domingo, 16 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 7)


-- Viu só, Mestre Theoddor? Eu disse que não ia ficar bom! Até aquele homem, que deve ser um artesão ou coisa parecida, consegue perceber isso!
Cyprien, com as faces em fogo, se voltou para a mesa deles. A pessoa que falava era uma elfa de sangue puro – ele supôs por sua aparência, e teria mais certeza se soubesse quão mais aguçados que os humanos são os ouvidos de um elfo --, e não uma menina como Pardalzinho, mas uma garota mais velha, zangada e de mãos na cintura. Seus companheiros, outra moça e três ou quatro rapazes que deviam ser todos mestiços, e o próprio Theoddor a fitavam, constrangidos, sem saber como fazer frente àquele desabafo.

-- Já no começo eu disse que não daria certo. Ninguém conversa assim! – Ela repetia exatamente o que Cyprien tinha pensado. – Ninguém parte de uma brincadeira, um jogo de palavras, para se exibir com tudo que sabe a respeito de símbolos!
-- Ela tem razão – disse um dos rapazes, coçando a cabeça. – Se meus amigos fossem assim, eu não acharia divertido jogar com eles,
-- Mas amigos não são... Quer dizer, isso é teatro, é algo imaginado. Não é como na vida real – argumentou Theoddor. – Não tem que parecer o que vocês fariam de verdade.
-- Não é a vida, mas tem que ter mais vida – a elfa insistiu. – Foi o que eu li no livro que Mestre Camdell me emprestou. O que se faz num palco tem que ter por trás a emoção dos atores, e provocar também a do público. E nem eu sinto qualquer emoção ao dizer essas palavras, nem acho que o público vai sentir, como aquele homem disse com tanta clareza.
Seus olhos se voltaram para Cyprien, e com eles os de todo o refeitório: mestres e aprendizes tinham parado de comer para prestar atenção àquilo. O saltimbanco baixou a cabeça, respirando fundo, e esperou por uma resposta de Theoddor; esta, porém, não veio, e ele compreendeu que o silêncio não era mais que a sua deixa.
-- Senhoras e senhores, uma vez que sua atenção foi atraída para mim, começo por me apresentar – disse, e se levantou devagar, criando efeito. – Sou Cyprien, um artista de Pwilrie. Estou nas Terras Férteis há uma lua, e faz apenas três dias que cheguei em Vrindavahn. Vim acompanhando um amigo, sobrinho do Mestre Hector, o marioneteiro; essa é uma das artes com as quais trabalho, além de malabarismo, que me fez ser contratado para ajudar no treino dos aprendizes. E, como sabem, o teatro de bonecos tem bastante em comum com o que os atores de carne e osso representam nos palcos, portanto... Com o meu pedido de desculpas, se isso os ofende... Por tudo que sei, o teatro deve agradar ao público, e o que ouvi dificilmente agradaria.
-- Como sabe? – A pergunta veio de longe, dos lábios da elfa mal-humorada que ele supunha ser uma das mestras da Escola. – Pode ter experiência com o público, não duvido, mas certamente só com o público comum, gente que vaia e aplaude os saltimbancos na praça do mercado. Aqui são todos mestres e aprendizes das Artes Mágicas, e as peças não são para entreter a assistência. Elas têm um propósito e um significado, que nem você, nem qualquer outro leigo são capazes de entender.
Thalia de Erchedel

