domingo, 29 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 13)


Ouvindo isso, o velho marioneteiro se apressou em largar o atiçador e pegar as chaves. A porta se abriu, trazendo para dentro um vento frio e três crianças usando capas de inverno, que esvoaçaram como asas quando elas correram em direção a Cyprien.
-- Você ainda está aqui! – exclamou a menorzinha, com os olhos brilhando. – Que bom! Eu nunca iria me perdoar se não estivesse!

-- Por quê? O que houve? – Perplexo, ele olhou para Theoddor, que estava um passo atrás de Pardalzinho, ladeado por dois garotos. – Eles só querem se despedir antes que eu deixe Vrindavahn, ou...?
-- Pelo contrário: eles querem que você fique, e que volte ao Castelo das Águias – disse Theoddor. -- Mas antes vão explicar o que aconteceu e pedir desculpas. Não é mesmo, Linnet?
-- Sim! Eu, principalmente – disse Pardalzinho, em tom solene.
-- Mas por quê? O que as crianças fizeram? – Hector se acercou, curioso.
-- Trata-se da acusação que os artesãos fizeram a Cyprien. Sim, a acusação de roubo – disse Theoddor, e se voltou para o saltimbanco. – As crianças vão contar tudo, mas, para começar, quero esclarecer que elas também não conheciam as regras para usar os suprimentos do galpão de trabalho. Achavam que qualquer pessoa no Castelo podia pegá-los, e não voltaram a entrar lá depois que os avisos foram postos nas paredes. Já começou a entender?
-- Eu acho que... sim. – As palavras teceram uma teia na mente de Cyprien, aprisionaram memórias. – Quer dizer que as coisas que sumiram, que os artesãos me acusaram de ter roubado...
-- Fomos nós! Mas, como o Mestre Theoddor acabou de dizer, não sabíamos que era para anotar, e não fazíamos a menor ideia de que estavam suspeitando de você. Se soubéssemos, teríamos ido até lá e falado com os artesãos. Eu juro – disse Pardalzinho, e os meninos atrás dela confirmaram com acenos enérgicos.
-- Queríamos fazer uma surpresa... para você, mas também para todos no Castelo – explicou Brenan, o garoto de rosto comprido. – Estávamos montando uma caixa grande, que íamos pôr junto com os baús da casa da maga, na peça de solstício; de dentro da caixa sairíamos nós, vestidos como se fôssemos duendes do Reino Invisível, e faríamos uma correria pelo palco. O pessoal do Segundo e do Terceiro Círculo ia ficar sem saber o que fazer – concluiu, com uma risadinha --, mas íamos sair logo, é claro! Não queríamos atrapalhar a peça. Só aparecer um pouquinho nela.
-- E passar a lua seguinte copiando tratados de Princípios da Magia – disse Theoddor, sorrindo por trás da barba --, porque Thalia não deixaria isso barato. Mas eles decidiram que valeria a pena.
-- E ia mesmo. Mas nós nunca pensamos em causar problemas para Cyprien. Por isso viemos pedir desculpas – disse o lourinho, com as mãos para trás. – E amanhã Mestre Theoddor vai reunir os artesãos, e vamos explicar o que aconteceu e deixar claro que você nunca roubou nada do Castelo das Águias.
-- E a gente quer que você volte para lá, volte a nos ensinar malabarismo e quem sabe outras coisas, porque estamos gostando muito – disse Pardalzinho. – A gente – não só nós três, mas todo o Primeiro Círculo – a gente gosta muito de você.
-- E nós também – disse uma voz também feminina, porém mais adulta, vinda do extremo da sala. Cyprien ergueu os olhos e viu Marla de Kalket, a moça de faces rosadas, acompanhada por seus dois amigos inseparáveis: Elina, a jovem elfa que não conseguira ler seus pensamentos, e o rapaz de nariz arrebitado, Donovan. Tomas os fizera entrar em algum momento durante a fala das crianças, e o saltimbanco estava tão envolvido que nem mesmo ouvira a batida na porta.
-- Vocês aqui! – Theoddor franziu as sobrancelhas. -- Como foi que vieram, se eu trouxe o carro?
-- A pé, é claro. Na descida, andamos mais rápido que os cavalos, ainda mais nessa estrada cheia de buracos – replicou a elfa.
