sábado, 31 de dezembro de 2016

domingo, 27 de novembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Epílogo


      -- Andi, você fez uma coisa fabulosa! – exclamei, parando de tocar e batendo palmas com entusiasmo; a audiência foi atrás, e os aplausos quebraram a catarse, de forma que o garoto se desgrudou dos amigos e me olhou com o rosto lavado de lágrimas. – Desde nossos primeiros encontros, quando quase era preciso obrigá-lo a falar, até esta noite, na qual contou uma história que mexeu desse jeito com todos... Como você mudou!
       -- Graças a você – disse ele, com a voz embargada. – E a meus amigos, e aos outros mestres, e à Escola de Artes Mágicas. E Mestre Kieran, o senhor estava certo – acrescentou, dirigindo-se a meu marido, que ostentava seu famoso sorriso torto. – Eu tinha mesmo que enfrentar esses demônios e dizer a eles que sou mais forte. E agora digo a vocês o que vou fazer: amanhã cedo vou escrever à minha família pedindo que venham me buscar, não para voltar a Kalket, mas para fazer uma visita a Hyldor em seu solar nas montanhas. Vou contar a ele o que aconteceu e encorajá-lo a cantar diante de um público. Posso até estar no palco ou na arena com ele, como Mestra Anna estava aqui comigo. E se ele não quiser, se não acreditar em si mesmo, não vou me sentir culpado nem deixar que isso atrapalhe mais a minha vida. Vou voltar a ser o Príncipe, e, quem sabe? Talvez um dia até o Rei das Canções.
      -- Muito bem, garoto! – exclamou Urien, e várias taças e vivas se ergueram na audiência. Era o momento de entrar mais uma vez em cena, mas Finn tomou a iniciativa, agradecendo pelas ótimas histórias que Andi e eu tínhamos contado juntos. Também pela presença de todos, uma vez que a noite ia avançada, e muitos já mostravam disposição de se recolher ou partir. Gurion, o intendente, entrou então em cena, oferecendo hospedagem para os visitantes que preferissem pernoitar no Castelo, e as pessoas estavam começando a se mexer quando, inesperadamente, Camdell bateu com uma colher numa taça de bronze, solicitando a atenção de todos.
      -- Caros amigos, queridos aprendizes, não posso deixar que se despeçam sem dizer algumas palavras, ainda mais depois do que presenciamos esta noite – disse ele, visivelmente emocionado. – Em nossa Escola, a Magia costuma despertar através da Arte, mas hoje vimos que o inverso também acontece: que a Magia trouxe de volta a voz e as canções que haviam se calado no coração de um menino. Não sei se Andi continuará conosco ou se voltará para a escola bárdica, mas uma coisa eu sei e digo com segurança: não apenas o seu propósito, mas o meu e o desta escola, foram reafirmados nesta Grande Noite de Sagas. Pela Magia e pela Arte!
      -- Pela Magia e pela Arte! – bradaram todos, erguendo as mãos e as taças; o estrondo de vozes que brindavam logo foi emendado pelas primeiras estrofes da Canção do Mago Violeta, uma espécie de hino da Escola de Artes Mágicas, e a noite terminou em meio a um coro de pessoas que cantavam abraçadas, tocadas pela emoção das histórias e, em alguns casos, pela boa cerveja e vinho que não tinham deixado de correr.
        Mais tarde, depois de eu ter abraçado cada um dos presentes e de ter ouvido todo tipo de comentário sobre os meus dotes como alaudista -- quase todos piedosos, felizmente –, Kieran e eu voltamos ao aconchego da nossa torre, onde acendemos a lareira e nos abraçamos também. Eu queria fazê-lo admitir que tinha articulado tudo aquilo com Urien – que eles tinham me feito de boba, como Theoddor fizera com Netta, décadas atrás --, mas sabia de antemão que Andi não podia fazer parte de uma trama como aquela, exceto talvez de forma involuntária, como no caso de Hyldor o Belo. Tanta emoção e tanta luta contra os próprios receios não podiam ter sido calculadas. Kieran, porém, continuou a afirmar que não houvera qualquer entendimento com o Mestre de Música para aquela noite; ele apenas lhe revelara saber que eu estava tendo aulas de alaúde, já fazia um bom tempo, e Urien dissera que eu estava indo bem e que gostaria de me ver tocar diante de alguém além dele mesmo.
      -- Não pensamos numa plateia tão grande, nem falamos sobre isso hoje, mas a situação de Andi veio a calhar. Foi importante você estar lá com ele – disse Kieran.
      -- Você também – repliquei. – Ele gostou da ideia de lutar contra os demônios interiores. E teve forças para isso, mesmo sendo tímido.
      -- Sim. Eu me surpreendi com a história dele. Já tinha percebido que o garoto tem uma vontade muito forte, mas o que ele fez em Kalket mostra que o Dom é bem mais poderoso do que pensava. Talvez eu devesse... Mas não. – Sacudiu a cabeça, afastando seus próprios desejos. – Se ele precisa falar com o tal Hyldor para ir em frente, que fale, e se precisa voltar para a escola bárdica, que volte. Esse é mesmo o caminho que deve seguir. Só não duvido de que a Magia vá alcançá-lo mais à frente, como aconteceu com Lara.
-- E comigo – falei; ele sorriu, supondo que eu estivesse brincando, mas o encarei tranquilamente e com olhos sérios. – O que Camdell disse no fim é uma verdade para mim também. Aqui reafirmo todos os dias o meu propósito, que é partilhar histórias, e vejo a Magia acontecer através delas. E hoje estou especialmente feliz, pois muita gente esteve aqui e vai levar consigo um pouco dessa Magia para suas vidas.
      -- É verdade – disse ele, com um suspiro. – E ouvir isso de você me faz supor que esta Noite de Sagas não será a última. Na verdade, me arrisco a dizer que teremos outra em breve. Estarei errado?
      -- Talvez na próxima lua – respondi, e franzi a testa. – Mas eu pensei que você tinha parado de ler meus pensamentos.
      -- E eu parei – Kieran garantiu, afastando uma mecha de cabelo que me caíra no rosto. O fogo tremulou, realçando o brilho em seus olhos, e eu fechei os meus enquanto ele me abraçava, devagar, seus lábios roçando minha orelha para sussurrar as palavras que não dissera a mais ninguém, em toda a sua vida.
      E elas terminaram de tecer o encanto que me envolvera e transformara durante aquela Noite de Sagas.

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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Draco no Prêmio Argos


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terça-feira, 22 de novembro de 2016

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terça-feira, 15 de novembro de 2016

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 7

       