-- Compreendo, senhora – disse Cyprien, trincando os dentes. – Peço desculpas, mais uma vez, pela ofensa. Não cabe a mim dizer como uma história deve ser contada.
-- E ainda assim... – Agora quem falava era o elfo ao lado dela, com a tiara nos cabelos, inclinando-se sobre o prato intocado. – Ainda assim, Thalia, nosso mestre artista tocou num ponto interessante. É verdade, o teatro tem um significado, não se trata apenas de entreter o público ou, como ele disse, de agradá-lo; mas, ainda assim, a peça busca contar uma história. E, como Elina nos fez lembrar, ainda que um pouco exaltada demais, ao ponto de ser rude com Theoddor...
-- Peço perdão – disse a elfa, corando violentamente. – Perdoe-me, Mestre Theoddor, e o senhor também, Mestre Camdell. É só porque desde o início venho insistindo nesse ponto, e ninguém me deu ouvidos. Mas não queria ser rude com ninguém. Eu juro.
-- Nem eu – disse Cyprien.
-- Sabemos. Fiquem tranquilos. – Camdell ergueu a mão esguia, onde brilhava um anel de rubi. – Mas, deixando de lado esse tom um tanto brusco, Elina teve uma boa lembrança. O livro que lhe emprestei foi escrito por um dos maiores mestres que já discorreram sobre a arte teatral, e ele reforça a importância de manter o interesse do público, a fim de transmitir o que se deseja. Faz até menção à Magia – acrescentou, pensativo --, embora seja a praticada pelos xamãs, que passam ensinamentos para a tribo por meio de histórias. Também fazemos isso, mas muitas vezes nos limitamos a explicar, ou apenas ler um livro em voz alta. Já eles, ao narrar, mexem com as emoções, trabalham a Magia... com arte. É isso que eu quero tentar fazer em nossa escola.
-- Escola de Artes Mágicas – disse o meio-elfo ao seu lado, que até então estivera em silêncio. – É só pensar nisso, e o que você disse faz sentido.
-- Ah, é mesmo, Finn? Muito bem, então – disse Thalia, cruzando os braços. – É sua vez de ajudar, porque eu já fiz minha parte, e Theoddor fez o que podia. Quem sabe um mestre de Magia da Forma, que entende tanto de rituais, possa obter mais sucesso?
-- Ou... um mestre de arte? – indagou Camdell, e entrelaçou as mãos sob o queixo, olhando em cheio para Cyprien. – O que acha de ajudar a tornar a peça melhor?
-- Eu? – Foi um choque; ele quase engasgou. – Mas eu não...
-- Sim, sim, sim, sim, sim! – gritou Pardalzinho, pondo-se de pé e ao seu lado num único salto. – Mestre Camdell, Cyprien entende tudo de arte, e é muito divertido. Aposto que a peça vai ficar ótima com ele!
-- Eu também acho – disse Theoddor, abrindo um sorriso calmo. – O que me diz, Cyprien? Os aprendizes sabem tudo que tem de estar na história; você só precisa sugerir um jeito mais interessante de contá-la. Sei que conhece a melhor maneira... de evitar a chuva de nabos – acrescentou, e algumas pessoas ao redor soltaram risadinhas. Finn, o mestre de Magia da Forma, e a meio-elfa ao seu lado também acharam graça, mas Thalia não; e quando Cyprien, sem saber como agir diante daquilo, finalmente concordou em ajudar com a peça, ela se levantou e se afastou com brusquidão.
-- Façam o que quiserem, da minha parte eu sei que cuidei, e espero que não seja conspurcada. E que seja a última vez – advertiu, com o dedo no ar. – Precisamos de um Mestre de Sagas de verdade. Você me autoriza a buscá-lo, Camdell? Já que sua amiga preferiu viver na Floresta dos Teixos?
-- Sim, Thalia. Pode escrever em meu nome; você sabe as condições – disse Camdell, com um suspiro. – Agradeço muito se conseguir alguém.
-- Oh, de nada, de nada – respondeu ela, já de saída do refeitório. Suas longas vestes deslizaram pelo mosaico do chão, produzindo uma espécie de silvo. Cyprien sentiu sua pele arrepiar, mas, no instante seguinte, a voz de Finn o devolveu à verdadeira dimensão daquilo.
-- Acho que Thalia não volta – disse ele, dirigindo-se a Camdell. – E ela nem tocou no pudim. Pode passá-lo para cá?