-- Ou não, pois acho que saímos quando o senhor ainda estava mandando aprontar o carro. Decidimos rápido – disse Donovan --, assim que soubemos o que as crianças tinham feito e que elas vinham pedir para Cyprien ficar no Castelo. Também queremos muito que ele fique. Pelo menos até o solstício.
-- Vai ficar? – perguntou Elina, sem rodeios. – Agora, que já não podem acusá-lo de roubar e mentir?
Não graças ao seu feitiço, pensou Cyprien, mas conseguiu segurar a língua e apenas olhar para ela. Com seu rosto de neve e manto ricamente bordado, a moça também lhe devia desculpas, mas, ao contrário de Pardalzinho e das outras crianças, sequer lhe passava pela cabeça pedi-las. Isso acabou, em grande parte, com a boa vontade que a atitude dos pequenos despertara nele.
-- Não sei se devo – disse, sem olhá-los, para não ver a decepção em seus rostos. – Posso provar que sou inocente desta vez, mas para mim já ficou claro: a maior parte das pessoas daqui vai sempre me olhar de lado, por tudo que eles ouviram a respeito de Pwilrie. Não só no Castelo das Águias, mas em Vrindavahn, nas Terras Férteis... Este não é um bom lugar para o meu povo.
-- Claro que é! Gostamos tanto de você! – exclamou Pardalzinho, e começou a saltitar enquanto enumerava. – Só no Castelo, tem a gente, o Mestre Theoddor, o Mestre Finn e o Mestre Camdell, e Mestra Sophia deve gostar também, mesmo sem ter falado nada. Os empregados gostam de você, principalmente a Netta, da cozinha; ela disse que você é divertido, e as moças que servem as mesas acham que é muito educado, sempre agradecendo por tudo, e o Gurion, que cuida das contas...
-- Linnet, querida, acho que Cyprien já entendeu – Theoddor interrompeu com brandura. – Ele sabe que muitas pessoas o apreciam; a questão é outra. E, Cyprien, eu gostaria de conversar a respeito, só nós dois, se não se importar em passar um pouco de frio lá fora. O povo do Leste costuma ser friorento... – Interrompeu-se, abanando a cabeça, como numa censura a si mesmo. – Ou talvez essa seja mais uma crença tola.
-- Pwilrie é muito quente no verão, e os invernos são amenos, por isso a maioria de nós estranha o clima frio. Mas eu passei os últimos cinco anos viajando pelo Norte – disse o rapaz. – O outono das Terras Férteis não é nada para quem viu a neve de Siberlint.
-- Oh, mas eu tenho uma ideia melhor! Por que não jantamos antes de vocês conversarem? – interveio Hector. – Desculpem a franqueza, mas minha barriga está roncando. E Stela fez comida para um batalhão.
-- Muito obrigado, mas nós já comemos – disse Theoddor. – E achei que vocês também tinham; peço desculpas por atrapalhar. Fico lá fora com os jovens enquanto vocês jantam.
-- Eu não estou com fome – disse Cyprien. – Posso sair com o senhor.
-- Eu também prefiro comer mais tarde. Agora, poderia levar todos vocês para conhecer a oficina – sugeriu Tomas, dirigindo-se aos aprendizes. – Já sei que alguns têm prática em mexer com fantoches, e outros vão começar na primavera. Talvez gostem de ver o que fazemos por aqui.
-- Isso! Dê a eles uns doces de amêndoas, daqueles que comprei mais cedo. Assim me livram da tentação de, amanhã, passar o dia todo beliscando enquanto trabalho – incentivou Tio Hector. – E Stela e eu vamos para a cozinha com o pequeno, e jantamos por lá, onde também está quentinho; e Theoddor e Cyprien podem ficar aqui na sala e conversar à vontade. Bebem um pouco de vinho, não bebem?
-- Hector, não quero atrapalhar... – começou Theoddor, mas se calou vendo que os outros agiam conforme a sugestão dos dois artistas. Em poucos momentos, o jovem ruivo tinha saído, acompanhado pelos aprendizes; sua mulher pôs sobre a mesa um pão de centeio, manteiga e algumas maçãs, Hector trouxe copos e uma jarra de vinho, e os dois deixaram a sala levando o bebê. Ficaram Theoddor e Cyprien, agora sentados frente a frente e pouco à vontade.
Ou talvez fosse apenas uma questão de tempo até começarem a falar.
***
Imagem: Crianças e o Flautista de Hamelin, por Arthur Rackham (1867 - 1939).