          Muitas luas atrás, tendo finalmente compreendido qual a minha função no Castelo, eu conseguira que os aprendizes do Primeiro Círculo contassem suas próprias histórias. Algumas eram divertidas, outras um pouco tristes; várias, em princípio, pareciam corriqueiras, mas juntos havíamos conseguido encontrar o sentido e resgatar a Magia contida nas pequenas coisas.
         Isso também acontecera com Andi, embora ele houvesse preferido deixar de lado alguns episódios. Eu tinha certeza de que neles estavam as raízes de sua inibição. No entanto, a Noite de Sagas era um momento descontraído, um momento em que ele podia contar qualquer história, mesmo uma que houvesse escutado ou lido num livro, e o desafio se limitava a fazê-lo diante de todos. Era como eu, com o alaúde do qual tirava as primeiras notas, tentando não olhar diretamente para ninguém a não ser Urien e Kieran. Muitas pessoas estavam sorrindo, e várias continuariam a fazê-lo ainda que eu errasse ou hesitasse. Mas o que quer que estivesse nos olhos daqueles dois me falaria de carinho e orgulho verdadeiros.
         Fiz um sinal com a cabeça para Andi. Ele engoliu em seco mais uma vez, respirou fundo, depois assentiu também e se dirigiu ao público, a voz um pouco trêmula de nervosismo – como esperar que fosse diferente? –, mas alta e clara o bastante para que todos pudessem ouvi-lo bem.
         -- Em nome de Woden, Thonarr e Loki, e em nome de Bragi, o Trovador, abram bem seus olhos e ouvidos! Esta é a minha história – começou ele, e tornou a respirar profundamente. – E ela começa num dos momentos mais importantes: quando, no primeiro encontro com nossa nova Mestra de Sagas, ela nos disse que toda vida tem batalhas que precisamos travar e vencer.
Fez uma pausa, controlando a tensão, e então falou como se aquilo o desafogasse:
         -- E Mestre Kieran me fez ver que o maior inimigo está dentro de nós mesmos.
         Um breve murmúrio percorreu os convidados: ninguém imaginava que ele iria citar o Carrasco. O próprio Kieran tinha franzido as sobrancelhas e se inclinado para a frente, como se esperasse o que iria sair dali, ao passo que meus dedos tropeçaram em meio a um acorde. Mas Urien foi o único a dar mostras de haver percebido.
         -- Então, amigas e amigos, eu tenho um nome – o meio-humano prosseguiu, nervoso, mas sem gaguejar. – Andi ap Llyr, é claro, mas também Andi de Kalket, pois é minha cidade, de onde vim aos doze anos, abandonando um aprendizado que começou quando eu era pequeno demais para me lembrar. Era esse nome que eu esperava tornar famoso por meio da arte. E, de fato, quando tinha apenas dez anos de idade, eu era conhecido como o Príncipe das Canções ou o Herdeiro de Hyldor. Alguém terá ouvido falar dele?
         -- Hyldor, o Belo? – As sobrancelhas de Urien se ergueram. – Se é ele mesmo, trata-se... Bem, tratava-se... de um bardo muito famoso.
         -- É verdade. Todos o requisitavam, festas eram marcadas de acordo com o lugar onde ele estaria. Mas não sei o que é feito dele hoje – comentou Mestre Tomas, e os olhares retornaram a Andi: estava claro que ele sabia. – Ouvi dizer até que estava morto.
        -- Não – fez o menino, com um gesto enfático. – Não está morto. Mas suas canções se calaram, como... como...
         -- Como as suas não irão se calar! Continue, Andi! – exclamei, num impulso. Ele me olhou, aflito, mas se lembrou de respirar bem fundo e fechar os olhos, como eu havia lhe ensinado em caso de pânico. Estou com você, querido, pensei, e repeti os poucos acordes que sabia o mais suavemente possível. Acalme-se. Vai lhe fazer muito bem contar essa história.
         E aos poucos – bem aos poucos – a língua do jovem meio-humano começou a destravar. Para recobrar a segurança, ele usou outro dos truques que eu ensinara, voltando atrás na história e contando como tinha sido seu aprendizado com uma mestra de Kalket; como fora à procura de Hyldor, numa visita deste à cidade, e como o grande bardo não lhe dera atenção, até que, por um golpe do acaso, viu-se na contingência de contar com o menino para acompanhá-lo ao longo de uma noite de sagas. Foi Hyldor que deu a Andi os apelidos de Príncipe e Herdeiro das Canções, deixando claro, antes de mais nada, que o Rei era ele próprio e que o menino teria mais chances de se tornar grande ao seguir seus passos. Ele insistiu para se tornar uma espécie de mentor de Andi, embora vivesse noutra cidade, e os dois passaram a trocar correspondência e se encontraram várias vezes ao longo dos três anos seguintes. No entanto, vaidoso como era, Hyldor começou a reclamar da interferência da mestra que o garoto ainda tinha em Kalket, e a se zangar quando ele aceitava convites que considerava menores, e a dar conselhos que, analisados de perto, mostravam que pretendia manter Andi para sempre sob a sua sombra. E como acreditar que seja um bom mestre aquele que teme ser superado pelo aprendiz?
         -- Foi assim que chegamos a um impasse – disse Andi, com a respiração rápida, mas a voz firme. – E, por menos que eu quisesse, os argumentos de meus pais e minha mestra falaram mais alto, portanto eu disse a Hyldor que nosso vínculo estava desfeito. E ele pareceu ter aceitado. Mostrou-se um pouco sentido, mas de um jeito gracioso, de forma que eu não percebi o que existia por trás.
         A essa altura, eu estava tão envolvida com aquilo que mal sabia como continuava a tocar, mas de alguma forma meus dedos continuavam reproduzindo os mesmos acordes, e a generosidade do Grande Espírito me fez lembrar que era o momento de imprimir-lhes um ritmo mais marcado. Andi respirou algumas vezes, seguindo o mesmo compasso, e correu o olhar pela audiência, perguntando-se talvez o que estariam pensando da história. Ou o que pensariam dele, quando finalmente chegasse ao ponto que lhe causava tanta dor.
         -- Então, nosso vínculo se desfez, mas achei que continuássemos amigos. E eu ainda o admirava, como o grande bardo que era – disse Andi, ainda em voz alta, mas em tom reflexivo. – Quando voltou a Kalket, fui ver sua apresentação no Anfiteatro Máximo; ele tinha me escrito dizendo fazer questão de que eu estivesse num lugar de honra. E lá estava eu, com minha mestra, com mais dois alunos de música...
         -- Aí vem – resmungou Urien, balançando a cabeça.
        -- ... quando Hyldor o Belo anunciou uma canção composta para um dos presentes – prosseguiu o menino. – E começou a cantar, jamais dizendo meu nome, mas desde os primeiros versos deixando claro para todos que me conheciam. Era de mim que ele falava... E me chamava de ingrato e Príncipe dos Traidores.
         -- O quê? -- disparou Freydis, sem conseguir se conter. – Traidor, você? Porque não quis mais jogar o joguinho dele?
         -- Que idiota! – Orm cerrou os punhos.
         -- Deixem-no falar! – exclamei, vendo que Andi hesitava. -- Quero muito saber como terminou esse espetáculo no Máximo de Kalket!
         -- Bem, aí é que está – respondeu o menino. -- Não terminou como deveria, ou, pelo menos... não como Hyldor queria. E não foi nada do que todos esperavam. Porque ao ouvir aquilo, mesmo com minha mestra, meus amigos e muitos outros indignados, eu não consegui dizer nem fazer nada. Fiquei sem ação e sem palavras -- só que com muita, muita, muita, muita raiva! Tanta raiva que poderia explodir, e o anfiteatro junto comigo, do mesmo jeito que o Ruivo explodiu aquela chaleira!
         -- Foi acidente! – defendeu-se o rapaz, mas os risos foram breves. Ninguém queria perder o que vinha em seguida.
         -- Então, enquanto ouvia Hyldor cantar com aquela voz linda, tocar a harpa com mestria, mas ao mesmo tempo dizer coisas tão injustas, eu senti minha cabeça doer como nunca antes. – A voz de Andi se firmara, ao contrário das minhas mãos. – Doía e doía e eu tive que segurá-la, e quanto mais doía mais uma ideia tomava conta da minha mente: é que ninguém devia poder cantar uma canção tão mentirosa. Eu não sabia de onde essa ideia tinha saído, mas era o que eu sentia... Era o que eu queria, não sei como, que acontecesse. E de repente...
        -- O quê? – Um coro de vozes, um rumor de corpos se deslocando para a ponta dos bancos e se inclinando sobre as mesas.
         -- De repente, todos no anfiteatro estavam gritando de surpresa, e Hyldor estava segurando a garganta, apavorado – respondeu o menino, fazendo um grande gesto com as mãos. – Correram para socorrê-lo, achando que estivesse sufocado, mas ele respirava muito bem e até podia falar. Só quando tentava cantar a voz falhava. Foi o fim de sua apresentação. Claro que eu também fiquei assustado, e não consegui comer nem dormir direito durante muitos e muitos dias. Tinha certeza de que tinha sido eu... mas, ao mesmo tempo, não fazia ideia de como. E minha raiva passou, e agora eu só sentia pena e muita culpa por ter feito Hyldor ficar sem suas canções.
         -- Ele mereceu! – exclamou o Comandante Owen, dando um tapa na mesa.
         -- Ele é um bardo! – replicou Urien, parecendo afrontado. – Não poder mais cantar... Que destino!
         -- Sim! Ele não devia! Haveria outras maneiras – as vozes se cruzaram e se confundiram entre as mesas, até que Andi conseguisse se fazer ouvir.
         -- Mas depois ele pôde cantar de novo. Aquilo só durou por algum tempo – explicou, apaziguando a maior parte dos ânimos. – Ele ainda não tem coragem de cantar em público, mas conseguiu na presença dos físicos e magos que procurou para ajudá-lo. Mas antes de saber disso eu me senti tão mal que puni a mim mesmo, ainda que sem querer. Eu também não conseguia mais cantar diante de uma plateia. Nem cantar, nem contar histórias, nem mesmo tocar, embora continuasse praticando quando estava sozinho. E, sendo assim, fui obrigado a deixar a escola bárdica. E ninguém mais voltou a me chamar de Príncipe das Canções.
         Um novo murmúrio tomou conta da audiência, mas esse tinha um tom diferente: os lamentos não eram por Hyldor, mas sim pelo menino. Ele causara mal ao bardo, porém mais ainda a si mesmo, e nada disso tinha sido premeditado. Foi o que ele mesmo disse, ao prosseguir com sua história, após um breve intervalo de que precisou para se munir de coragem.
         -- Durante algum tempo, não contei nada a ninguém, mas todos sabem o que acontece quando se tem o Dom da Magia. De um jeito ou de outro ele vem à tona, e eu não conseguia mais usar a arte para expressá-lo. Coisas estranhas começaram a acontecer comigo, em minha casa, nos lugares onde eu estava, e finalmente alguém alertou os magos da cidade, que confirmaram o Dom. Um deles se ofereceu para ser meu mestre, mas outro, sabendo que eu tinha abandonado um aprendizado na música, sugeriu que procurasse a Escola de Artes Mágicas do Mentor Camdell. Talvez aqui eu me desenvolvesse de um jeito melhor, ele disse. Eu relutei, no começo, mas depois decidi tentar, e... o que é que eu posso dizer agora? – acrescentou, com as faces vermelhas, a voz novamente trêmula, mas não de timidez. -- Este lugar... e meus amigos, e Mestra Anna, que está aqui comigo, enfrentando o julgamento de todos... isso me devolveu o... o meu propósito...
         Sua voz diminuiu à medida que a emoção o dominava. Ele parou de falar e se inclinou para a frente, cobrindo o rosto com a mão. Foi quando Freydis correu para o tablado e o abraçou com força. Orm estava com eles no momento seguinte, um garoto maior e mais largo de ombros, abarcando os dois. Outras pessoas se levantaram, o murmúrio crescendo com palavras de elogio e encorajamento, mas a maioria ficou onde estava, esperando para ver onde aquilo iria chegar.
        E, antes que o clímax começasse a se tornar longo demais, segurei minha própria vontade de abraçá-los e de chorar e retomei o controle da história.

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Imagem retirada desta página.

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Quer ler a história de como Andi conheceu o bardo Hyldor? Em versos, ainda por cima? Clique aqui.

