domingo, 30 de outubro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 6


     -- Ah, então pelo menos para tocar ele sobe ao tablado, não? Bom, já é alguma coisa! – disse Urien, erguendo as sobrancelhas de um jeito cômico. – E é ótimo para mim. Se estou mesmo dispensado, posso beber à vontade. Esse vinho é excelente. Você não sabe o que está perdendo.
     -- Pois é, mas hábitos são hábitos. Ninguém da minha família bebe ou jamais bebeu vinho. É verdade que também não comem queijo, uma coisa que eu adoro. Mas queijo de cabra era o que mais me ofereciam em Bryke.
     Apertei os lábios, lembrando-me das várias coisas que existiam na vila Odravas, mas não no interior da floresta onde eu vivia com minha tribo. O intercâmbio crescera ao longo dos anos, mas algumas coisas continuavam a ser consideradas apenas “nossas” e outras pertencentes só a “eles”.   Isso criava alguns problemas, às vezes, para ambos os lados.
     E um deles resultara na história que finalmente eu me propusera a contar.
     -- Atenção, amigas e amigos! Nossa querida Anna atenderá a seus pedidos e nos brindará com outra narrativa! – exclamou Finn, e o aviso foi recebido com palmas e assovios. – Andi ap Llyr, aprendiz do Segundo Círculo, irá acompanhá-la ao alaúde, e... Conan, você também?
     -- Não, mestre. É que Orm veio dizer que Mestra Anna queria o tambor emprestado – explicou o mais velho dos meus ex-alunos, que se juntara a outros colegas para tocar nos intervalos das sagas.          Agradeci e peguei o tambor de couro e a baqueta, lembrando-me – e sorrindo por isso – da primeira vez que o usara para contar histórias da tribo em minhas aulas no Castelo. Jamais um Mestre de Sagas deve ter sido olhado com tanta estranheza.
     Andi pegou o alaúde e se juntou a mim no tablado. Não falou mais, apenas olhou nos meus olhos e assenti quando lhe disse que contava com ele. Sua garganta se moveu, mostrando que engolia em seco, e eu me dirigi em pensamento aos Guardiões da minha tribo, pedindo que ficassem do nosso lado.
     Se nada desse certo, que ao menos soubessem que eu fizera o melhor que possível.
     -- Hey-heya! Pelas presas do Lobo, as penas do Corvo e os bigodes da Lontra! – proferi, em alto e bom som; e então me detive por um instante, observando o espanto em vários olhares. – Um jeito diferente de começar uma saga, não é mesmo? Eu deveria evocar os Heróis, já que sou humana, ou me referir ao Fogo Primordial, se fosse contar uma história como os bardos élficos. Não é assim?
     -- Acho que é. Sim. É o que se espera – disseram vozes desencontradas em meio à audiência. Quase todas vinham de pessoas que me conheciam pouco, mas três ou quatro aprendizes e até Mestre Tomas entraram no jogo, embora com expressões diferentes, sorrindo com o canto da boca e piscando para mostrar que sabiam do que eu estava falando. Pisquei também, em reconhecimento, e prossegui, fixando-me ora em um, ora em outro olhar repleto de assombro.
      -- Pois abram bem os olhos e os ouvidos. – Era o sinal para que Andi começasse a tocar, bem discretamente, criando uma atmosfera de segredo e de aconchego. -- A história que vou contar é a de alguém que estudou durante anos para ser uma Mestra de Sagas, mas cujo aprendizado decorreu de forma diferente do comum, dentro dos princípios do sábio Odravas. Alguém sabe dizer qual seu preceito fundamental?
     -- Da terra – começou Rydel, mas estacou quando desferi um sonoro golpe no tambor. Sorri, fazendo um sinal para encorajá-lo, mas um dos aprendizes já prosseguia:
     -- Junto à terra... – Nova batida do tambor.
     -- E com os filhos da terra! – concluiu um pequeno coro, igualmente brindado com uma batida.
     -- Exato. Era o que dizia Odravas. E seus seguidores criaram muitas vilas, como a de Bryke, junto a florestas onde viviam tribos como a minha. Os resultados foram muito diferentes de lugar para lugar, mas de quase todas saíram pessoas como eu: com sangue das tribos, porém educados por elfos brilhantes. E para não ferir os princípios de Odravas, a educação e o aprendizado sempre respeitavam ao máximo as tradições da tribo hospedeira. Imaginam como era?
    -- Devia ser divertido! – exclamou o aprendiz conhecido como Ruivo.
    -- Eu iria adorar – disse Freydis.
    -- Um pouco confuso, não? – perguntou, timidamente, o mais moço dos Prestes que viera do templo de Bragi. Era a resposta que eu esperava para imprimir entusiasmo à minha voz.