Parte 1

Parte 12

Parte 14

quarta-feira, 25 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 12)


-- Cyprien, por favor, não se precipite! – pediu Hector, olhos e tom de alarme. -- Deixe-me ir ao Castelo, falar com Theoddor, esclarecer a situação. Podemos ir amanhã, assim que o sol nascer. Eu sei que ele estará disposto a escutar!
-- E se as coisas não se resolverem você pode deixar a Escola e ainda assim ficar conosco até o final do inverno – Tomas ajuntou às palavras do tio. – Vamos fazer novos bonecos e cenários, criar novas histórias, e além de Vrindavahn podemos apresentá-los em duas ou três vilas aqui perto. Que tal isso?



-- Sim... E em cada uma vão me olhar de lado, e me acusar de ladrão na primeira oportunidade. – Cyprien se deteve, segurando a camisa que dobrava, e encarou o amigo. – Você conhece minha história, e não vou mentir: eu já roubei muitas coisas, desde uma fruta no mercado até a prataria de casas ricas, mas nunca tirei nada de alguém que tivesse me acolhido, me hospedado, feito alguma coisa por mim. Não toquei nos suprimentos daquele galpão. Quando precisei das tábuas, perguntei se podia pegar, então tiveram a ideia de preparar essa armadilha. E, apesar de terem me defendido, impedido que os artesãos me espancassem, os aprendizes não acreditaram no que eu disse. Tentaram usar Magia para ver se eu estava mentindo. Se nem eles confiam em mim, o que esperar dos outros?
Meteu a camisa na mochila, socando-a junto com o resto de suas roupas -- um pobre substituto para as caras que gostaria de esmurrar. Estavam na sala de Hector, aquecida por lenha de madeira; o jantar estava pronto, porém Stela o deixara na cozinha e viera, com o filho no colo, participar da discussão. Tinha, é claro, a mesma opinião do marido e do Tio Hector, mas por ela a tentativa de falar com Theoddor seria deixada de lado, e Cyprien começaria desde já a trabalhar na oficina. Ali não correria o risco de que voltassem a acusá-lo de roubo, e não havia magos nem aprendizes que tentassem enfeitiçá-lo.
-- Não é feitiço, meu amor – Tomas corrigiu com brandura. – Não é para dominar ou fazer mal à pessoa.
-- Não é para ler os pensamentos? Isso é dominar – replicou Stela. – Imagine se eu soubesse o que você está pensando, a todo momento; se você pensasse em outra mulher, se decidisse comer escondido aquele queijo que você adora, mas que não lhe faz bem... Acha que eu ia deixar por isso mesmo?
-- Nunca – suspirou Tomas. – Ia encher meus ouvidos, no mínimo.
-- Ou ia dar um jeito de você não encontrar a mulher, ou esconder o queijo. Stela tem razão: ler os pensamentos de alguém é dominá-lo – disse Cyprien, que continuava a guardar suas roupas. Teria que abrir mão de uma parte a fim de levar, da sua bagagem de artista, o indispensável para garantir seu sustento na viagem. E, sabendo que o tempo não lhe permitiria chegar ao País do Norte, contentou-se com a ideia de passar o inverno em sua casinha no Labirinto, o bairro destinado aos descendentes do Povo Alto após a Reconquista de Pwilrie, várias gerações atrás, como explicavam os contadores de histórias.
Com todos os problemas, e não eram poucos, que enfrentava por conta deles, Cyprien tinha muito orgulho dos seus antepassados. Vindos de um lugar misterioso – além das névoas do Mar Interior, diziam as lendas --, os primeiros a chegar eram sábios e capazes, amavam a música e a arte e estudavam as estrelas, mas também eram guerreiros que conquistaram várias cidades e as fizeram prosperar. Sinnlann, Faglan, Berlot, Pwilrie, principalmente Pwilrie, tornada capital do Povo Alto e redesenhada com ruas bem traçadas, jardins refrescados por fontes e a gloriosa Fortaleza sobre a colina. Com o tempo, a era dos guerreiros deu lugar à dos artesãos e comerciantes sagazes, que buscavam fortuna, mas faziam o possível para manter a paz – o que, no entanto, não bastou para afastar a inveja e a cobiça das cidades vizinhas. Lideradas por Altamir, a mais poderosa e única a ser governada por um rei, elas moveram guerra contra o Povo Alto, destruíram seus jardins e observatórios e os reduziram em grande parte à servidão.