Cyprien e Thalia retratados por Angela Takagui

Parte 1

Parte 6

Parte 8

***

Pessoas Queridas, vou me ausentar por cerca de dez dias. Nesse meio-tempo, além de passear aqui pelo Castelo, convido vocês a visitar o blog da Editora Draco e saber um pouco mais sobre o processo de criação do Cyprien e as outras histórias sobre ele já disponíveis. Basta clicar aqui.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 6)



Os aprendizes se entreolharam por um momento antes de assentir. Cyprien repassou algumas explicações sobre o manuseio das bolas coloridas, que todos dominavam em teoria, e passou as próximas duas horas corrigindo os erros práticos. Deu uma demonstração também, embora sem os floreios do dia anterior, pois ali o que interessava não era mostrar o que sabia, e sim fazê-los observar e repetir seus movimentos. As crianças se comportaram como o esperado, errando mais do que acertavam, ficando frustradas e irritadas por causa dos erros e se animando quando percebiam ter feito algum progresso. Cyprien as encorajou, até distribuiu um elogio para cada um – neste a concentração, naquela a firmeza do pulso, na pequena, que nunca reclamava das repetições, a atitude --, mas deixou claro que só melhorariam com muita prática e muito esforço, e tinham que treinar um pouco nas horas vagas, de forma a ter o que mostrar quando ele voltasse a vê-los.
-- Vamos treinar, sim. Treinamos todos os dias – disse o menino de rosto comprido. – Não melhoramos muito porque o mestre que tivemos antes não explicou onde estávamos errando. Só disse para a gente praticar até acertar, e mais nada.
-- Onde ele está agora? – perguntou Cyprien, e balançou a cabeça ao ouvir que não estava mais no Castelo. Melhor assim: faria do seu jeito, que transformara dezenas de crianças em artistas pelo menos razoáveis. Nunca tivera um aprendiz só seu, mas os mestres de Pwilrie sempre o preferiam para ajudar a treinar os mais novos. E, ao contrário do que temera, o fato de esses de agora terem sangue de elfo não foi nenhum empecilho.
Um sino badalou, duas, três, inúmeras vezes, de forma que ninguém deixasse de saber que era meio-dia. Os operários interromperam o trabalho e começaram a se retirar, enquanto a aluna menor de Cyprien o puxava pela mão.
-- Vamos comer! – Suas faces estavam coradas, e ela continuava a saltitar feito um pardalzinho. – Se a gente chegar logo ao refeitório, todo mundo consegue sentar junto!
-- Todos aqui comem no mesmo lugar? – perguntou ele, só para confirmar; não era assim tão estranho, era inclusive a prática nos castelos do Norte, onde senhores e servos comiam juntos no mesmo salão. Esperava encontrar algo parecido no Castelo das Águias, mas o refeitório ao qual os aprendizes o guiaram era, como logo percebeu, mais semelhante àqueles que se encontravam nos templos: em vez de uma mesa grande, com assentos elevados para os castelões, e outras laterais para acomodar os convivas em ordem de importância, aqui havia duas fileiras de mesas paralelas, com bancos onde cabiam quatro pessoas de cada lado – ou cinco, se fossem crianças – e uma pouco maior na lateral. Estivessem num templo e essa mesa pertenceria ao Preste Superior, ao Mestre do Coro e aos demais religiosos graduados; aqui, porém, era o lugar onde se sentavam os mestres da Escola de Magia, todos do mesmo lado, de frente para os aprendizes, artesãos e trabalhadores do Castelo.
Cyprien deu uma olhada discreta enquanto passava por eles, a certa distância, para ocupar uma mesa junto com Pardalzinho e seus colegas. Dois eram elfos: uma mulher carrancuda, que nunca terminava de passar manteiga num pedacinho de pão, e um sujeito de cabelos compridos usando uma tiara de bronze. Esse tinha à frente um prato cheio de verduras, que não estava se animando a comer. Ao lado estava um casal de meio-elfos, entretidos um com o outro e também sem muito apetite, ao que parecia. Faltava Theoddor – mas o primeiro relancear de olhos pelo salão bastou para vê-lo, sentado com um grupo de aprendizes mais velhos, enquanto um rapaz e uma moça se revezavam para declamar poemas em voz alta. Se é que eram poemas. Depois de algum tempo, tornou-se claro, para Cyprien, que se tratava de uma peça de teatro.
E, embora os dois tivessem boas vozes, as falas eram incrivelmente ruins. 
A comida chegou: travessas de verduras, grãos cozidos e carne já fatiada trazidas por duas mulheres. Cyprien se serviu, aceitou uma caneca de cerveja fraca e comeu em silêncio, prestando atenção à peça com as falas forçadas e praticamente sem história. Tratava-se de um mestre – de Magia, ele supôs – cujos aprendizes deviam cuidar da casa na sua ausência, mas que, em lugar de fazer uma festa ou qualquer coisa divertida, preferiam passar o tempo com um jogo de adivinhações. O jogo era pretexto para desfiarem conhecimentos sobre símbolos mágicos e a natureza do inverno. Era tão aborrecido que, a certa altura, o artista não foi capaz de disfarçar o que sentia.
-- Que cara é essa? – indagou Brenan, o menino de rosto comprido. – O pudim até que está gostoso.
-- Está mesmo. Fiz essa cara por causa do ensaio, ali no fundo. Para que estão fazendo aquilo?
-- Para a festa de solstício de inverno. Sempre tem uma peça – explicou o garoto.
-- Sim, vejo que a ideia é ser uma peça, mas parece mais uma aula ou coisa parecida. Se estão representando um grupo de jovens, de aprendizes, por que falam desse jeito? E o público, o que vai achar? Em Pwilrie, se alguém apresentar uma peça assim, pode esperar uma chuva de nabos podres – disse Cyprien, terminando a cerveja. Tinha falado em voz baixa, para ser ouvido apenas por Brenan ou, no máximo, pelas outras crianças na mesa, por isso levou um momento para ligar suas palavras àquilo que se seguiu.
Primeiro, uma espécie de vácuo, um corte brusco em meio à fala de uma das garotas.
E, logo após, a voz da mesma garota, cheia de acusação.