    -- Sim! – exclamei, batendo duas vezes no tambor e erguendo a baqueta, para que todos me encarassem como se eu fosse uma louca. -- Era confuso, e divertido, e um desafio constante. Todos os livros que tínhamos para ler falavam de coisas que nunca tínhamos visto, e as que víamos tinham sempre mais importância. Só aprendíamos a ler os mapas do céu dos elfos brilhantes depois de provar que sabíamos nos orientar na floresta; só aprendíamos a história de Athelgard depois de conhecer a da tribo, dos nossos antepassados. E o jeito da tribo de contar histórias é diferente do jeito como se conta nas Terras Férteis. Então, embora minha mestra tocasse bem a harpa e o alaúde, ela não fez questão de que eu aprendesse desde o início. Para quê? Eu era da tribo! Eu podia muito bem usar...
     -- O TAMBOR! – gritaram várias vozes, assombradas e divertidas. Assenti, e então comecei a percutir ritmadamente o tambor, os acordes de Andi se ajustando em uma harmonia perfeita. Éramos um duo, mas não estávamos cantando, e sim contando uma história da qual a próxima parte ainda era minha. Mas só a próxima parte.
     -- Eu me concentrei em contar e escrever histórias – continuei, ante a fascinação da audiência. -- Registrei todas que conhecia da tribo e escrevi um livro que foi enviado a vários Mestres de Sagas. Um deles chegou às mãos do Mentor Camdell, e começou a correspondência que, ao fim de poucos anos, acabaria por me trazer ao Castelo das Águias. Mas o que aconteceu? Esse convite nos pegou de surpresa! Maryan ainda ia começar a me ensinar um instrumento, pois só depois de alguns anos eu deveria passar pelos testes da escola bárdica! Então o que fazer? Alguém tem ideia?
     -- Você aprendeu? – perguntou Amina, completamente arrebatada pela história e o som.
     -- Não aprendeu! Ela sempre tem um harpista ou alguém tocando alaúde ao fundo – disse um dos mestres da Ala Violeta.
     -- É mesmo? Mas então ela não poderia... – começou o jovem Preste, logo silenciado por vários olhares zangados. Inclusive do seu superior, Preste Drusius. No entanto, mais uma vez ele me dera a deixa que eu esperava, por isso sorri e o encarei, detendo as batidas no tambor e elevando minha voz acima da plateia.
     -- O que eu não poderia, Preste? Fale sem medo!
     -- Eu... Eu não quis...
     -- Você está sem graça – disse Urien, sorrindo lentamente. – Mas seu engano é comum. A escola bárdica forma Mestres de Música, como eu, que têm de dominar pelo menos dois instrumentos; e Mestres de Sagas, como Anna, que devem ter de cor um repertório de histórias. A maioria deles toca harpa ou alaúde, para fazer o acompanhamento, e eu brincava com Anna dizendo que ela devia aprender, mas isso não é uma exigência da escola no caso dela. Estou falando a verdade – acrescentou, erguendo a taça. – Olhem, tem vinho aqui, ainda não estou completamente bêbado.
     -- Que bom! – exclamei, entre as gargalhadas do público. -- Assim vai se lembrar de como lhe agradeci... e do quanto nunca poderei agradecer o bastante por sua ajuda, por seu tempo, até por sua implicância, que me fizeram finalmente começar a aprender. Você também, Kieran – acrescentei, olhando para meu marido. – Eu queria que fosse uma surpresa, mas pelo jeito você sempre soube que eu estava tendo aulas de alaúde com Urien. Os calos nos meus dedos me traíram, não foi mesmo? E você não disse nada, só me apoiou... do jeito que faz sempre, me desafiando a ir além do que é fácil e confortável para mim.
      Respirei fundo, olhando dentro dos olhos dele, e soltei:
     -- E é o que vou fazer agora, trocando de lugar com meu aprendiz, para que ele termine a minha história e conte a sua.
     A garganta de Andi se moveu mais duas vezes, e seus olhos me fitaram cheios de receio, mas mesmo assim ele deu uns passos duros à frente e me entregou o alaúde. Empunhei-o, meus dedos correndo sobre a madeira, e sorri para o menino, mas minha expressão estava séria: eu não queria pressioná-lo, mas ele aceitara a proposta, e agora tinha de fazer o que prometera. Ia contar uma história, possivelmente a mesma que ensaiara diante de Freydis e Orm; podia ser que se engasgasse um pouco, mas os meus dedos também estariam atrapalhados nas cordas do alaúde, de forma a fazê-lo sentir que não estava sozinho. Era o jeito que eu tinha encontrado de fazê-lo quebrar sua barreira.
      E, ao tocar os primeiros acordes, não fazia ideia de como aquilo iria acabar.