Na capital, onde o poder foi devolvido aos antigos senhores – os Fundadores, como chamavam a si mesmos, embora muitos ocultassem o sangue mestiço --, os poucos membros sobreviventes do Povo Alto foram proibidos de possuir terras e de fazer parte das guildas de artes e ofícios, além de várias outras regras, parte das quais ainda vigorava. Com tantas portas fechadas, tiveram que se arranjar como foi possível, e logo ganharam fama de trapaceiros e ladrões, que os senhores ajudaram a espalhar sem se dar conta de que, fora dos muros de Pwilrie, ela se estendia cada vez mais a toda a população da cidade. Atualmente, bastava alguém dizer que vinha de lá para atrair olhares enviesados, e isso era ainda pior nas Terras Férteis do que no Leste ou no País do Norte, como Cyprien tivera ocasião para comprovar. Fora um erro, um estúpido erro pensar que poderia superar aquilo, passar por cima de uma desconfiança construída ao longo de séculos, ser aceito... Embora, é claro, em toda parte houvesse encontrado exceções.
-- No meio disso tudo, fica o meu agradecimento a vocês – disse ele, olhando demoradamente para cada um, e também para o pequeno Aryan; não voltaria a cantar para que ele dormisse, e já sentia saudade. – Aqui não deu certo para mim, mas gostei de conhecer o senhor, Mestre Hector, e de ver a família reunida. E, Tomas... Foi um prazer ser seu parceiro nestes quatro anos.
-- Mas ainda somos parceiros – disse o amigo, embora sua voz hesitasse a partir dali. – Se não vai mesmo passar o inverno em Vrindavahn, nós podemos... podemos nos reencontrar daqui a algumas luas, talvez meio ano. Ou eu posso escrever para você aos cuidados do Templo de Pwilrie e aí combinamos tudo. Ainda não sei se vou ficar aqui de vez.
-- Não há por que nos iludirmos. – Cyprien inclinou a cabeça. -- Nós dois sabemos muito bem que você vai ficar. E está mais do que certo: seu tio precisa de você aqui, e a vida vai ser mais tranquila para Stela e Aryan. E outros filhos, que com certeza vão vir. Mas isso não quer dizer que nunca mais nos veremos – prosseguiu, tentando soar otimista. – Vamos manter contato, de um jeito ou de outro, e um dia ainda vamos nos reencontrar. Só que agora, bem...
Fez uma pausa, respirando fundo, e ia voltar a falar quando uma súbita batida na porta o interrompeu. Stela o encarou com alarme, e Tomas ergueu as sobrancelhas, ao passo que o Tio Hector seguiu o que parecia ser seu protocolo nessas ocasiões.
-- Quem é? – perguntou, empunhando o atiçador da lareira.
-- Ele também se armou antes de saber que éramos nós, da primeira vez? – Cyprien sussurrou para Tomas, sem conseguir se conter.
-- Abra sem susto, meu amigo. Sou eu, Theoddor – disse a voz conhecida lá fora, e uma espécie de chilreio antecipou o que revelaria em seguida. – E aqui comigo estão certas pessoas... que têm uma longa história para contar.


***

Imagem: teatro de fantoches medieval. Manuscrito da Bodleian Library, ca. século XVI.

Parte 1

Parte 11

Parte 13

quarta-feira, 18 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 11)

-- Nem pense em lançar um encanto, em me dominar com sua Magia – tornou ele, pronunciando bem cada sílaba; Finn se viu tão perplexo que não pôde retrucar, e Cyprien se voltou para encarar os outros. – Quanto a vocês, não se preocupem mais: sua armadilha deu certo, irei embora do Castelo e da sua preciosa cidade. Só não encostem em mim. E isso inclui você e seus amigos – acrescentou, com o que Elina também baixou a mão que pretendia pousar em seu braço.