Parte 1

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Parte 6

Epílogo


domingo, 30 de outubro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 6


     -- Ah, então pelo menos para tocar ele sobe ao tablado, não? Bom, já é alguma coisa! – disse Urien, erguendo as sobrancelhas de um jeito cômico. – E é ótimo para mim. Se estou mesmo dispensado, posso beber à vontade. Esse vinho é excelente. Você não sabe o que está perdendo.
     -- Pois é, mas hábitos são hábitos. Ninguém da minha família bebe ou jamais bebeu vinho. É verdade que também não comem queijo, uma coisa que eu adoro. Mas queijo de cabra era o que mais me ofereciam em Bryke.
     Apertei os lábios, lembrando-me das várias coisas que existiam na vila Odravas, mas não no interior da floresta onde eu vivia com minha tribo. O intercâmbio crescera ao longo dos anos, mas algumas coisas continuavam a ser consideradas apenas “nossas” e outras pertencentes só a “eles”.   Isso criava alguns problemas, às vezes, para ambos os lados.
     E um deles resultara na história que finalmente eu me propusera a contar.
     -- Atenção, amigas e amigos! Nossa querida Anna atenderá a seus pedidos e nos brindará com outra narrativa! – exclamou Finn, e o aviso foi recebido com palmas e assovios. – Andi ap Llyr, aprendiz do Segundo Círculo, irá acompanhá-la ao alaúde, e... Conan, você também?
     -- Não, mestre. É que Orm veio dizer que Mestra Anna queria o tambor emprestado – explicou o mais velho dos meus ex-alunos, que se juntara a outros colegas para tocar nos intervalos das sagas.          Agradeci e peguei o tambor de couro e a baqueta, lembrando-me – e sorrindo por isso – da primeira vez que o usara para contar histórias da tribo em minhas aulas no Castelo. Jamais um Mestre de Sagas deve ter sido olhado com tanta estranheza.
     Andi pegou o alaúde e se juntou a mim no tablado. Não falou mais, apenas olhou nos meus olhos e assenti quando lhe disse que contava com ele. Sua garganta se moveu, mostrando que engolia em seco, e eu me dirigi em pensamento aos Guardiões da minha tribo, pedindo que ficassem do nosso lado.
     Se nada desse certo, que ao menos soubessem que eu fizera o melhor que possível.
     -- Hey-heya! Pelas presas do Lobo, as penas do Corvo e os bigodes da Lontra! – proferi, em alto e bom som; e então me detive por um instante, observando o espanto em vários olhares. – Um jeito diferente de começar uma saga, não é mesmo? Eu deveria evocar os Heróis, já que sou humana, ou me referir ao Fogo Primordial, se fosse contar uma história como os bardos élficos. Não é assim?
     -- Acho que é. Sim. É o que se espera – disseram vozes desencontradas em meio à audiência. Quase todas vinham de pessoas que me conheciam pouco, mas três ou quatro aprendizes e até Mestre Tomas entraram no jogo, embora com expressões diferentes, sorrindo com o canto da boca e piscando para mostrar que sabiam do que eu estava falando. Pisquei também, em reconhecimento, e prossegui, fixando-me ora em um, ora em outro olhar repleto de assombro.
      -- Pois abram bem os olhos e os ouvidos. – Era o sinal para que Andi começasse a tocar, bem discretamente, criando uma atmosfera de segredo e de aconchego. -- A história que vou contar é a de alguém que estudou durante anos para ser uma Mestra de Sagas, mas cujo aprendizado decorreu de forma diferente do comum, dentro dos princípios do sábio Odravas. Alguém sabe dizer qual seu preceito fundamental?
     -- Da terra – começou Rydel, mas estacou quando desferi um sonoro golpe no tambor. Sorri, fazendo um sinal para encorajá-lo, mas um dos aprendizes já prosseguia:
     -- Junto à terra... – Nova batida do tambor.
     -- E com os filhos da terra! – concluiu um pequeno coro, igualmente brindado com uma batida.
     -- Exato. Era o que dizia Odravas. E seus seguidores criaram muitas vilas, como a de Bryke, junto a florestas onde viviam tribos como a minha. Os resultados foram muito diferentes de lugar para lugar, mas de quase todas saíram pessoas como eu: com sangue das tribos, porém educados por elfos brilhantes. E para não ferir os princípios de Odravas, a educação e o aprendizado sempre respeitavam ao máximo as tradições da tribo hospedeira. Imaginam como era?
    -- Devia ser divertido! – exclamou o aprendiz conhecido como Ruivo.
    -- Eu iria adorar – disse Freydis.
    -- Um pouco confuso, não? – perguntou, timidamente, o mais moço dos Prestes que viera do templo de Bragi. Era a resposta que eu esperava para imprimir entusiasmo à minha voz.
    -- Sim! – exclamei, batendo duas vezes no tambor e erguendo a baqueta, para que todos me encarassem como se eu fosse uma louca. -- Era confuso, e divertido, e um desafio constante. Todos os livros que tínhamos para ler falavam de coisas que nunca tínhamos visto, e as que víamos tinham sempre mais importância. Só aprendíamos a ler os mapas do céu dos elfos brilhantes depois de provar que sabíamos nos orientar na floresta; só aprendíamos a história de Athelgard depois de conhecer a da tribo, dos nossos antepassados. E o jeito da tribo de contar histórias é diferente do jeito como se conta nas Terras Férteis. Então, embora minha mestra tocasse bem a harpa e o alaúde, ela não fez questão de que eu aprendesse desde o início. Para quê? Eu era da tribo! Eu podia muito bem usar...
     -- O TAMBOR! – gritaram várias vozes, assombradas e divertidas. Assenti, e então comecei a percutir ritmadamente o tambor, os acordes de Andi se ajustando em uma harmonia perfeita. Éramos um duo, mas não estávamos cantando, e sim contando uma história da qual a próxima parte ainda era minha. Mas só a próxima parte.
     -- Eu me concentrei em contar e escrever histórias – continuei, ante a fascinação da audiência. -- Registrei todas que conhecia da tribo e escrevi um livro que foi enviado a vários Mestres de Sagas. Um deles chegou às mãos do Mentor Camdell, e começou a correspondência que, ao fim de poucos anos, acabaria por me trazer ao Castelo das Águias. Mas o que aconteceu? Esse convite nos pegou de surpresa! Maryan ainda ia começar a me ensinar um instrumento, pois só depois de alguns anos eu deveria passar pelos testes da escola bárdica! Então o que fazer? Alguém tem ideia?
     -- Você aprendeu? – perguntou Amina, completamente arrebatada pela história e o som.
     -- Não aprendeu! Ela sempre tem um harpista ou alguém tocando alaúde ao fundo – disse um dos mestres da Ala Violeta.
     -- É mesmo? Mas então ela não poderia... – começou o jovem Preste, logo silenciado por vários olhares zangados. Inclusive do seu superior, Preste Drusius. No entanto, mais uma vez ele me dera a deixa que eu esperava, por isso sorri e o encarei, detendo as batidas no tambor e elevando minha voz acima da plateia.
     -- O que eu não poderia, Preste? Fale sem medo!
     -- Eu... Eu não quis...
     -- Você está sem graça – disse Urien, sorrindo lentamente. – Mas seu engano é comum. A escola bárdica forma Mestres de Música, como eu, que têm de dominar pelo menos dois instrumentos; e Mestres de Sagas, como Anna, que devem ter de cor um repertório de histórias. A maioria deles toca harpa ou alaúde, para fazer o acompanhamento, e eu brincava com Anna dizendo que ela devia aprender, mas isso não é uma exigência da escola no caso dela. Estou falando a verdade – acrescentou, erguendo a taça. – Olhem, tem vinho aqui, ainda não estou completamente bêbado.
     -- Que bom! – exclamei, entre as gargalhadas do público. -- Assim vai se lembrar de como lhe agradeci... e do quanto nunca poderei agradecer o bastante por sua ajuda, por seu tempo, até por sua implicância, que me fizeram finalmente começar a aprender. Você também, Kieran – acrescentei, olhando para meu marido. – Eu queria que fosse uma surpresa, mas pelo jeito você sempre soube que eu estava tendo aulas de alaúde com Urien. Os calos nos meus dedos me traíram, não foi mesmo? E você não disse nada, só me apoiou... do jeito que faz sempre, me desafiando a ir além do que é fácil e confortável para mim.
      Respirei fundo, olhando dentro dos olhos dele, e soltei:
     -- E é o que vou fazer agora, trocando de lugar com meu aprendiz, para que ele termine a minha história e conte a sua.
     A garganta de Andi se moveu mais duas vezes, e seus olhos me fitaram cheios de receio, mas mesmo assim ele deu uns passos duros à frente e me entregou o alaúde. Empunhei-o, meus dedos correndo sobre a madeira, e sorri para o menino, mas minha expressão estava séria: eu não queria pressioná-lo, mas ele aceitara a proposta, e agora tinha de fazer o que prometera. Ia contar uma história, possivelmente a mesma que ensaiara diante de Freydis e Orm; podia ser que se engasgasse um pouco, mas os meus dedos também estariam atrapalhados nas cordas do alaúde, de forma a fazê-lo sentir que não estava sozinho. Era o jeito que eu tinha encontrado de fazê-lo quebrar sua barreira.
      E, ao tocar os primeiros acordes, não fazia ideia de como aquilo iria acabar.

*****

Talvez a maneira de contar histórias acompanhada apenas de tambor pareça estranha a quem pensa (acertadamente) em skalds nórdicos e bardos celtas quando falamos das sagas do Castelo. Mas o que a tribo da Anna faz é algo como isto aqui. Eu, pelo menos, acho legal.