Imagem: Refeitório de um monastério franciscano em Katovice, Polônia (Wikicommons)

Parte 1

Parte 5

Parte 7

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 5)


A expectativa de trabalhar na Escola de Artes Mágicas manteve Cyprien acordado boa parte da noite. Era a segunda na casa de Hector, numa cama confortável, ainda que improvisada, que já levara embora a fadiga da viagem. No dia anterior, pela manhã, ele fora se apresentar ao Conselho, acompanhado por Tomas e família; fizeram muitas perguntas, mas no fim lhe entregaram uma permissão de residência e trabalho, selada com as duas trombetas de Vrindavahn e com uma assinatura cheia de volteios. Dali foram almoçar com velhos amigos de Tomas, e todos se mostraram cordiais, mas Cyprien não conseguia tirar da cabeça a ideia de que o julgavam em silêncio, por sua origem, por seu ofício, pela cor de sua pele. Tinha uma dúzia de respostas na ponta da língua para dar a quem o insultasse. O julgamento, porém, ficou apenas nos olhos das pessoas, e ele aprendera muito cedo as duas maneiras possíveis de reagir a isso. Podia sustentar o olhar, permanecer altivo, manter-se sério ou até fechar a cara, de forma a deixar claro que não estava para brincadeira; ou, ao contrário, podia sorrir, mostrando que era um bom sujeito, sem nada a esconder, e não fazia jus à fama que acompanhava os saltimbancos de Pwilrie. Na verdade, todas as pessoas de Pwilrie, quando se vinha para as Terras Férteis. Pelo que vira em Madrath, até o prefeito de sua cidade seria olhado com desconfiança ao cruzar a fronteira.
O senhor do Castelo das Águias não se mostrara desconfiado, embora houvesse demonstrado alguma surpresa ao conhecê-lo. Cyprien se inclinava a pensar que era um homem bom, ou pelo menos decente, e algo lhe dizia que voltariam a se ver dentro em breve. Quanto às pessoas a quem ensinaria malabarismo, eram uma incógnita; vira alguns jovens no Castelo das Águias, mas não sabia se eram aprendizes, e estavam distraídos e distantes demais para sequer reparar nele. Toda a experiência ficara para o dia seguinte.
Hoje.