-- Mas, Cyprien, você não entendeu! Ninguém quer dominá-lo, era só... –Donovan começou a dizer, mas se calou ao ver que o outro lhe dava as costas. Theoddor esperou que Ruaridh tentasse detê-lo, ou algum dos outros, mas em vez disso se afastaram para lhe dar passagem, resmungando entre si e coçando os cotovelos enquanto ele marchava a passos largos para longe da ala. Por que isso me surpreende?, pensou, com desalento. Expulsá-lo, mandar embora a escória de Pwilrie -- era o que todos queriam desde o início.
-- Mestre Theoddor, faça alguma coisa! – pediu Marla, aflita. – Ele não pode ir embora desse jeito!
-- Melhor que vá, menina – disse Ranald. – É um ladrão e mentiroso.
-- Ninguém provou nada disso! Por favor, Mestre – insistiu a garota. – E o senhor também, Mestre Finn, explique o que ia fazer, que isso era para ajudá-lo...
-- Ele não entenderia – disse Theoddor. – Não neste momento. E nem sei se iria adiantar... se Finn ou Elina afirmassem que Cyprien falou a verdade – acrescentou, respirando fundo enquanto seus olhos relanceavam pelos rostos dos homens.
-- Mas nem vai falar com ele, Mestre? Tudo vai ficar por isso mesmo? – perguntou Donovan.
-- Ainda não sei o que vou fazer. Mas sim, pretendo falar com Cyprien. Assim que os ânimos esfriarem um pouco.
-- Tem de ser logo, antes que ele deixe Vrindavahn. Foi o que entendi que ia fazer – lembrou o rapaz, e sua boca se torceu sob o nariz arrebitado. – E ele deveria ficar até a peça do solstício.
-- Sim! Foi um compromisso que assumiu conosco – afirmou Elina, erguendo a cabeça. – E além de nós, do Segundo e Terceiro Círculos, tem também as crianças. Como elas vão se sentir, se ele for embora sem dizer adeus?
-- As crianças! Você me deu uma boa ideia – disse Finn, estalando os dedos. – Quer dizer, uma ideia para sugerir a Theoddor, se ele gostar. Venham, vamos voltar ao Castelo – acrescentou, com um gesto que incluía o amigo e os aprendizes. – De qualquer forma, está quase na hora do jantar.
-- Sim! O dia já acabou. Podem recolher as ferramentas – disse Theoddor aos artesãos, e se conteve para não acrescentar: e esses malditos sorrisos satisfeitos. Os homens se dispersaram, e ele seguiu até o refeitório ao lado de Finn, cuja sugestão, como o meio-elfo não tardou a explicar, consistia em levar alguns dos aprendizes mais novos quando fosse esclarecer as coisas com Cyprien.
-- Ele está com raiva e magoado, mas isso não tem a ver com as crianças, que o adoram e que ele sem dúvida adora – arrazoou o mago. – Talvez, se elas pedirem, ele permita que o ajudemos a provar que estava dizendo a verdade.
-- Não acho que ele concorde em passar por qualquer coisa que envolva Magia – replicou Theoddor --, e, como disse, não sei se isso iria ajudar muito. Vão continuar a hostilizá-lo de um jeito ou de outro. Mas podemos levar as crianças, para tentar mantê-lo aqui até o solstício. Ou pelo menos – acrescentou, com um suspiro – para que ele se despeça delas e aceite as nossas desculpas.
Finn concordou, a expressão grave. Também fizera algo de que se desculpar: a forma como se dirigira a Cyprien sem explicações, sem pedir permissão ou mesmo dirigir-lhe a palavra antes de quase vasculhar seus pensamentos. Não tinha sido por mal, as intenções de Finn eram sempre as melhores, mas fora uma atitude inconsequente, como várias vezes Theoddor já o vira tomar. Finn deveria trabalhar com um parceiro, pensou ele, vendo o rosto suave e contraído de seu amigo. Devia dividir suas práticas com Thalia, ou com um mestre de Magia do Pensamento tão firme quanto ela. Não pude ser um mago, mas estudei o bastante para saber que a Forma depende de uma vontade forte o bastante para ancorá-la.
Theoddor havia antecipado uma chegada sem alarde, mas as notícias voavam como águias naquele castelo: tão logo pisaram no salão principal, ele e Finn se viram cercados por aprendizes do Primeiro e do Segundo Círculo, perplexos e exaltados, perguntando se era verdade que Cyprien tinha decidido deixar a Escola.
-- Calma, crianças! Sim, ele disse isso, houve uma confusão com o pessoal que está trabalhando no anfiteatro – explicou Theoddor; pôs a mão no ombro de Linnet, a menorzinha, que balançava inquieta sobre os próprios pés, e prosseguiu em tom de confidência. – Ele saiu daqui muito ofendido, e com isso nem deve ter se lembrado de falar com vocês. Mas sei que gosta muito de todos, e por isso tive... Na verdade, foi Mestre Finn que teve essa ideia, mas acho que vai funcionar. Por que alguns de vocês não vêm comigo até Vrindavahn, e lá falamos com Cyprien e pedimos para ele voltar ao Castelo? Ao menos para a festa do solstício, quando irão encenar a peça. Acho que, se forem vocês a pedir, ele acaba aceitando. O que me dizem?
-- A gente vai! – afirmou um dos meninos, com o que os outros concordaram em coro. Alguns dentre eles, porém, se entreolharam com expressões culpadas, e o último relance de olhos foi para Linnet, que parecia – Theoddor percebeu, e ficou alerta – não apenas agitada, mas quase ao ponto de chorar.
-- Mestre, a gente não sabe muito bem o que houve – sussurrou ela, com aquela vozinha infantil. – Mas agora há pouco disseram que Cyprien foi chamado de ladrão... só por causa de umas tintas e lonas que estavam no galpão de trabalho. Isso é verdade?
-- Sim, Linnet, foi isso que aconteceu, mas ele disse que não pegou nada, e nós acreditamos – Theoddor tentou acalmá-la. – Devem ter posto as coisas fora do lugar. Não achamos que Cyprien tenha feito...
-- Não! Ele não roubou nada! – gritou a menina, e bateu com o pé no chão; Theoddor recuou, chocado, e o salão e todos dentro dele congelaram antes que Linnet retomasse a fala.
-- Cyprien não fez nada de errado, e temos que ir atrás dele agora mesmo. – Lágrimas escorriam por suas faces; ela se voltou para Brenan e os que estavam a seu lado, todos de cabeça baixa. – E eu nunca mais vou conseguir dormir... se a gente não trouxer ele de volta para o Castelo.
...