*****

Talvez a maneira de contar histórias acompanhada apenas de tambor pareça estranha a quem pensa (acertadamente) em skalds nórdicos e bardos celtas quando falamos das sagas do Castelo. Mas o que a tribo da Anna faz é algo como isto aqui. Eu, pelo menos, acho legal.

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 4

Parte 5

Parte 7

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 5


       Os fornos já estavam apagados, mas o aposento guardava o calor e o cheiro bom da comida. Ao me aproximar, ouvi o som de vozes animadas, várias delas falando ao mesmo tempo, mas – por estranho que fosse – não parecendo dizer alguma coisa. Era uma linguagem sem sentido, embora melodiosa, e só entendi do que se tratava ao entrar na cozinha e ver quatro pessoas se derretendo diante de um bebê.
      -- Olhe quem chegou, querido! A Mestra Anna! – exclamou Netta, que segurava a criança nos braços. – Ainda não conhece o pequeno Nils, não é? Ele teve que aprender a se sentar para vir ao Castelo, visitar a avó e o avô!
      -- Não conhecia, não, mas o imaginava bem assim, pelo que você e Nils contavam dele. – Sorri, passando um dedo pela bochecha do menino; ele devolveu o sorriso, arrancando de todos um ooooh cheio de ternura.
      -- Ele gostou da senhora, Mestra – disse timidamente a mulher de Holger.
      -- Todas as crianças gostam – declarou Netta, fazendo-me sorrir outra vez. – Precisava ver aqueles três, quando vieram nos chamar para a Noite de Sagas. Disseram que essa tinha que ser a melhor festa de aniversário de todas.
      -- Está sendo – assegurei.
      -- Desculpe não termos ido para lá, Aisleen e eu – disse Netta, referindo-se à nora. – É muita gente, muito barulho, e Nils não está acostumado, precisa de sossego. Quer dizer, o pequeno Nils – acrescentou, olhando para o marido. – Aquele ali, o grande, é um farrista. Quanto mais comida e bebida, mais ele gosta.
       -- E a culpa é sua. Quem mandou me dar aquela poção? – perguntou o cocheiro, rindo com gosto.
       -- Poção? - indaguei, quase sentindo minhas orelhas empinarem. – Isso tem a ver com aquela história do outro dia?
       -- Que história? Não sei de nada – disse Netta, fazendo-se desentendida. Eu ia lembrar o que ela me contara, mas me contive a tempo. Não sabia até que ponto eles queriam falar sobre aquilo. Para minha surpresa, porém, Holger ficou animado, querendo que sua mulher também se inteirasse do episódio.
       -- Acho que nunca lhe contei, Aisleen – disse ele. – Meu pai, antes de ser forte assim, era magro e vivia com dor de barriga. Ele comia muito pouco, e minha mãe achava que quanto mais comesse mais lhe faria bem, principalmente se fosse a comida caprichada que ela faz. Só que ele recusava, por medo de a barriga doer mais ainda...
       -- Você não imagina a agonia que era aquilo! – afirmou Nils.
       -- ... e minha mãe ficava cada vez mais danada. Até que pôs na cabeça que ele não gostava dela, que recusava de propósito a comida, pois assim ela iria desistir e se afastar.
       -- Como assim? Nada disso! Eu era discreta, não dava a entender que estava interessada – protestou Netta, meio rindo.
       -- Pois é! Eu achava que ela só queria ser gentil. – O cocheiro piscou, pousou a mão sobre a da mulher, que afagava lentamente as costas do pequeno Nils. – E é verdade que ela achava que a boa comida iria me curar. Mas eu morria de medo de comer qualquer coisa mais temperada, e em vez de explicar isso a ela só dizia que não, que não queria, que me satisfaria com umas frutas e um pouco de caldo. E assim foi durante uma, duas, três luas...
       -- Ela oferecendo e você recusando? – perguntei, divertida. – E logo Netta, que se ofende quando a gente não repete pelo menos duas vezes?
       -- Isso mesmo, até que ela ficou magoada – disse Nils. – Parou de oferecer comida e nem falava mais comigo. Fiquei surpreso, e também triste, porque a essa altura já tinha começado a gostar dela, mas não sabia o que fazer. E não sei se teríamos ficado nisso se não fosse – adivinhe quem? Nosso patrão, Mestre Theoddor.
       -- Sério? Ele fez vocês se entenderem? – Ergui as sobrancelhas, com surpresa. – Como aconteceu?
       -- Ah, Nils, não conte! Fui uma grande boba nas mãos dele – disse Netta, com as faces vermelhas.