Quando os sinos do templo de Bragi anunciaram a nona hora, Cyprien se pôs a caminho, calculando o tempo que suas pernas jovens levariam em comparação ao passo descansado da égua de Hector. O velho artesão tinha ficado em casa, empenhado em organizar o anexo que lhe servia de oficina a fim de que Tomas reassumisse seu antigo lugar. Stela preparara o desjejum para todos e fora ao mercado com duas vizinhas, cada qual com um filho pequeno e mais que dispostas a acolher e aconselhar a moça estrangeira. Por sua vez, ela parecia contente em se ocupar apenas de Aryan e das tarefas de uma dona de casa. Talvez nem mesmo ajudasse nos próximos espetáculos, isso se chegassem a fazer algum, já que o trabalho no Castelo das Águias tinha rendido algumas economias. Um inverno tranquilo, pensou Cyprien, olhos presos às torres enquanto caminhava. Um inverno sem contar cada moeda, sem ter que passar o chapéu. Até onde se lembrava, essa seria a primeira vez.
-- E o amigo, quem é? – Os portões do castelo estavam abertos, e uma carroça entrou, carregada com sacos de trigo, enquanto o porteiro assentia ao ouvir seu nome. – Ah, sim, o artista que começa hoje a ensinar malabarismo. Sabe onde deve ir?
Cyprien fez que sim e rumou pelo caminho que fizera na véspera. Com o sol da manhã, o castelo parecia mais claro, mas o espaço exterior estava quase vazio, a não ser por umas poucas pessoas ocupadas em cuidar de uma horta. Ele passou por um tanque de peixes e um cercado de aves domésticas antes de virar à esquerda e chegar à ala tomada por tijolos e operários, além de um grupo de crianças praticando malabarismo diante do galpão de trabalho. Faziam-no muito mal, mesmo o garoto louro que era o único a conseguir manter três bolas no ar; nunca haveria uma quarta se ele não aprendesse a economizar os movimentos. A menina a seu lado mal conseguia cruzar duas bolas na altura do nariz. Era a menor de todas, onze ou doze anos talvez, com traços élficos bem pronunciados, como aliás todo o resto do grupo. Cinco pares de olhos oblíquos, cinzentos ou azulados, que não tardaram a perceber a presença de Cyprien.
-- Ih, olha. – O lourinho tocou o amigo mais próximo com o cotovelo. – Acho que ele chegou.
-- Você é malabarista? – perguntou, sem cerimônia, a menina mais nova; tinha uma voz bem infantil, e saltitou sobre os pés ao falar, fazendo-o pensar num passarinho. – Se for, é o nosso novo mestre. Somos do Primeiro Círculo.
-- Sou malabarista – disse Cyprien, sorrindo para ela. – E acho que sou seu mestre, mas não sei o que significa Primeiro Círculo.
-- Aprendizes iniciantes. Que ainda não praticam Magia, só fazem exercícios preparatórios e estudam muito – esclareceu um garoto de rosto comprido. – Até o Terceiro Círculo, se é considerado aprendiz. Sairemos da escola como magos, iniciados do Quarto Círculo, mas para ir adiante precisaremos achar um mestre, ou ser aceitos na Escola de Magia de Riverast.
-- Outra das Onze Cidades, não é? Bom, eu venho do Leste, de uma cidade chamada Pwilrie – disse Cyprien. -- Não entendo nada de Magia, mas – fez um gesto, pedindo que lhe entregassem as bolas pintadas --, de arte entendo bastante, pelo menos algumas. Vi a prática de vocês, enquanto me aproximava, e vamos ter que corrigir certos problemas na base, voltar um pouco atrás nos exercícios. Se não, irão em frente cometendo erros, e logo será quase impossível progredir.
-- Mas a gente... – o de rosto longo começou, mas fechou a boca, parecendo envergonhado.
-- A gente o quê? Pode falar – Cyprien o encorajou.
-- A gente não precisa progredir na arte. Com todo respeito – acrescentou o menino. – Não vamos ser malabaristas. Isso é só para aprendermos concentração.
-- É? Como assim? – Cruzou os braços, disposto a ouvir; talvez não tivesse entendido. – O Mestre Theoddor disse que vocês fazem outros exercícios, que aprendem com os magos, ao mesmo tempo que praticam. Mas mesmo assim têm que se aperfeiçoar nisso aqui, certo?
-- Certo. Precisamos fazer isso sem pensar – disse o de cabelos louros. – A ideia é que nos concentremos tanto que não pensemos mais nas mãos. E depois não vamos precisar das mãos. Só da vontade mágica.
-- Vontade mágica? A... a Magia vai mover os objetos para vocês? – Cyprien franziu a testa; parecia difícil de crer, mas todos estavam assentindo com entusiasmo, como se o cumprimentassem por ter entendido rápido. – Querem fazer malabarismo sem usar as mãos?
-- Isso mesmo! Mestre Finn consegue – disse o lourinho. – É o mestre de Forma e Pensamento aqui da Escola. Ele ainda não dá aula para a gente; antes disso, entre outras coisas, temos de aprender a jogar três bolas sem errar.
-- Logo, progredir na arte – disse Cyprien, com alívio; tinha encontrado o fio da meada, e não iria perdê-lo. – Se têm de fazer malabarismo com perfeição, não importa se é para ser magos ou artistas, devem parar de cometer erros. E eu estou aqui para ajudá-los. Vamos lá?