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5

Parte 7

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 5


       Os fornos já estavam apagados, mas o aposento guardava o calor e o cheiro bom da comida. Ao me aproximar, ouvi o som de vozes animadas, várias delas falando ao mesmo tempo, mas – por estranho que fosse – não parecendo dizer alguma coisa. Era uma linguagem sem sentido, embora melodiosa, e só entendi do que se tratava ao entrar na cozinha e ver quatro pessoas se derretendo diante de um bebê.
      -- Olhe quem chegou, querido! A Mestra Anna! – exclamou Netta, que segurava a criança nos braços. – Ainda não conhece o pequeno Nils, não é? Ele teve que aprender a se sentar para vir ao Castelo, visitar a avó e o avô!
      -- Não conhecia, não, mas o imaginava bem assim, pelo que você e Nils contavam dele. – Sorri, passando um dedo pela bochecha do menino; ele devolveu o sorriso, arrancando de todos um ooooh cheio de ternura.
      -- Ele gostou da senhora, Mestra – disse timidamente a mulher de Holger.
      -- Todas as crianças gostam – declarou Netta, fazendo-me sorrir outra vez. – Precisava ver aqueles três, quando vieram nos chamar para a Noite de Sagas. Disseram que essa tinha que ser a melhor festa de aniversário de todas.
      -- Está sendo – assegurei.
      -- Desculpe não termos ido para lá, Aisleen e eu – disse Netta, referindo-se à nora. – É muita gente, muito barulho, e Nils não está acostumado, precisa de sossego. Quer dizer, o pequeno Nils – acrescentou, olhando para o marido. – Aquele ali, o grande, é um farrista. Quanto mais comida e bebida, mais ele gosta.
       -- E a culpa é sua. Quem mandou me dar aquela poção? – perguntou o cocheiro, rindo com gosto.
       -- Poção? - indaguei, quase sentindo minhas orelhas empinarem. – Isso tem a ver com aquela história do outro dia?
       -- Que história? Não sei de nada – disse Netta, fazendo-se desentendida. Eu ia lembrar o que ela me contara, mas me contive a tempo. Não sabia até que ponto eles queriam falar sobre aquilo. Para minha surpresa, porém, Holger ficou animado, querendo que sua mulher também se inteirasse do episódio.
       -- Acho que nunca lhe contei, Aisleen – disse ele. – Meu pai, antes de ser forte assim, era magro e vivia com dor de barriga. Ele comia muito pouco, e minha mãe achava que quanto mais comesse mais lhe faria bem, principalmente se fosse a comida caprichada que ela faz. Só que ele recusava, por medo de a barriga doer mais ainda...
       -- Você não imagina a agonia que era aquilo! – afirmou Nils.
       -- ... e minha mãe ficava cada vez mais danada. Até que pôs na cabeça que ele não gostava dela, que recusava de propósito a comida, pois assim ela iria desistir e se afastar.
       -- Como assim? Nada disso! Eu era discreta, não dava a entender que estava interessada – protestou Netta, meio rindo.
       -- Pois é! Eu achava que ela só queria ser gentil. – O cocheiro piscou, pousou a mão sobre a da mulher, que afagava lentamente as costas do pequeno Nils. – E é verdade que ela achava que a boa comida iria me curar. Mas eu morria de medo de comer qualquer coisa mais temperada, e em vez de explicar isso a ela só dizia que não, que não queria, que me satisfaria com umas frutas e um pouco de caldo. E assim foi durante uma, duas, três luas...
       -- Ela oferecendo e você recusando? – perguntei, divertida. – E logo Netta, que se ofende quando a gente não repete pelo menos duas vezes?
       -- Isso mesmo, até que ela ficou magoada – disse Nils. – Parou de oferecer comida e nem falava mais comigo. Fiquei surpreso, e também triste, porque a essa altura já tinha começado a gostar dela, mas não sabia o que fazer. E não sei se teríamos ficado nisso se não fosse – adivinhe quem? Nosso patrão, Mestre Theoddor.
       -- Sério? Ele fez vocês se entenderem? – Ergui as sobrancelhas, com surpresa. – Como aconteceu?
       -- Ah, Nils, não conte! Fui uma grande boba nas mãos dele – disse Netta, com as faces vermelhas.
       -- Mas essa é a melhor parte! Veja, Aileen, naquele tempo a Escola de Artes Mágicas ainda não tinha sido fundada – explicou Holger. – O Castelo das Águias era propriedade de Mestre Theoddor, que tinha estudado Ciências da Terra e um pouco de Artes da Cura. Mas todos sabiam que ele era amigo de vários magos, que estavam sempre trocando cartas, ideias...
       -- Às vezes algum deles se hospedava aqui – lembrou Netta. – Havia um quando isso aconteceu. Um elfo, não me lembro do nome. Até achei que Mestre Theoddor tinha falado com ele.
       -- Sobre o quê? Você e Nils?
       -- Sim, mas principalmente sobre o problema de saúde do meu pai – Holger respondeu. -- Mestre Theoddor notou que minha mãe andava triste, e ela contou a história; disse que estava tentando ajudar meu pai, mas ele não se importava nem com ela, nem com o que ela cozinhava com tanto carinho. Vai daí, Mestre Theoddor fez com que ela acreditasse que meu pai precisava tomar uma poção. Uma poção do amor, que ia fazê-lo ver o quanto ela gostava dele...
       -- Nem gostava tanto assim – disse Netta. -- Era só uma quedinha!
       -- ... e a partir daí ele passaria também a apreciar sua comida – completou Holger, com uma risada. – Era tudo que ela queria que meu pai fizesse.
       -- E como ela conseguiu que ele tomasse a poção? – indagou Aisleen, com olhos de assombro. – Ele sabia o que era?
       -- Na verdade, sim – disse Holger. – Mestre Theoddor não perguntou diretamente a meu pai, mas percebeu que ele estava gostando da minha mãe e andava aflito com o que pensava ser a indiferença dela. Então, ele recomendou a minha mãe que disfarçasse; que não dissesse a meu pai que era uma poção, e sim o que de fato era, ou seja, um remédio dado pelo patrão para ajudar com o problema dele. De forma que, mesmo sem saber da trama, ele sabia o que estava tomando, enquanto minha mãe acreditou piamente que fosse uma poção do amor; e quando meu pai melhorou da barriga e começou a comer o que ela oferecia...
       -- Ela achou que a poção tinha funcionado! – exclamei, rindo. – É uma história genial!
       -- Não deveria ter contado. Eu me sinto uma grande tonta – Netta resmungou, mas não parecia ofendida de verdade. – Mestre Theoddor sempre gostou de pregar peças, mas essa foi a maior de todas. E durou uns bons anos! Holger já era crescido quando ele nos contou o que tinha feito!
       -- Mas, no fim, isso acabou sendo bom para nós, não é, minha mulher? Ou pelo menos para mim – riu Nils. -- Faz quase trinta anos que você atura este velho fanfarrão!
       -- E aposto que tem muito mais para contar – falei. – Não vou descansar enquanto não ouvir todas as histórias!
       -- Mas agora seria melhor ouvir as que estão contando na festa, não é, Anna? – disse Kieran, entrando de repente na cozinha. Sua chegada provocou certo impacto, especialmente em Holger e Aileen – não estavam acostumados com ele, e sua fama de Carrasco o precedia --, mas a tensão foi quebrada pelo bebê, que lançou um olhar como que fascinado para meu marido e riu estendendo as mãozinhas.
       -- Ora, vejam, ele gostou do senhor! – exclamou Netta, uma das poucas pessoas no Castelo a não fazer cerimônia com Kieran. – Também riu assim para Mestra Anna. Sinal de que serão bons pais, quando se resolverem... sabiam?
       -- Espero que com meu filho eu seja bom. Com os aprendizes, esses mais novos, quase nunca acerto – resmungou ele. – Amina mal tinha voltado para a mesa quando aqueles três voltaram a cochichar, e fui saber o que era. Freydis e o neto do Comandante até falaram comigo normalmente, mas o outro parecia estar com medo de que eu o mordesse. Com muito custo consegui entender que estava se recusando a contar uma história.
       -- Muita gente acha que você morde. Mas é isso mesmo. – Suspirei, voltando-me para a família de Netta. – Preciso retornar ao salão, mas foi muito bom ver vocês e conhecer o pequeno Nils. E obrigada pela história da poção. Vocês se sairiam bem, narrando todos juntos, se fossem uma família de saltimbancos.
       -- Imagine! Eu só saberia guiar a carroça! – riu Nils, com as bochechas rubras. Fiz um carinho nos cabelos do bebê e deixei a cozinha, com Kieran logo atrás, a mão em meu ombro me impedindo de ir tão rápido quanto gostaria.
       -- Vai insistir com o menino? – ele perguntou.
       -- Com Andi? Não sei. Queria que ele superasse isso, afinal não tem medo quando se trata da harpa ou do alaúde, mas não posso forçá-lo.
       -- É verdade. Ele não tem medo de tocar, assim como você não tem medo de contar histórias – disse Kieran.
O tom foi casual, mas nele havia uma nota dissonante, e eu me detive para olhar bem dentro daqueles olhos estreitos.
      -- O que você quer dizer com isso? – perguntei, incisiva. – Onde está querendo chegar?
      -- Pense um pouco. Vai descobrir – disse ele, no mesmo tom.
Seus dedos roçaram de leve as pontas dos dedos da minha mão esquerda. Na mesma hora, lembrei-me de como ele também fizera isso, três dias antes, ao falarmos pela primeira vez sobre a Noite de Sagas – e então a compreensão iluminou minha mente como um relâmpago.
Ele sabia...!
     -- Tudo bem, eu também tenho receios – falei, puxando a mão que ele segurava e cruzando os braços. – Ainda mais porque sei que não estou pronta.
      -- Urien acha que está – disse Kieran, sem tirar os olhos dos meus.
      -- Ah, então você falou com Urien? – rebati, zangada. – É uma conspiração?
      -- Não, só estou constatando um fato. Urien diz sobre você o mesmo que você diz sobre o menino, e o menino parece sentir o mesmo que você a esse respeito. É curioso, nada mais.
      Fitei-o, pensando numa boa resposta, mas no final achei melhor não dizer nada e segui em frente. Os sons da festa nos alcançaram após alguns passos, culminando numa salva de aplausos dirigidos a Arnak, o Conselheiro meio-humano. Ele deixava o tablado quando Kieran e eu entramos no salão.
      -- Acredita que a história dele não teve mais que umas vinte frases? Foi divertida, mas nem deu gosto – disse Urien, vindo ao nosso encontro com uma harpa sob o braço. – Anna, ninguém se ofereceu para contar a próxima, e muita gente está pedindo que você nos brinde mais uma vez. Pode fazer isso?
      -- Sim, é claro – respondi, mas minha atenção se voltava para a mesa onde estavam as crianças. Orm e Freydis se sentavam cada qual de um lado de Andi e lhe falavam em voz baixa, tentando animá-lo e – provavelmente – convencê-lo a ocupar o tablado; o meio-humano estava cabisbaixo, mas, em meio ao silêncio, notei que olhava de soslaio para Kieran. Seria medo? Ou só aquela espécie de temor respeitoso que a maior parte dos aprendizes sentia por ele no Segundo Círculo?
      -- Espere um pouco, Urien – pedi, e caminhei até a mesa deles. Freydis se calou à minha aproximação, e em seguida foi a vez de Orm, mas eu sentia que a tensão ali era quase palpável.
    -- Ei, Andi. Kieran veio falar com você? – perguntei, tentando aliviar os ânimos. – Espero que não tenha pressionado muito.
     -- Mestre Kieran foi um amor – afirmou Freydis, de cenho franzido. – Ele disse que Andi devia tentar, que ele não era o único a ter medo, que todo mundo em algum momento passa por isso. E nós estamos dizendo o mesmo, só que ainda assim ele não se convence.
      -- Eu me convenci. Quer dizer, eu sei que vocês têm razão – disse o meio-humano. – Mas tem alguma coisa que me impede.
      -- Medo de errar – afirmou Orm.
      -- Medo de todos rirem de você – contrapôs Freydis. – Mas, Andi, isto é uma festa para a Mestra Anna. As pessoas de fora do Castelo são amigas dela. Você vai se sair bem, e, mesmo que erre um pouco, ninguém vai levar a mal. Somos todos aprendizes, não é?
       -- Isso! – exclamei; e então me senti estremecer. Aquelas palavras tinham acendido uma nova luz, tinham-se somado àquilo que eu ouvira pouco antes de Kieran e me aberto os olhos. Eu era uma mestra, sim, ou pelo menos tinha conhecimento bastante para ensinar às crianças do Castelo das Águias. Mas, em outras coisas, também era uma aprendiz. E com receios semelhantes aos de Andi, embora talvez por outras razões.
       E, se minha intuição estivesse certa, acabara de pensar em algo que poderia ajudar a nós dois.