Imagem: Um centro de energia muito utilizado na Magia do Pensamento

Parte 1

Parte 10

Parte 12



quarta-feira, 11 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 10)

Foi no terceiro dia após sua visita às obras, num fim de tarde frio e ventoso em que Theoddor trabalhava no jardim de ervas. O aviso foi trazido por um adolescente, filho e ajudante de um dos pedreiros, cuja pressa em encontrá-lo e pedir ajuda demonstrava um claro senso de justiça. Pelo menos isso.


-- Mestre, está havendo uma briga séria lá no galpão de trabalho. Aquele artista de Pwilrie... ele está sendo acusado de roubo – afirmou o rapaz, sem fôlego, os olhos arregalados. – Ele diz que nunca antes pegou nada, só que o pessoal...
-- Oh, pelas joias de Freya! Será possível? – Levantou-se quase de um salto, sem ligar à dor nos joelhos. – Corra na frente, menino, e diga que estou indo! Diga que esperem por mim antes de tomarem qualquer atitude!
O garoto assentiu e disparou entre os canteiros. Theoddor o seguiu, o mais rápido possível, alarmado com a urgência e com o caminho que as coisas poderiam tomar. Os sons da briga já se ouviam bem antes de chegar ao galpão, diante do qual todos os artesãos e operários da obra estavam reunidos. Também boa parte dos aprendizes mais velhos, inclusive os Três Espertinhos – Marla, Elina e Donovan --, cuja intervenção, sob a forma de protestos e dos próprios corpos usados como escudo, era o que impedia Cyprien de Pwilrie de ser agarrado e espancado pelos homens furiosos.
Não que ele mesmo não soubesse se defender.
-- Estou avisando. O próximo que tocar em mim sai de braço quebrado – Theoddor o ouviu dizer, num tom pausado em que procurava conter os limites de sua raiva. Tinha os pés bem plantados no chão, um joelho flexionado, como se pronto para saltar; as mãos estavam abertas, e os dedos longos eram muito fortes. Isso já fora comprovado por um dos gesseiros, que estava numa ponta do grupo, com expressão dolorida, massageando o próprio braço. Theoddor passou por ele e se aproximou de Ruaridh, que já esperava encontrar ali, à frente dos acusadores, com a cara toda vermelha e os punhos cerrados.
-- Ainda bem que o senhor chegou. Eu mal estou conseguindo me segurar – bufou ele, assim que viu Theoddor. – Nós pegamos esse daí saindo com duas pranchas de madeira; não tinha registrado isso no livro, e ainda se fez de desentendido, disse que tinha perguntado ao Ranald e ele respondeu que podia levar o que quisesse! E que não sabia que devia anotar, e que era a primeira vez que tirava alguma coisa do galpão!
-- Mas eu nunca tinha pegado nada, a não ser ferramentas, que sempre ponho de volta! – replicou o saltimbanco. – Por que me acusa do que não fiz?
-- E por que você não anotou? – indagou, de braços cruzados, Ranald, um carpinteiro cuja família trabalhava havia gerações para a de Theoddor. – Eu não disse simplesmente que podia levar. Disse para fazer como manda a regra, e ontem mesmo eu me dei ao trabalho de escrever um aviso e deixar bem à vista na parede. E você tem dois bons olhos, não tem?