Imagem: Crianças dançando em livro medieval (cerca de 1500)

Parte 1

Parte 4

Parte 6

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Um Artista no Castelo (parte 4)

O velho marioneteiro estava de costas para a porta e mostrava alguma coisa ao rapaz arruivado, que olhava atentamente para suas mãos. Assim, só o moreno viu o senhor bem-vestido entrar no galpão de trabalho, e na mesma hora assumiu uma postura defensiva. O sorriso apareceu no instante seguinte, um sorriso claro e fácil de artista, de quem depende da simpatia do público para comer. Esse rapaz deve ter passado maus bocados na vida, pensou Theoddor.
-- Mestre. – O jovem tocou o ombro de Hector, alertou-o com os olhos.
-- O quê? Ah, Theoddor! – O artesão se voltou, sorrindo, ele também, porém sem reserva. – Não imagina a alegria que o dia de ontem me trouxe! Veja, este é meu sobrinho, Tomas... Já lhe falei sobre ele, não?
-- Sim, sim! Sobrinho e aprendiz de ofício, certo? – Estendeu a mão para o ruivo, que a apertou com firmeza, a expressão séria. – É um prazer conhecê-lo. Vai ficar na cidade?
-- Ele não sabe – Hector respondeu pelo rapaz --, mas vai passar o inverno, e me dará uma boa mão na oficina. Se decidir ficar, talvez possa me auxiliar na Escola. Já o amigo dele está vindo hoje porque, além de trabalhar com fantoches, é malabarista. Ouvi, por esses dias, os aprendizes dizendo que precisavam de um.
-- Pois precisamos – disse Theoddor, e olhou dentro dos olhos do rapaz. Estavam inquietos, mas eram límpidos e sustentavam seu olhar: ele não escondia nada além da desconfiança. E, ao perceber os traços de tinta em seu pulso, Theoddor teve uma boa ideia do motivo.
-- Cyprien de Pwilrie – repetiu, ao lhe apertar a mão. – Veio de longe, Cyprien. É sua primeira visita às Terras Férteis?
-- Pode apostar – disse o rapaz, e completou com um instante de atraso: -- Senhor Theoddor.
-- Hum, bom, não vou dizer para me chamarem pelo nome, como Hector, porque vocês são quase crianças perto de nós. Mas, se é para ter cerimônia, prefiro que me chamem de Mestre. É o que sou, na Escola de Artes Mágicas... onde, suponho, você pretende trabalhar.
-- Sim, meu tio pensou nisso, mas só se houver trabalho para mim – disse Tomas, com seu jeito sério. – Se não, ficarei na oficina, em Vrindavahn, e ajudarei nos espetáculos. Não se incomode conosco.
-- Não é incômodo! Seu tio Hector é excelente artesão; combinamos que ele voltaria logo após o solstício, e se você estiver com ele será bem-vindo. Já seu amigo... Bem, malabarismo é uma das artes mais usadas para ajudar na concentração, e nossos meninos e meninas mais novas continuam precisando de um mestre. Alguém que seja paciente e bom no que faz.
-- Cyprien é muito bom – afirmou Tomas, e se voltou para o amigo. – Mostre a ele.
-- Oh, não. Isso pode ficar para... – começou Theoddor, mas se calou ao ver o rapaz moreno se pôr em movimento. Ele nunca estivera naquele galpão, mas foi direto a um canto onde ficavam algumas bolas usadas no malabarismo e, mesmo agachado, atirou cada uma para cima e as sopesou nas mãos para escolher as que lhe convinham. 