Imagem: ilustração medieval alemã representando Tristão e Isolda

Parte 1

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Parte 6

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 4


       -- Então, quando pensávamos que seríamos vendidos como escravos ou remaríamos o barco do pirata pelo resto da vida – e que, com o tratamento que nos dariam, nossas vidas seriam bem curtas --, uma coruja branca, enorme, pousou perto de nós na praia. E adivinhem no que ela se transformou, bem diante de nossos olhos! Uma elfa, amigos! Sim! Vocês estão certos em se espantar, pois nós também mal podíamos acreditar naquilo, mas é a verdade, e se não confiam neste velho perguntem a Mestre Thorold! Ele estava junto!
      -- É a mais pura verdade! – afirmou o Conselheiro, arrancando ainda mais exclamações da audiência. Joot lançou a todos um olhar triunfante, depois continuou a narrativa, tendo ao fundo os acordes discretos do alaúde tocado por um aprendiz do Castelo. Não precisava de muita mestria, nem sequer de grandes variações; a música servia apenas para realçar os momentos mais emocionantes da história. E que história! Que narrador! Eu precisava trazer Joot mais vezes ao Castelo para contar aquelas sagas das Terras Geladas!
      -- Ele é bom, hem? – soprou Urien, ao meu lado. – Melhor ainda que o careca, com toda a sua experiência.
      -- Ah, mas Mestre Tomas contou uma história engraçada dos seus tempos de saltimbanco. Não há como comparar com uma de piratas e naufrágios – ponderei. – Ele também foi ótimo. E ajudou muito, aceitando o convite para falar logo depois de nós e de Freydis.
      -- É mesmo. O tagarela do Arnak já disse que quer contar uma história, e olhe os filhos do Naheen persuadindo a mãe a fazer o mesmo. Sua Noite de Sagas é um sucesso – declarou o Mestre de Música, após o que fez uma pausa, olhando-me com atenção. – Mas acho que você está inquieta com alguma coisa.
      -- Não estou inquieta, só... pensando em como resolver um impasse – respondi, e me voltei para as pessoas no salão. Depois de duas horas, durante as quais fora servido um excelente jantar, todos pareciam relaxados e à vontade. Muitos haviam mudado de lugar e iniciado conversas animadas, que, no entanto, cessavam quase completamente durante as histórias. Até as crianças paravam para ouvir, voltando a brincar e a explorar nos intervalos, quando os adultos retomavam a conversa e os empregados passavam servindo mais bebida. Comida não era mais necessária: estavam todos satisfeitos, as últimas bandejas de doces e frutas quase intocadas nas mesas. Isso queria dizer que a cozinha fizera um bom trabalho, Netta podia se desobrigar... Mas por que ela não tinha vindo até o salão?
       Meus olhos se detiveram sobre uma das mesas mais afastadas. Ali estavam o marido dela, Nils, e o filho de ambos, Holger, alto como o pai e com a mesma tendência a ficar com o rosto vermelho. Netta me contara que ele tinha sido um adolescente rebelde, mas isso mudou com a chegada de Camdell, que na primeira conversa percebeu o pendor de Holger para os estudos e o encaminhou a um mestre em Vrindavahn. Três anos depois, ele entrou como aprendiz para o comércio, e agora trabalhava numa das maiores casas mercantis na cidade. Os pais o visitavam com frequência, mas ele raramente vinha ao Castelo, e nunca havíamos trocado mais que algumas palavras. Era uma surpresa vê-lo ali, na minha comemoração de aniversário. Ou talvez ele tivesse vindo apenas por gostar de ouvir histórias. De qualquer forma, se alguém sabia de Netta, essas pessoas eram ele e Nils, por isso decidi falar com eles e pedir que fossem chamá-la. Só precisava esperar que Joot concluísse sua narrativa.
        As notas do alaúde soaram mais agudas, como se alarmadas, quando o pescador descreveu o conflito entre Thorold e os tripulantes do seu barco. As pessoas se inclinaram para a frente, bebendo cada palavra, e foi quando percebi um leve rumor de conversa na mesa mais próxima à nossa.
        -- Você tem que parar com isso. – A voz abafada de Freydis, dirigindo-se a um Andi silencioso e acabrunhado. – Vamos treinar nossa vontade como magos, aprender a mexer com as forças da natureza e até com a mente das pessoas, e você não consegue contar uma história? Como vai avançar nos estudos desse jeito?
       -- É mesmo, Andi – disse Orm. – Ainda por cima, hoje é uma noite de festa, não uma competição. Ninguém vai exigir que você seja perfeito.
      -- Silêncio! – Thalia se voltou para eles com o cenho franzido e o dedo sobre os lábios. Os três se encolheram, ressabiados, e senti que devia ir até eles antes de mais nada.
       Meus aprendizes precisavam de mim.
       Joot arrematou sua história com uma frase de efeito e se inclinou para os aplausos. Finn esperou alguns instantes para deixar que ele os saboreasse e anunciou um novo intervalo, que um grupo de alunos mais velhos se encarregou de preencher com música. Várias pessoas se levantaram, e eu me aproximei da mesa onde estavam as crianças.
       -- Discutindo de novo? – perguntei, em tom brincalhão. – E pelo motivo de sempre?
       -- Mestra Anna, Andi é impossível! – declarou Freydis, abanando a cabeça. – Hoje, mais cedo, ele havia prometido que contaria uma história. Até treinou depois do almoço, e eu achei muito bom. Mas agora...
       Encolheu os ombros, olhando para o amigo como se esperasse uma explicação. Andi também se encolheu, sustentando aquele silêncio cada vez mais incômodo. Por fim, murmurou:
        -- É que não fico à vontade com tanta gente. Minha língua tropeça. Se aqui estivesse só o pessoal do Castelo, ou se as histórias de Mestre Tomas e Joot não fossem tão boas, eu... talvez...
        -- Deixe de bobagem! Você vai se sair tão bem quanto eles – Orm insistiu.
        -- Eu também acho, Andi. Acho que podia tentar quebrar essa barreira. Mas não vou forçar – acrescentei, fazendo os outros dois fecharem a boca. – Espere a próxima história, que deve ser a da mãe de Hakim... Perceba que cada narrador tem seu próprio jeito, que nada tem que ser executado à perfeição... E logo mais me diga – concluí, olhando para o lugar onde tinham estado Nils e seu filho. Eu não os vira sair, nem sabia onde tinham ido, embora fizesse uma boa ideia.
        E assim que as crianças assentiram, uma canção se iniciando para indicar que tinha algum tempo até a narrativa de Amina, rumei com passos apressados em direção à cozinha.

Continua...

Quer saber que história foi essa contada pelo Joot? Clique aqui.

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 5

quarta-feira, 28 de setembro de 2016


Pessoas Queridas,

Interrompemos nossa série para avisar que saiu uma entrevista muito legal com a Anny Lucard sobre meu trabalho literário, planos para o futuro, organização de coletâneas... Enfim, o que faço e pretendo ainda fazer no âmbito da Literatura Fantástica.

Para quem quiser, o link está aqui.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 3