       -- Mas essa é a melhor parte! Veja, Aileen, naquele tempo a Escola de Artes Mágicas ainda não tinha sido fundada – explicou Holger. – O Castelo das Águias era propriedade de Mestre Theoddor, que tinha estudado Ciências da Terra e um pouco de Artes da Cura. Mas todos sabiam que ele era amigo de vários magos, que estavam sempre trocando cartas, ideias...
       -- Às vezes algum deles se hospedava aqui – lembrou Netta. – Havia um quando isso aconteceu. Um elfo, não me lembro do nome. Até achei que Mestre Theoddor tinha falado com ele.
       -- Sobre o quê? Você e Nils?
       -- Sim, mas principalmente sobre o problema de saúde do meu pai – Holger respondeu. -- Mestre Theoddor notou que minha mãe andava triste, e ela contou a história; disse que estava tentando ajudar meu pai, mas ele não se importava nem com ela, nem com o que ela cozinhava com tanto carinho. Vai daí, Mestre Theoddor fez com que ela acreditasse que meu pai precisava tomar uma poção. Uma poção do amor, que ia fazê-lo ver o quanto ela gostava dele...
       -- Nem gostava tanto assim – disse Netta. -- Era só uma quedinha!
       -- ... e a partir daí ele passaria também a apreciar sua comida – completou Holger, com uma risada. – Era tudo que ela queria que meu pai fizesse.
       -- E como ela conseguiu que ele tomasse a poção? – indagou Aisleen, com olhos de assombro. – Ele sabia o que era?
       -- Na verdade, sim – disse Holger. – Mestre Theoddor não perguntou diretamente a meu pai, mas percebeu que ele estava gostando da minha mãe e andava aflito com o que pensava ser a indiferença dela. Então, ele recomendou a minha mãe que disfarçasse; que não dissesse a meu pai que era uma poção, e sim o que de fato era, ou seja, um remédio dado pelo patrão para ajudar com o problema dele. De forma que, mesmo sem saber da trama, ele sabia o que estava tomando, enquanto minha mãe acreditou piamente que fosse uma poção do amor; e quando meu pai melhorou da barriga e começou a comer o que ela oferecia...
       -- Ela achou que a poção tinha funcionado! – exclamei, rindo. – É uma história genial!
       -- Não deveria ter contado. Eu me sinto uma grande tonta – Netta resmungou, mas não parecia ofendida de verdade. – Mestre Theoddor sempre gostou de pregar peças, mas essa foi a maior de todas. E durou uns bons anos! Holger já era crescido quando ele nos contou o que tinha feito!
       -- Mas, no fim, isso acabou sendo bom para nós, não é, minha mulher? Ou pelo menos para mim – riu Nils. -- Faz quase trinta anos que você atura este velho fanfarrão!
       -- E aposto que tem muito mais para contar – falei. – Não vou descansar enquanto não ouvir todas as histórias!
       -- Mas agora seria melhor ouvir as que estão contando na festa, não é, Anna? – disse Kieran, entrando de repente na cozinha. Sua chegada provocou certo impacto, especialmente em Holger e Aileen – não estavam acostumados com ele, e sua fama de Carrasco o precedia --, mas a tensão foi quebrada pelo bebê, que lançou um olhar como que fascinado para meu marido e riu estendendo as mãozinhas.
       -- Ora, vejam, ele gostou do senhor! – exclamou Netta, uma das poucas pessoas no Castelo a não fazer cerimônia com Kieran. – Também riu assim para Mestra Anna. Sinal de que serão bons pais, quando se resolverem... sabiam?
       -- Espero que com meu filho eu seja bom. Com os aprendizes, esses mais novos, quase nunca acerto – resmungou ele. – Amina mal tinha voltado para a mesa quando aqueles três voltaram a cochichar, e fui saber o que era. Freydis e o neto do Comandante até falaram comigo normalmente, mas o outro parecia estar com medo de que eu o mordesse. Com muito custo consegui entender que estava se recusando a contar uma história.
       -- Muita gente acha que você morde. Mas é isso mesmo. – Suspirei, voltando-me para a família de Netta. – Preciso retornar ao salão, mas foi muito bom ver vocês e conhecer o pequeno Nils. E obrigada pela história da poção. Vocês se sairiam bem, narrando todos juntos, se fossem uma família de saltimbancos.
       -- Imagine! Eu só saberia guiar a carroça! – riu Nils, com as bochechas rubras. Fiz um carinho nos cabelos do bebê e deixei a cozinha, com Kieran logo atrás, a mão em meu ombro me impedindo de ir tão rápido quanto gostaria.