-- Aviso? – Theoddor se voltou para o construtor, que mordia o próprio bigode. – Não falaram com Cyprien sobre as regras, como pedi?
-- Não, mas escrevemos. Deixamos um aviso bem claro sobre o livro de registro em cada canto do galpão. Não dá na mesma? – disse o outro, em tom de desafio.
Theoddor o encarou sem saber o que pensar, depois olhou para Cyprien, ainda escudado pelos jovens aprendizes. Suas faces morenas estavam avermelhadas, mas, por baixo disso, surgira uma palidez que por si só teria sido capaz de trai-lo. Um fingidor, mortificado ao ser descoberto -- mas que, com toda certeza, não se sentira desse jeito até um momento atrás. Foi isso que fez Theoddor compreender.
Não, Cyprien não tinha roubado nada. Mas também não tinha lido os avisos.
E as leis das Terras Férteis, que os senhores do Castelo das Águias tinham feito cumprir até pelas famílias mais humildes de Vrindavahn, faziam com que os homens nem sequer suspeitassem da razão.
-- Eu... Não sabia das regras – tornou o saltimbanco, após alguns instantes, respirando fundo. – Ninguém me falou, e não... não reparei que aqueles papéis na parede eram sobre isso. Da próxima vez, prometo que...
-- E das outras vezes? – Não foi Ruaridh, nem Ranald que perguntou, mas sim o gesseiro, que segurava o braço como se estivesse numa tipoia. – E tudo aquilo que só começou a sumir depois de você estar na Escola?
-- Sobre isso, já falei: não sei de nada – disse Cyprien, voltando à defensiva; o vozerio recomeçou, mas, antes que os ânimos se elevassem demais, Finn abriu caminho e irrompeu em meio ao círculo de homens zangados.  
-- O que está acontecendo? – perguntou, olhando de um lado para o outro e depois para Theoddor. – Uma das moças da cozinha viu o garoto ir à sua procura, e você sair correndo da horta... e agora todo mundo parece em pé de guerra! Tem a ver com o Cyprien? É aquilo de que Ruaridh nos falou há dois ou três dias?
-- O quê? Você tinha falado com os mestres a meu respeito? – Cyprien se voltou para o construtor, a expressão contraída, fazendo-o parecer mais velho.
-- E se falei? Quem não deve, não teme – retrucou o outro. – Prove que não tirou nada do galpão sem avisar!
-- Prove você que tirei! – Agora, peito estufado, ele também parecia mais alto.
-- Ei, vocês dois, tenham calma. Há um jeito muito simples de resolver o impasse – disse Finn, e se voltou para os aprendizes. – Não sei como vocês não pensaram nisso.
-- Eu pensei – respondeu Elina, e suas faces brancas como neve se tingiram de um tom rosado. – E até tentei... mas não consegui.
-- Entendo. Não é simples, com a comoção. Na verdade, nem para mim – sorriu o mestre, e deu um passo em direção a Cyprien. – Mas veja, para saber se alguém está mentindo, é preciso focar na...
-- Nem ouse!
Finn se deteve em meio ao gesto de erguer a mão e arregalou os olhos. Cyprien estava em pé diante dele, o indicador apontado, uma ameaça muito clara sobre o que o aguardava se cruzasse o limite. Era apenas um saltimbanco, apenas um homem sendo acusado por muitos – mas sua voz, ainda assim, soara cheia de poder.