      -- Nervosa? – perguntou Urien, com o jeito malicioso de sempre, mas querendo demonstrar que me apoiava. – Não fique. Todo mundo vai adorar a noite de hoje.
      -- Tomara. Já era para mais gente haver chegado – respondi, tamborilando com os dedos na mesa. – Quer dizer, os aprendizes, quase todos, estão aqui, mas eu queria que os outros também viessem. Pelo menos parte deles.
      -- Os outros, em grande parte, são artesãos e empregados do Castelo e estavam ocupados até meia hora atrás. Não vão se apresentar no salão com roupas de trabalho. Dê tempo a eles para se lavarem e vestirem alguma coisa melhor – disse o professor de Música.
      Assenti, pois suas palavras faziam sentido, e percorri mais uma vez o salão com os olhos. Estava decorado à moda do inverno, com pinhas e guirlandas de folhas, além de estandartes que representavam o brasão de armas de Vrindavahn, o da família de Theoddor e as sete cores da Escola de Artes Mágicas. A disposição das mesas fora mudada de forma que todos os olhares pudessem convergir para um espaço no centro, e ali havia um tablado de madeira trazido dos galpões da Ala Violeta. Era onde as histórias seriam contadas naquela noite. E, se tudo corresse bem, seria ocupado por várias pessoas além de mim.
      -- Duvido que muita gente tenha coragem de narrar alguma coisa. – Às vezes o mestre de Música também parecia ler meus pensamentos. – Você precisa ter em mente que os empregados do Castelo são pessoas humildes. Ficam envergonhados diante de nós. E os aprendizes, de quem talvez você consiga bons resultados nas aulas, podem não ser tão desembaraçados na frente de outros mestres e de colegas mais adiantados. Quem talvez se anime é gente como aquele velhote ali – ergueu a voz --, que está entrando em cena, com seu cabelo ruivo puxado por cima da careca... Veja só!
     -- O que é melhor, ser meio careca ou ter uma barba de bode como a sua? – Tomas, o mestre de fantoches da Ala Violeta, devolveu o insulto bem-humorado e avançou em meio às risadas dos aprendizes. – E ainda me chama de velhote, como se fosse um jovenzinho!
      -- Pois você vai ver que o barba de bode tem mais fôlego que todos esses moleques juntos! – riu Urien, enquanto apertavam as mãos. Por minha vez, abracei Flora, nora de Tomas e uma de minhas melhores amigas em Vrindavahn, e seu marido, Aryan, um rapaz arruivado, de temperamento tranquilo. Estava feliz por eles terem vindo, e fiquei mais ainda quando vi outros artistas da Ala Violeta entrando no salão e se dirigindo a Freydis, que estava junto à entrada servindo de mestra de cerimônias.
      -- Por aqui, podem se acomodar. Não há lugares marcados – disse ela, mas, como era de se esperar, eles se sentaram todos juntos numa mesa ainda vazia. Ida, a postos, ofereceu-lhes pão e cerveja aquecida, fazendo-me pensar que talvez fosse preciso dar um pulo à cozinha para trazer Netta e Lori. Não agora, é claro, pois o jantar seria servido antes de começarem as sagas, e eu tinha certeza de que Netta não deixaria o comando sem ter a certeza de que tudo estava correndo bem. Mas, depois disso, alguma coisa me levava a fazer questão de que ela estivesse ali conosco.
      -- Mãezinha! – A voz de Freydis, evocando o modo de falar do Oeste, me despertou daquela cisma. Seus pais, Thorold e Tatyana, acabavam de entrar no salão, um homenzarrão de barba loura de mãos dadas com uma mulher baixinha. Atrás deles vinham os imprescindíveis Bran e Joot. E quem era o segundo grupo, pelo menos dez pessoas lideradas pelo que parecia um anão encapuzado?
      -- Salve, salve! – O capuz foi retirado, deixando ver não um anão, mas o rosto sorridente e cheio de rugas de Mestre Angus, o comerciante que partilhara nossa aventura na Ilha dos Ossos. – Então este é o famoso Castelo das Águias! Pensei que minha vida chegaria ao fim sem ter estado aqui!
      -- Todos os cidadãos de Vrindavahn podem visitar o Castelo, esse é um acordo firmado entre a Escola de Artes Mágicas e o Conselho – disse Arnak, atrás dele. – Mas uma noite como esta não acontece sempre, não é mesmo, Anna? Obrigado pelo convite!
      -- Não há de quê – respondi, um pouco aturdida. Não fazia ideia de quem havia convidado o Conselheiro e sua família, inclusive as duas filhas pequenas, que olhavam maravilhadas para as paredes do salão. Dentro de alguns instantes começariam a explorá-lo. E não estariam sozinhas, pois alguns artesãos e – finalmente – quatro ou cinco empregados do Castelo estavam chegando acompanhados das famílias, ao passo que Naheen, nosso mestre de Ciências do Céu, apareceu todo encapotado, vindo da cidade onde fora buscar a esposa, os filhos e dois sobrinhos.
      -- Anna, minha querida, muito obrigada por nos convidar. Não fizemos nossa reunião habitual na noite do crescente, porque choveu muito, o jardim ficou encharcado e desconfortável. Mas esta é uma ótima oportunidade para estarmos juntos – disse Amina, mulher de Naheen, de rosto suave e cabelos sempre envoltos por um lenço de seda. Suas filhas adultas e um dos sobrinhos, que era casado com a mais velha, se sentaram com a família de Tomas, enquanto Hakim, o filho mais novo, se misturava aos aprendizes junto com o outro primo. Dali também era capaz de sair alguma história, acompanhada ao fundo por alaúde ou até cantada em tom dolente como era comum no Leste de Athelgard.
      -- Bom, se você estava com medo de as pessoas não virem, acho que já pode relaxar – disse Urien, enquanto mais e mais lugares eram ocupados. – Eu não sabia que tinha convidado toda essa gente de fora, mas...
      -- Não convidei! Foi coisa dos meninos. – Balancei a cabeça, cada vez mais incrédula ao presenciar a entrada do Preste Drusius, líder do Conselho de Vrindavahn, e mais três religiosos do templo de Bragi. – E isso deve ter sido coisa do Padraig. Ah, não falei? A mãe dele veio junto!
      -- Isso quer dizer que ela fechou sua estalagem por uma noite. E A Espada e o Lírio não fecha nunca! – declarou Urien. -- Viu só o prestígio que você tem?
       A essa altura, eu só podia concordar, porque havia mais gente no salão do que eu tinha previsto. Algumas pessoas seriam de se esperar, pois eram ligadas aos mestres – a família de Naheen, a esposa de Algias, o namorado de Rydel, que tinha uma oficina de marchetaria no bairro élfico --, mas eu não fazia ideia do porquê de terem chamado certas outras. O que os Prestes, por exemplo, estavam fazendo ali? E o Conselheiro Arnak, e Mestre Angus?
      -- Os Prestes não fomos nós que chamamos. É que Freydis comentou sobre a noite de hoje com o Padraig e contou que ia convidar os pais. Com isso, ele decidiu chamar também a mãe dele, e ela achou que era uma espécie de festa oficial do Castelo, com as pessoas importantes – explicou Orm, que acabara de acomodar numa mesa não apenas o avô, Comandante Owen, mas também a avó, os pais e dois primos. – E, para ela, as pessoas mais importantes do mundo são os Prestes.
      -- Pelo menos só chamaram os Conselheiros simpáticos. Não queria olhar para a cara azeda daquele Colum – resmungou Urien, e em seguida revirou os olhos. – E, por falar em azedume, prepare-se! Aí vem seu marido, com aquele belo sorriso que Deus lhe deu.
      -- Mas ele está sorrindo mesmo – disse eu, perguntando-me até que ponto isso também era estranho. Kieran já havia se posicionado a favor da noite de sagas, mas eu achava que não iria gostar de ver o salão tão cheio e imerso em balbúrdia. Aquilo era prenúncio de resmungos e cara fechada. Em vez disso, no entanto, ele estava andando entre as mesas, cumprimentando os Conselheiros e outras pessoas da cidade. Parou até para falar com alguns aprendizes antes de vir para a mesa onde estava a maior parte dos mestres do Castelo.
      -- Estamos lotados – disse, sentando-se à minha direita e se servindo da cerveja que Ida trouxera em uma jarra. – Se isso aqui fosse uma taverna, ficaríamos ricos.
      -- Mas o que foi que aconteceu? Por que tanta gente de Vrindavahn? – sussurrei, para que só os mais próximos ouvissem. -- Isso era para ser entre nós, com uns poucos convidados de fora. Foi o que eu disse a Camdell, quando lhe falei sobre os meus planos.
      -- Não se preocupe comigo, Anna – sorriu o Mentor. Ele chegara pouco antes dos Prestes e se sentara duas cadeiras à minha esquerda, entre Lara e Thalia, que ostentavam o mesmo ar tranquilo. Franzi a testa, sentindo uma espécie de desconfiança em relação a tudo aquilo, e foi quando Finn deu três pancadas fortes em sua taça.
      -- Caros amigos e aprendizes, peço sua atenção! – A voz se sobrepôs ao soar do bronze. – É com prazer que os recebemos aqui no Castelo das Águias. A ideia do encontro foi da Mestra Anna de Bryke, a qual, como muitos já sabem, fará vinte e um anos dentro de um quarto de lua. Ela não mencionou esse fato ao sugerir uma noite de sagas, mas nós pensamos: que melhor maneira de comemorar esse aniversário?
      -- Ah, então era isso? – exclamei, sentindo minhas faces esquentarem. Urien, à minha esquerda, soltou uma risadinha, mas Kieran se limitou a afagar minha mão, com uma expressão que não deixava dúvidas sobre ele estar a par daquela trama. As pessoas no salão também me olhavam com ar cúmplice, e eu não tive o que fazer a não ser agradecer a todos. Ainda meio envergonhada, mas feliz. E envaidecida, embora de um jeito bom. O que mais poderia sentir diante de tanto carinho?
      -- Então, amigos, vamos abrir esta noite com um brinde a Anna de Bryke. – Finn ergueu a taça, e os convidados o imitaram. – Estamos felizes por ela estar conosco, por ter retornado sã e salva de tantas aventuras temerárias...
      -- Foi uma só – murmurei, mas ele não ouviu.
      -- ... e por trazer tantas histórias, tanta alegria, tanta vida ao nosso Castelo. Um viva a Anna de Bryke, e que comece o jantar!
      -- VIVA! – exclamaram todos, e o coro desembocou em risadas alegres. Sob o comando de Ida, as jarras e travessas começaram a circular, e assim teve início o que ficaria conhecido como a Grande Noite das Sagas.
      E muito haveria de acontecer antes que terminasse.

Continua...

