. – Mas pelo menos eu estaria lá.

- Ele é o xamã – intrometeu-se Effimon. – Uma espécie de mago. Não acha que um mago pode ser útil numa guerra?

Maryan encolheu os ombros, dando-se por vencida. Não era para discutir a guerra ou a Magia que estava ali e sim para ouvir a história. Zendak esperou alguns momentos, certificando-se de que a discussão fora encerrada antes de continuar.

O Corvo foi generoso com Kyara. Um dia de caminhada bastou para que encontrasse as penas que procurava, e na tarde seguinte ela chegou ao rio de onde retirou alguns seixos. Eles iriam representar a Casa da Lontra, pois não havia lontras de verdade na região. Já para o Lobo, Kyara retirou as garras que estavam na sua sacola de talismãs, o que em geral não se faz, mas essa era uma situação diferente. Era para sua filha. Tanto o Lobo quanto os membros da Casa não acharam que foi vergonhoso.

Então, quando Kyara voltou, todo o seu tempo livre foi usado para trabalhar no casaco. Ela tratou a pele, cortou e costurou com um fio feito do tendão do gamo. Desmanchou um velho agasalho seu para usar o forro, que era de pelo de marta. E adornou esse novo casaco, costurando nele as garras, as penas e os seixos que eram os símbolos das três Casas. Veja como ficou.


Pegou o agasalho das mãos de Anna, levantando-o para que Maryan visse os adornos dispostos em padrão simétrico. As garras estavam sobre o peito, as penas caprichosamente pendendo sobre elas, presas pelas hastes à gola de marta; os seixos, na verdade bem pequenos, vinham mais abaixo, onde o casaco devia tocar as coxas e os quadris de Anna. Nesse momento, Maryan já podia adivinhar o que Zendak ia dizer em seguida, e quase conseguiu impedi-lo de dizer, mas ele não lhe deu tempo: olhando-a no fundo dos olhos, pôs o casaco sobre seus joelhos enquanto voltava a falar.

Essas jornadas foram as últimas de Kyara antes da guerra. Anna mal havia chegado a usar este casaco quando Raymond foi convocado e morto, e a cabana onde ela e a mãe viviam foi invadida pouco tempo depois. Uma violência, sim. Mas também o início de uma vida. E toda vida é sagrada.

Seu rosto se contraiu por um instante, depois relaxou diante da visão de Anna brincando com as penas presas ao casaco. Maryan também a fitava, com olhos molhados que logo se voltariam cheios de surpresa para Zendak.

Não esperava que ele lhe pegasse a mão.

- Eu sei o que vocês pensam sobre se vestir com peles de animais – disse, muito sério. – E sei que não precisam disso em sua terra. Mas aqui é necessário, assim como no lugar onde Kyara morou com Raymond. Por isso, você vê, da morte surgiu a vida, e as duas fazem parte da mesma espiral.

Maryan apertou os lábios e baixou a cabeça. Não sabia o que dizer a Zendak – ela, que sempre tivera na ponta da língua as respostas para quem punha à prova suas escolhas. Pior ainda, as palavras dele tinham aberto uma brecha, pela primeira vez, nas convicções que ela construíra como um muro com os preceitos de Odravas. Da terra, junto aos filhos da terra. Talvez se vestir como eles fizesse parte disso.

Ou talvez fosse apenas uma parte de um teste maior. Quem saberia a resposta?

- É muita gentileza... Muita bondade de Kyara me oferecer algo que pertenceu a sua filha – murmurou, por fim. – Mas é a pele de animais que... que...

- Que honraram minha prima com um presente – completou o xamã. – Agora, ela quer honrar você em agradecimento ao que está fazendo por Anna, e ao mesmo tempo fazer com que a morte dos gamos não tenha sido em vão. Nem a minha história – concluiu, sorrindo enquanto aproximava o casaco do corpo da mestra de sagas.

Maryan tocou o couro com relutância. Para sua surpresa, era macio, não como um tecido, mas não havia nada da rigidez áspera que esperava. Sua mão deslizou como por instinto para dentro de uma manga, trazendo a imediata sensação de calor – um calor benvindo, por mais que lhe custasse admiti-lo. Dividida, ela olhou para Zendak, depois para Effimon, que ergueu os ombros, indecifrável em suas próprias vestes de couro. Então, quando menos esperava, a voz de Anna se fez ouvir, clara e precisa como um raio entre as nuvens.

- Os gamos não precisam mais do couro. Minha mãe também não. Mas você precisa, por isso minha avó e eu queremos que aceite.