       -- Vai insistir com o menino? – ele perguntou.
       -- Com Andi? Não sei. Queria que ele superasse isso, afinal não tem medo quando se trata da harpa ou do alaúde, mas não posso forçá-lo.
       -- É verdade. Ele não tem medo de tocar, assim como você não tem medo de contar histórias – disse Kieran.
O tom foi casual, mas nele havia uma nota dissonante, e eu me detive para olhar bem dentro daqueles olhos estreitos.
      -- O que você quer dizer com isso? – perguntei, incisiva. – Onde está querendo chegar?
      -- Pense um pouco. Vai descobrir – disse ele, no mesmo tom.
Seus dedos roçaram de leve as pontas dos dedos da minha mão esquerda. Na mesma hora, lembrei-me de como ele também fizera isso, três dias antes, ao falarmos pela primeira vez sobre a Noite de Sagas – e então a compreensão iluminou minha mente como um relâmpago.
Ele sabia...!
     -- Tudo bem, eu também tenho receios – falei, puxando a mão que ele segurava e cruzando os braços. – Ainda mais porque sei que não estou pronta.
      -- Urien acha que está – disse Kieran, sem tirar os olhos dos meus.
      -- Ah, então você falou com Urien? – rebati, zangada. – É uma conspiração?
      -- Não, só estou constatando um fato. Urien diz sobre você o mesmo que você diz sobre o menino, e o menino parece sentir o mesmo que você a esse respeito. É curioso, nada mais.
      Fitei-o, pensando numa boa resposta, mas no final achei melhor não dizer nada e segui em frente. Os sons da festa nos alcançaram após alguns passos, culminando numa salva de aplausos dirigidos a Arnak, o Conselheiro meio-humano. Ele deixava o tablado quando Kieran e eu entramos no salão.
      -- Acredita que a história dele não teve mais que umas vinte frases? Foi divertida, mas nem deu gosto – disse Urien, vindo ao nosso encontro com uma harpa sob o braço. – Anna, ninguém se ofereceu para contar a próxima, e muita gente está pedindo que você nos brinde mais uma vez. Pode fazer isso?
      -- Sim, é claro – respondi, mas minha atenção se voltava para a mesa onde estavam as crianças. Orm e Freydis se sentavam cada qual de um lado de Andi e lhe falavam em voz baixa, tentando animá-lo e – provavelmente – convencê-lo a ocupar o tablado; o meio-humano estava cabisbaixo, mas, em meio ao silêncio, notei que olhava de soslaio para Kieran. Seria medo? Ou só aquela espécie de temor respeitoso que a maior parte dos aprendizes sentia por ele no Segundo Círculo?
      -- Espere um pouco, Urien – pedi, e caminhei até a mesa deles. Freydis se calou à minha aproximação, e em seguida foi a vez de Orm, mas eu sentia que a tensão ali era quase palpável.
    -- Ei, Andi. Kieran veio falar com você? – perguntei, tentando aliviar os ânimos. – Espero que não tenha pressionado muito.
     -- Mestre Kieran foi um amor – afirmou Freydis, de cenho franzido. – Ele disse que Andi devia tentar, que ele não era o único a ter medo, que todo mundo em algum momento passa por isso. E nós estamos dizendo o mesmo, só que ainda assim ele não se convence.
      -- Eu me convenci. Quer dizer, eu sei que vocês têm razão – disse o meio-humano. – Mas tem alguma coisa que me impede.
      -- Medo de errar – afirmou Orm.
      -- Medo de todos rirem de você – contrapôs Freydis. – Mas, Andi, isto é uma festa para a Mestra Anna. As pessoas de fora do Castelo são amigas dela. Você vai se sair bem, e, mesmo que erre um pouco, ninguém vai levar a mal. Somos todos aprendizes, não é?
       -- Isso! – exclamei; e então me senti estremecer. Aquelas palavras tinham acendido uma nova luz, tinham-se somado àquilo que eu ouvira pouco antes de Kieran e me aberto os olhos. Eu era uma mestra, sim, ou pelo menos tinha conhecimento bastante para ensinar às crianças do Castelo das Águias. Mas, em outras coisas, também era uma aprendiz. E com receios semelhantes aos de Andi, embora talvez por outras razões.
       E, se minha intuição estivesse certa, acabara de pensar em algo que poderia ajudar a nós dois.

Imagem: ilustração medieval alemã representando Tristão e Isolda

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Parte 2

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Parte 4

Parte 6