Parte 1

Parte 2

Parte 4

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 2


     -- Deixe eu ver se entendi, Mestra Anna – disse Andi, com a testa franzida. -- É para todo mundo no Castelo? Todos mesmo?
     -- Todo mundo – confirmei. – Mestres e aprendizes da Escola, os artistas e artesãos que vêm trabalhar na Ala Violeta e os empregados, residentes ou não. É para toda a nossa comunidade, como se fôssemos...
     -- Uma tribo – completou Freydis, olhando-me com ar cúmplice.
     Assenti, feliz por ter alguém que me entendia sem lançar mão de algum encanto de Magia do Pensamento. Os aprendizes mais velhos faziam isso às vezes, comigo, com os mestres de Ciências do Céu e da Terra e todas as demais pessoas da Escola que não possuíssem o Dom. Não era por mal, apenas uma forma de praticar o que sabiam e testar a si mesmos. Ainda assim, eu tinha dito a eles que não gostava daquilo, e Kieran transformou minha queixa numa proibição, de forma que, agora, era muito raro alguém se arriscar a ler a mente da Mestra de Sagas.
     Freydis não tinha como estar nesse caso. Ela mal chegara ao Segundo Círculo do aprendizado e nem sequer nascera com o Dom, embora Finn e Kieran tivessem poucas dúvidas de que iria desenvolvê-lo. Sua percepção a meu respeito vinha da observação e da empatia, pois tínhamos muito em comum, apesar das diferenças de posição e de idade. E, apesar de ter dois grandes amigos com quem contar em todas as ocasiões, havia alguns segredos que ela preferia partilhar apenas comigo.
     Os meninos eram diferentes, embora também adoráveis, cada um a seu modo. Orm era corajoso e um pouco bravateiro, assim como Freydis, porém mais prático e tranquilo do que ela. Já Andi, o meio-humano, era talentoso e criativo, mas tinha um temperamento hesitante e costumava imaginar que tudo acabaria em catástrofe. Os mestres do Primeiro Círculo tinham um cuidado especial ao falar com ele, para não intimidá-lo, e eu tinha pedido o mesmo a Kieran. Ele prometeu que teria cuidado, ao mesmo tempo afirmando que o menino não ficaria muito mais tempo no Castelo das Águias. Com tanta imaginação, tanto jeito para a música e a poesia, era provável que logo regressasse a Kalket, sua terra natal, e entrasse para uma das escolas bárdicas – de onde, aliás, Andi jamais dissera por que tinha saído.
     Se eu pudesse fazê-lo contar essa história, seria uma vitória para nós dois.
    -- Vai ser uma noite especial, mas preciso de ajuda, tanto para convidar as pessoas quanto para convencê-las a participar do jeito que estou pensando – disse eu para os três, mas principalmente para Andi. – Claro que vou contar histórias, Urien também, e vamos ter muita música feita por ele e os aprendizes, mas em dado momento quero ouvir algumas contadas pelos convidados. Vocês poderiam começar, pois estão acostumados a fazer isso nos nossos encontros.
     -- Claro! Vou contar a história da Menina Foca – prometeu Freydis, mas em seguida franziu a testa. – Ou uma diferente seria melhor?
     -- Podia contar alguma história das Terras Geladas, da família do seu pai. A de sua avó, com o unicórnio da neve, seria perfeita – disse Orm.
     -- Hum, eu sei como é essa história, mas não me lembro dos detalhes. Vou perguntar ao paizinho. Aliás – Freydis voltou para mim seus olhos escuros, cheios de expectativa --, sei que é para as pessoas do Castelo, mas será que eu poderia chamar meus pais, e talvez o tio Joot? Eles adoram ouvir histórias. Podem até se animar a contar as deles, como você quer.
     -- Se eles puderem vir, quero chamar minha família também. Pelo menos meu avô – disse Orm.
     -- Hum... Bom, está certo. O Comandante Owen pode vir, e seus pais também, Freydis – disse eu, sabendo que isso significava que eles trariam os agregados: Joot, o velho pescador das Terras Geladas, e Bran, um jovem piloto que se tornara uma espécie de filho adotivo. –- Mas vamos evitar trazer mais gente de fora, pelo menos desta primeira vez. Se tudo der certo e, claro, se o Mentor concordar, poderemos ter de vez em quando uma Noite de Sagas com mais convidados. Mas, por agora, bastam os que são ligados ao Castelo.
     -- Certo! Pode contar com a gente – disse Freydis, animada. – Eu vou falar com os outros aprendizes. Orm pode falar com os empregados, todos gostam muito dele, principalmente o pessoal da cozinha. E Andi, com os mestres e ajudantes da Ala Violeta.
     -- Sim, senhora, minha Comandante! – exclamou Orm, o que lhe valeu um belo soco no ombro.
     -- E quero ouvir uma história sua, Andi. Você é um dos meus melhores aprendizes – falei, prestando atenção à reação do menino. – Gostaria que incentivasse os demais.
     -- Ah... Eu, bom... Olhe, eu posso tocar – disse ele, com as faces levemente vermelhas. – Posso acompanhar qualquer pessoa que conte histórias. Mas na frente de tanta gente eu... Eu não sei se vou ter coragem.
     -- Bom, eu acho que você consegue. Mas não quero forçar – assegurei, antes que ele se fechasse ainda mais. – Pense nisso com carinho. Nesse meio-tempo, ajude os dois a fazer os convites. Para daqui a quatro noites, lembrem-se. E podem dizer que vai ter um jantar muito bom com aquela cerveja reservada para os mestres. Isso vai ajudar a convencer algumas pessoas.
     -- Vai mesmo! Pode deixar – piscou Orm, e nos despedimos naquele clima cheio de boa-vontade e otimismo.
      E – talvez por uma bênção especial do Grande Espírito – a acolhida não foi diferente, quando conversei com o único outro habitante da Ala Azul.
     Muitas pessoas achavam que vivíamos isolados, e talvez essa tivesse sido mesmo uma das razões para Kieran escolher seus aposentos quando chegou ao Castelo das Águias. Julgando por mim, no entanto, eu achava provável que a Ala Azul também o houvesse conquistado. Era a mais antiga, toda de pedra, ao estilo dos homens das Terras Férteis; tinha três torres, uma das quais tinha servido de habitação aos senhores de Vrindavahn até que Theoddor, o último descendente, optasse por um cômodo térreo na Ala Rosada, a mais próxima da floresta que ele tanto amava. Rydel, que o sucedera como professor de Ciências da Terra, vivia lá agora, e eu fora sua vizinha de cima por algumas luas até me mudar para a Ala Azul com o mago que se tornaria meu marido. Nem discutimos quanto a esse ponto, porque eu também adorava nossa torre, com janelas que descortinavam as mais belas vistas de Vrindavahn, móveis antigos e elegantes e os cômodos aquecidos por lareiras e tapeçarias. Ali, só ali, a pele de urso que meus parentes me deram de presente de casamento não parecia deslocada – e ali, mais do que qualquer outro lugar, o homem que lia recostado nos travesseiros me parecia aquele com quem eu queria passar o resto da vida.
     -- Você aqui, a essa hora? – perguntei, pois de fato não esperava encontrá-lo. – Achei que você e Finn estariam fora de alcance o dia todo.
     -- Não. O trabalho com o Terceiro Círculo já terminou, felizmente. E agora é você que pode se pôr ao meu alcance.
     Sorriu, aquele sorrisinho torto que dizia tanto em silêncio, e deixou o livro de lado, bem no momento em que eu deslizava para junto dele e me aninhava em seus braços.
     -- Sua trança está meio desfeita. Deixe-me arrumar – disse Kieran; e, claro, o que fez foi acabar de soltá-la. – Que cabelo macio...! Quanto tempo eu tenho com você antes que fuja para planejar sua Grande Noite das Sagas?
     -- Ah, já está sabendo? Quem lhe disse? – perguntei, com uma ponta de apreensão. Se houvesse sido Urien, havia um risco de ele ter falado além do que deveria. Kieran, porém, disse que soubera através de Camdell, a quem eu e o mestre de Música havíamos consultado, logo de manhã, para saber se podíamos prosseguir com os nossos planos. Claro que o Mentor havia adorado a ideia.
     -- Eu também acho que vai ser bom – disse meu marido, ainda com o nariz afundado no meu cabelo. – Uma noite com música e ouvindo histórias... Principalmente se forem as suas.
    -- A ideia é que não sejam só as minhas. Mas, claro, vou contar algumas também, possivelmente abrir a noite. Você me acompanha com a harpa, não é? Pelo menos em uma ou duas, para revezar com o Urien?
     -- Claro que sim. – Kieran pegou minha mão esquerda, afagou dedo por dedo, com ar pensativo. – Estou curioso com as histórias que vai escolher.
     -- Alguma coisa sobre a viagem à Ilha dos Ossos, certamente. E uma que aprendi na Floresta do Sol. Precisa saber com antecedência? Para ensaiar um pouco, talvez?
     -- Ah, não. Pode me surpreender – disse ele, e se voltou para mim, com os olhos brilhando e um sorriso ainda mais eloquente. – Na verdade, acho que esse pode ser o melhor momento da noite.


***

Continua....

Parte 1

Parte 3

domingo, 11 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 1


Pessoas Queridas,

Hoje começo a postar uma novela para os leitores do blog e, simultaneamente, no Wattpad. Ela se passa no inverno seguinte àquele em que Anna e Kieran regressaram da Ilha dos Ossos; estão de volta ao Castelo das Águias, convivendo com mestres, aprendizes e amigos da cidade de Vrindavahn. Sigam os links para conhecer (ou lembrar de) algumas dessas pessoas e situações.