No instante seguinte, as lágrimas que flutuavam nos olhos de Maryan lhe desceram pelas faces, e ela soube o que devia fazer. Com gestos lentos, deixando-se ajudar pela criança, desvencilhou-se da manta de lã e vestiu o novo agasalho, sentindo, a cada polegada, o espírito dos gamos adejando em torno de sua pele. Seria isso – dançar de alegria?

- Parabéns, Zendak – disse, lenta, a voz de Effi. – Em poucos momentos conseguiu o que venho tentando desde que ela chegou a Bryke.

Ergueu o rosto, e nele Maryan vislumbrou algo que nunca vira antes. Como sempre, Effimon tinha um ar determinado, mas o brilho em seus olhos perdera a qualidade leve, até brincalhona que a cativara desde o primeiro dia. Também não se voltava para ela e sim para o xamã, que Effi observava sem reservas, o olhar como uma adaga apontada para suas costas. Essa não, pensou Maryan, compreendendo na mesma hora o que acontecia – e sabendo, com a certeza dos que conhecem todas as sagas, o que estava por vir.

Definitivamente, aquele seria um longo inverno.

.....

Bom, Pessoas... este foi o fim do conto. Mas não o da história. Ainda haverá outras estações para Zendak, Maryan e Effimon, bem como para a jovem heroína do Castelo das Águias. Espero que continuem por aqui.

Até breve!


Imagem retirada daqui

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Primeiro Outono - parte 5



Enrodilhada em sua manta de lã, à espera do sol que a cada dia aparecia mais tarde, Maryan escrevia sobre os costumes da tribo. Ainda não sabia quase nada além do que ouvira em Bryke; esperava conhecer outras pessoas, quem sabe ir às casas delas para colher suas próprias impressões. A casa de Anna, talvez, e da avó que se mostrara ao mesmo tempo dura e generosa. Ou ainda a de Zendak, se ele voltasse a visitá-la. Por que não viera naqueles últimos dias?

Traçada a última letra – fora pouco, de fato, o que escrevera – ela ergueu a cabeça, fitando a trilha que começava a vinte passos da casa. Conduzia à floresta – da qual até agora vira apenas a orla – e às cabanas construídas pela tribo sobre e ao redor de árvores milenares. Corvo, Lobo e Lontra, cada Casa tinha um abrigo para rituais e reuniões, mas os jovens viviam em família até que se casassem. Quase todos o faziam, ao contrário dos Elfos Brilhantes, e sempre por amor.

E, por estranho que parecesse, tanto o amor quanto o casamento duravam a vida inteira.

Maryan se recostou à parede da casa, as mãos trançadas sob a nuca, recebendo em cheio e com prazer o afago do sol. Sim, apesar das dificuldades havia beleza neste lugar, uma tranquilidade que dificilmente conseguiria obter em Kalket. A vida na floresta criava pessoas bem diferentes daquelas que conhecera até então. O que faria, em algumas gerações, com a cultura que seu próprio povo trouxera das Terras Férteis? Em que medida eles se adaptariam ou até se misturariam à tribo? Mesmo ela, como Mestra de Sagas, achava difícil imaginar.

Um estalido, como o som de um graveto sendo quebrado, a despertou de suas reflexões. Anna vinha andando rápido pela trilha, com o sol nas costas, mas mesmo assim os olhos e o sorriso estavam cheios de luz.

- Oi, menininha! Já estava com saudades suas! – exclamou Maryan, abraçando-a ao mesmo tempo em que olhava para o adulto logo atrás dela. Era Zendak, saudando-a com um sorriso em que se lia um prenúncio de novidade.

- Trouxe uma coisa para você – anunciou, e se sentou a seu lado, sobre os calcanhares. Suas roupas eram finas, tanto quanto podem ser uma calça e uma camisa feitas de couro, mas tinha na mão um agasalho mais quente, forrado, com gola de pelos cinzentos. Ele o entregou a Anna, fazendo um sinal para que se sentasse ao lado de Maryan, e ergueu os olhos sombreados para a Mestra de Sagas.

- O que eu tenho é uma história – disse, com ar solene. – Nossas histórias são contadas de coração e dadas como presente. Você aceita?

- Uma história? Mas é claro! – replicou Maryan, na mesma hora. Muitas vezes, lendo sobre os povos da floresta, encontrara menções a essa prática: presentear uma narrativa, quer se tratasse de uma história pessoal ou uma da tribo, como se fosse um bem precioso. Quem a ouvia se tornava o depositário, e quase sempre se sentia no dever de retribuir com outra história ou algum tipo de favor. Do ponto de vista de Zendak, isso devia ser muito sério, mas Maryan não tinha medo de decepcioná-lo. Quanto a favores, sabia que o xamã tinha em alta conta o fato de ela estar ensinando as letras a Anna; e, no que tocava a histórias, conhecia todas que algum dia tinham feito parte de um livro.