Ao se levantar – aos poucos, com movimentos fluidos como os de um gato --, já tinha começado sua demonstração, as bolas de madeira pintada saltando sem esforço de suas mãos e girando no ar, cinco seis, sete, um círculo completo que se repetiu três vezes antes que Cyprien introduzisse uma variação. Suas mãos não hesitavam, o olhar agora suavizado, atento às bolas que fazia cruzar sobre sua cabeça, passar por baixo do braço ou da perna, quicar no chão antes de retomá-la e devolvê-la ao círculo multicor que girava à sua volta, como se o artista fosse o sol. Perfeito, preciso, concentrado, pensou Theoddor. O que Camdell não poderia ter feito por esse rapaz, se ele fosse dez ou doze anos mais jovem?
-- Er... Cyprien, acho que já chega. – A voz de Hector quebrou o encanto. – Mestre Theoddor já viu que você é bom nisso.
-- Sou? – Um sorriso encurvou os lábios do rapaz, as bolas ainda no ar, os olhos voltados para Theoddor.
-- Certamente! O melhor que já vi – foi a resposta sincera. Cyprien assentiu e, a partir daí, foi retendo as bolas coloridas e as deixando uma a uma sobre uma mesinha, enquanto Theoddor voltava a falar.
-- Se quiser trabalhar conosco, e espero que queira, sua função será orientar tanto iniciantes quanto jovens que já têm alguma prática. Esses, durante o treino, vão fazer alguns exercícios propostos pelos Mestres de Magia, e você deve ser tolerante com o tempo e as necessidades deles. Pagamento, seis peças de bronze a cada quarto de lua, e todas as refeições no castelo. Temos um trato?
-- Seis de bronze, mais a comida? Nem tenho o que pensar – sorriu o rapaz. Parecia outro, mais confiante, mais aberto, mais amigável, como se mostrar o que sabia o houvesse feito baixar suas defesas. Se lhe perguntassem, Theoddor diria que tinha gostado dele.
-- Então está certo. Pode vir amanhã cedo, ao nascer do sol, se quiser tomar o desjejum; ou pela décima hora, se preferir dormir um pouco mais e só chegar para o treino. Os aprendizes serão avisados para vir à sua procura. E, Tomas, após o solstício, você é bem-vindo para se juntar a nós, na qualidade de ajudante de seu tio. O pagamento dele aumentará em três bronzes, e eu tenho certeza de que ele será justo com você.
-- Serei, sim! Vou até puxar a orelha dele como antigamente – brincou o velho.
-- Posso apostar que ele merecia – Theoddor riu junto. – Bem, tudo encaminhado. Mandem dizer se precisarem de alguma coisa.
Os três assentiram, deixando claro, pela expressão em seus rostos, que nada tinham a acrescentar para o momento. Um pouco mais e ficariam constrangidos, por isso Theoddor se despediu e deixou o galpão de trabalho. Continuou a caminhar pela ala, inspecionando as obras do anfiteatro e tomando notas para futuras providências, mas volta e meia se descobria pensando nos recém-chegados. Ou melhor, em Cyprien de Pwilrie, que na verdade não vinha de tão longe, mas cuja presença nas Terras Férteis era no mínimo inusitada.
Fosse quem fosse, ele devia ter boas histórias para contar.


*****

Imagem: malabarista, retratado no Gradual de Saint-Etienne de Toulouse, coleção Europeana da British Library.

Parte 1

Parte 3

Parte 5