Espero que curtam, comentem e chamem os amigos! :)


       -- Acho que o Nils nunca soube, mas fiquei de olho nele desde que entrou para o serviço do Castelo. Ele já era cocheiro antes, mas trabalhava para um mercador e viajava muito, por isso comia mal e estava sempre com dor de barriga. Ela não funcionava, sabe? E ele às vezes parava o que estava fazendo e ficava ali, sem soltar um ai, mas com aquela cara de sofrimento, até que a dor melhorasse e ele pudesse voltar ao trabalho. Acho que gostei dele por isso: porque fazia o que tinha fazer. Não se queixava nem se aproveitava da bondade do Senhor Theoddor para ficar encostado... Mas, Mestra Anna, o que está fazendo? O creme vai dentro da massa e não por cima, lembra?
       Pisquei, olhando para a bandeja à minha frente, e assenti. Netta balançou a cabeça, como se dissesse que eu não tinha jeito, e foi mexer a sopa enquanto eu consertava os doces de amêndoa. Não falou mais, talvez porque soubesse que sua história tinha me envolvido e me levado a cometer o erro, e eu contive minha curiosidade pela mesma razão. Bom, pelo menos até que os doces estivessem prontos.
       -- Continue, Netta. – Levantei-me, segurando o tabuleiro. – Como foi que você chamou a atenção de Nils? E foi você que o ajudou com aquele problema?
       -- Ah, as coisas foram acontecendo – disse ela, dando de ombros. Deixou o caldeirão em fogo baixo e me seguiu até perto do forno, onde dançavam chamas alegres e cujo calor fazia esquecer o inverno úmido e sombrio lá fora.
       -- Cuidado para não se queimar – recomendou Netta. – Agora é deixá-los pouco menos de uma hora. Vou manter o fogo alto, e quando vocês acabarem de jantar os doces estarão prontos.
       -- Não se esqueça de separar alguns para o Kieran – pedi. – Ele não vai comer até o meio-dia de amanhã.
       -- Eu sei. Ele, Mestre Finn e Mestra Thalia. Ah, que tristeza eu sentiria se fosse casada com um desses magos. Imagine, passar o dia cozinhando para depois não poder alimentar meu marido!
       -- Mas pode alimentar o seu – insinuei, querendo trazer a história de volta. – Aposto que Nils melhorou comendo o que você preparava. Acertei?
       -- Deve ter sido. Ah, mas já faz tanto tempo... E veja só, a sopa está borbulhando! Lori, o queijo! – gritou ela para sua ajudante, que estava no extremo oposto da cozinha.
       -- Num instante! – veio a resposta.
       -- Ande rápido, que os meninos devem estar morrendo de fome! – disse Netta, voltando a mexer a sopa. Com a destreza conseguida em anos de prática, ela passou várias conchadas para um recipiente menor, depois fez um sinal para dois empregados do Castelo, que tinham chegado momentos antes e se achavam a postos. Eles ergueram o pesado caldeirão de ferro, passaram por Lori, que atirou lá dentro várias mancheias de queijo em fatias, e seguiram para o refeitório, onde foram recebidos com vivas pelos aprendizes agasalhados até as orelhas.
       -- Vá jantar, Mestra Anna. Os outros mestres já devem estar esperando – disse Netta, que agora se ocupava de uma enorme panela contendo frango cozido. – Ida já está quase saindo daqui com a sopa.
       -- Vou, sim, mas outro dia quero acabar de ouvir a história – repliquei. Ela fungou, de costas para mim, e não disse nada. Acenei para Lori, que ria abafadamente no seu canto, e para Ida, a moça que esperava para servir nosso jantar, e deixei a cozinha, seguindo o corredor que conduzia à sala de reuniões.
       O aposento amplo, mobiliado com elegância sóbria, onde discutíamos questões da Escola e dos alunos era também onde costumávamos jantar. Quase sempre fazíamos as duas coisas ao mesmo tempo. Hoje, porém, a conversa prometia ser mais amena, pois três dos sete mestres de Magia estavam ausentes, envolvidos com a orientação dos aprendizes do Terceiro Círculo. E como quase sempre acontecia nessas ocasiões, Urien se achava impaciente à minha espera.
       -- Hoje o ranzinza do seu marido está ocupado – disse ele, de forma que só eu o escutasse. – Vamos aproveitar o tempo?
       -- Podemos. Mas Kieran não é ranzinza.
       -- Como não? Ele tem muitas qualidades, admito, mas é também um rabugento de primeira – declarou Urien, e então ergueu a voz. – Ah, lá vem a sopa! Nada melhor numa noite fria como esta!
       -- Nem me diga – suspirou Rydel. – Eu tinha uma festa para ir em Vrindavahn, mas Benios desistiu. Não quis andar pela cidade debaixo da chuva, mesmo não estando muito forte. E não quis vir passar a noite comigo. Acho que o frio desencoraja as pessoas.
       -- Isso aqui, nas Terras Férteis. No Norte há grandes festas e encontros que acontecem no inverno – tornou Urien, servindo-se da sopa onde boiavam fios de queijo derretido. – Festas das boas, com salões decorados, muita bebida, malabaristas, bardos...
       -- É que as pessoas ficam mais próximas – comentei. – A nossa tribo, por exemplo, se reúne muito mais no inverno, porque é difícil achar caça e fazer qualquer coisa ao ar livre. Então visitamos uns aos outros, sentamos ao redor do fogo e comemos carne seca e frutinhas que guardamos no outono. E, nessa mesma época, os homens fazem as festas de que Urien falou, em suas cidades e castelos.
      -- Então é um hábito do Norte – concluiu Rydel.
      -- Sim, mas eu diria que é mais um hábito do inverno -- ponderei. -- Todas as tradições falam dessa estação como propícia ao recolhimento, mas também a esse retorno ao seio da família e ao convívio com os amigos. E isso em todas as regiões de Athelgard. Só que o frio aqui no Sul não é muito grande e não interrompe as atividades de ninguém. As pessoas se sentem obrigadas a fazer o que fazem sempre. Mesmo que sua vontade fosse se aconchegar umas às outras e ficar contando histórias.
       -- É, acho que tem razão. Que pena, poderíamos cultivar esse hábito aqui em Vrindavahn – disse o elfo.
       Assenti, e a conversa tomou outros rumos, mas aquelas palavras ficaram dando voltas em meus pensamentos. Logo acharam um canto onde germinar, embora ainda em silêncio, como sementes no solo de inverno. Aquele frio úmido, que incomodava tanto as pessoas das Terras Férteis, que enfarruscava os ânimos no Castelo das Águias e fazia da alegre Vrindavahn uma cidade parada, quase monótona... Todos o enfrentariam melhor se ficassem mais próximos, como se deve estar nas noites frias. E o que eu, a Mestra de Sagas, podia fazer a respeito?
       Não era preciso pensar muito para achar a resposta.
       O jantar seguiu sem novidades, culminando nos deliciosos doces de amêndoa que Netta me ensinara a fazer. Lara se retirou assim que terminamos, depois foi a vez do Mentor Camdell, e logo todos os professores haviam se despedido. Acompanhei o mestre de Música até a Ala Verde, como havíamos combinado, mas, quando chegamos à sua sala de trabalho, foi a minha vez de surpreender Urien com uma proposta em voz baixa.
       -- Antes de começarmos, quero falar sobre uma ideia que tive. Não é uma coisa muito grande, nem difícil, mas não posso fazer sozinha. Você me ajuda?
       -- Só um momento. – Ele pegou uma garrafa que estava atrás de um estojo de alaúde, aparentemente escondida, e se serviu de uma taça de vinho antes de se sentar à minha frente. – Pronto, sou todo ouvidos. E mesmo antes que fale, já sabe, pode contar com minha ajuda. A não ser que seja alguma coisa muito perigosa, como tirar um urso da toca.
       -- Isso eu já fiz e não vou fazer de novo – repliquei, e me inclinei para diante. – Escute com atenção, e depois me diga... O que acha de promovermos uma grande noite de sagas?

****

(Continua...)

Parte 2

Imagem: Natureza morta na cozinha, óleo sobre tela de Floris Gerritsz van Schooten. (Haarlem, ca. 1590 - 1655)

domingo, 28 de agosto de 2016

Editora Draco na Bienal do Livro 2016



Pessoas Queridas,

A Bienal do Livro de São Paulo já começou!

Eu só irei nos dias 2, 3 e 4 -- o último final de semana - mas já vou deixando
aqui a agenda de participação dos autores da Editora Draco. Vai ter muita gente boa por lá, tanto da Literatura quanto dos quadrinhos, e todo o catálogo estará com desconto.

Esperamos vocês!

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Entrevista no blog The Nerd Bubble



Pessoas Queridas,

Tive o prazer e a honra de reinaugurar a coluna de entrevistas do blog "The Nerd Bubble", da querida Camila Villalba. Falo da minha bagagem como leitora e da minha trajetória como escritora, desde os primeiros rabiscos até o momento.

Quem se interessar pode conferir a entrevista aqui.

domingo, 14 de agosto de 2016

Karel, o Insaciável


Karel Vannovich, chamado O Insaciável, é um dos personagens secundários de "A Ilha dos Ossos", com o qual Kieran se defronta nos subterrâneos do Castelo Vannovich, em Brandannen. Sua história não é completamente desvendada, o mago faz apenas uma suposição sobre como ele foi parar lá -- mas no conto "A Voz do Sangue" ficamos sabendo, com detalhes, tudo a respeito de Karel e da maldição que paira sobre sua família.

Esse conto traz como protagonistas o cauteloso Preste Ivan de Brandannen e o misterioso Maxim, membro da Ordem da Rosa -- um braço do Templo, parte secular, parte místico, que se dedica a combater o Mal em suas formas mais sutis. Juntos, eles entram no castelo pertencente aos senhores da cidade -- a família Vannovich, de humor e ancestralidade sombrios -- e lá se deparam com o que poderia ser descrito como uma cena de pesadelo>

Ivan contou treze, homens e mulheres de várias idades, o mais novo um adolescente com uma penugem sobre o lábio. Estavam atemorizados, mas mesmo assim faziam o que lhes tinha sido ordenado, detendo-se, cada um à sua vez, diante de um guarda que segurava uma grande taça de ouro. Um homem de armas desnudava seu braço esquerdo, prendendo-o firmemente pelo pulso e cotovelo enquanto outro, munido de uma faca curva, fazia um fundo corte no antebraço. O sangue escorria, e o braço era apertado e torcido até que uma boa quantidade houvesse sido recolhida na taça. Gritar era proibido, mas quase todos deixavam escapar gemidos que torturavam os ouvidos e o coração do Preste.

O maestro dessa orquestra de horrores é justamente Karel, que os dois enfrentarão de forma eficaz, mas não definitiva. Afinal, sabemos que ele reaparece em "A Ilha dos Ossos", e esse novo confronto tem consequências que se fazem sentir, também, em "A Fonte Âmbar". Assim, o Insaciável é um personagem bastante relevante para a trilogia, e até para a própria Athelgard, principalmente se levarmos em conta a história do clã Vannovich, um dos maiores do Oeste, com sua origem imersa em brumas e em lendas que falam de bebedores de sangue.

Esta, a de Karel, vocês conferem aqui.

Espero que gostem e peçam mais!

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Desenho de Karel por Cristiano Konno, que fez várias resenhas sobre Athelgard em seu blog e escreveu uma bela história nesse universo, a qual em breve esperamos disponibilizar.