- Fico honrada em ouvi-lo – disse, tentando soar mais ou menos formal. Zendak sorriu, passando a mão pelos cabelos que caíam como uma asa negra. Então, começou.

Há muitos anos, havia uma caçadora da Casa do Lobo, e seu nome era Kyara. Ainda era jovem, mas tinha trazido muita carne para a tribo; tinha cicatrizes no corpo e garras de urso no colar.

Num dia de inverno, Kyara seguiu os rastros de um gamo até bem longe do território da tribo. Quando viu, era tarde para voltar, então ela decidiu procurar uma gruta que servisse de abrigo. Encontrou, mas dentro dela já estava um homem – um dos primeiros que ela via e com quem falou. E o que Kyara nunca teria imaginado é que, antes daquela noite acabar, ia sentir seu coração bater, seu corpo ficar quente, seu espírito dançar de alegria, tudo por aquele homem que se chamava Raymond de Pwilrie.


- Meu avô! – exclamou Anna, radiante.

- Adorei essa imagem – disse Maryan a Zendak. – "O espírito dançando de alegria"... Isso é quando uma pessoa se apaixona?

- Não só. Os espíritos sempre dançam. Às vezes voam – garantiu o xamã. – Continue a ouvir.

Sem pensar duas vezes na tribo que deixava para trás, Kyara partiu com seu homem, e andaram muitos dias até chegar a um povoado distante. Ali, deram a Raymond um trabalho. Ele devia viver numa cabana dentro da floresta, ajudar os homens ricos que fossem caçar lá - e, ao mesmo tempo, impedir que outros fizessem o mesmo, ainda que suas famílias precisassem de carne.

Kyara não se conformou com essas regras. Então, como os lobos, começou a caçar de noite, e os homens ricos nunca descobriram. Isso durou muitos anos, antes e depois de ela ter uma filha a quem chamaram Anna, como a mãe de Raymond. Era uma criança muito doce. Parecida com esta outra Anna.


Sorriu para a menina, que corou de prazer e escondeu o rosto nas mãos. Preparava-se para continuar quando Effimon surgiu na trilha que conduzia aos currais, carregando um balde de leite, o braço livre aninhando contra o peito vários queijos de odor picante.

Zendak fez uma careta, levando a mão ao nariz num gesto exagerado. Effi apenas sorriu. Com sua pisada leve, aproximou-se até a distância de cinco passos, olhando ora para Maryan, ora para o xamã, que pelo jeito era tão seu conhecido quanto de Narhi e Pylos.

- Desculpem a intromissão. Vinha falar com Maryan, mas, de longe, percebi que contavam uma história – disse ele. – Posso ouvir também?

Em resposta, Zendak estendeu o braço, correndo o polegar pela manga do casaco de Effi. Era de couro de veado e bem surrado, provavelmente um dos agasalhos oferecidos pela tribo no primeiro inverno de Bryke. Talvez pelo próprio xamã.

- Você pode ouvir – decidiu este, após alguns momentos. – Mas tem de ficar em silêncio. E manter essa... coisa o mais longe possível.

- Prometido – disse Effimon, o rosto inescrutável. Pousando o balde no chão, ele se sentou ao lado de Maryan, deixando que o xamã prosseguisse com a narrativa.

Kyara dos Lobos amava sua filha. Lamentava criá-la num lugar tão perigoso, longe da tribo e à mercê dos homens ricos que, além de tudo, estavam sempre lutando uns contra os outros. Mas mesmo assim Anna era feliz. Seus pais nunca a deixaram passar frio nem fome. Com as caçadas noturnas havia sempre carne, e das peles Kyara fazia agasalhos, como aprendera na juventude.

O último casaco que ela fez para Anna foi o melhor de todos. Foi pela época em que nossos jovens são aceitos numa das três Casas, aos quatorze anos. Se Anna estivesse aqui, eu a teria ajudado na jornada em busca do seu espírito protetor, e então o gravaria em sua pele para que sempre a acompanhasse; mas, onde elas estavam, Kyara não tinha como saber qual das Casas acolheria sua filha. Então, fez ela mesma uma jornada de caça. E aqui começa a verdadeira história.


- Como assim? Pensei que tivesse começado lá atrás – disse Maryan.

- Não. Até agora foi uma explicação para que você entendesse – replicou o xamã, imperturbável. – A história que eu vim contar não foi a de Kyara e Raymond, ou mesmo a de Anna, e sim a dessa jornada: a última caçada de minha prima antes da guerra que mudou sua vida. É nela que reside aquilo que eu realmente quero partilhar com você.

.....

Quase no fim... Não deixe de ler a conclusão!