...

Imagem: Iluminura de códice medieval (séc. XV-XV) retratando um jardim de ervas.

Parte 1

Parte 9

Parte 11



domingo, 8 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 9)

-- Como assim? – Theoddor  encarou o homem, espantado. – Como assim, o sujeito de Pwilrie? O que o faz pensar que a culpa é dele?
-- Só pode ser! – afirmou Ruaridh, com veemência. – Antes de ele chegar, isso não acontecia. Claro, vez por outra alguém se esquecia de anotar uma peça de tecido, levava um martelo para casa por engano, mas não seguidamente, como agora. Várias coisas sumiram só neste último quarto de lua! E, se a gente não viu... 

-- Calma, homem. Muita calma. – Theoddor ergueu as mãos. – Diga, em primeiro lugar, o que sumiu. Lona e pregos, foi isso? E alguém viu Cyprien mexer nessas coisas?
-- Na nossa frente, não – admitiu o construtor, aborrecido. – Ah, já o vimos pegar ferramentas, mas essas ele pôs de volta antes de ir embora. Eram para consertar o banco da carroça do Hector.
-- E a lona e os pregos, para que seriam? Se ele ensina malabarismo e ensaia uma peça de teatro?
-- Isso é aqui no Castelo. Em Vrindavahn, tem a oficina de bonecos – lembrou Ruaridh. – Talvez ele use essas coisas lá.
-- Coisas da Escola? Hector não permitiria – disse Theoddor, e coçou a barba; aquilo lhe parecia no mínimo estranho. – E me diga uma coisa: tem certeza de que Cyprien foi avisado sobre as regras? Alguém explicou a ele que deveria anotar, lá naquele calhamaço de vocês, a retirada de qualquer material de trabalho?
-- O velho Hector deve ter explicado. Foi ele que o trouxe para cá.
-- Mas Hector não tem vindo ao Castelo. Nem o sobrinho – disse Theoddor.  – Talvez Cyprien tenha pegado alguma coisa no galpão e deixado de registrar, simplesmente por desconhecer essa prática. Isso se tiver mesmo sido ele que fez isso.
-- Se tiver? Só pode ter sido ele! – exclamou o artesão, bufando pelas narinas. – É a única pessoa nova por aqui, entrando e saindo do galpão feito um gato: mais de uma vez me virei e dei com ele lá dentro, sem ter escutado um ruído sequer. Além disso – baixou a voz, assumindo um ar cúmplice --, ele veio de Pwilrie, não foi? Aquela cidade é cheia de trapaceiros.
-- Agora você disse uma asneira! – Algo se eriçou dentro de Theoddor. – É tão absurdo como quando os elfos de família nobre fazem questão de casar entre si, achando que os outros valem menos e os humanos não valem nada. Ninguém é trapaceiro só por ter nascido em determinada cidade.
-- Mas eles são, os de Pwilrie. Todos dizem isso!
-- Eu sei, e estão errados. É injusto acusar alguém com base nessas crenças. Aliás, é injusto acusar sem provas quem quer que seja. Quanto às regras do galpão, pelo que vejo, ninguém falou delas a Cyprien.
-- Bom... É, a gente não fala muito com ele – admitiu o outro, reticente.
-- Então, devem fazer isso, ao menos para que fique informado. Mas, por favor, sem forçar, sem acusá-lo. Vai ver como tudo se resolve – disse Theoddor.
Ruaridh fez cara feia, mas teve que concordar. Logo havia se despedido e voltado ao trabalho. Theoddor suspirou e se voltou para Finn, que ouvira tudo em silêncio, de braços cruzados.
-- Década vai, década vem, e as coisas não mudam – desabafou. – Um rapaz talentoso, prestativo, simpático... Era de se esperar que tivesse feito camaradagem com os outros artistas. Mas todos desconfiam dele, simplesmente porque veio de Pwilrie.
-- Nós, não – disse o outro, mas logo um sorriso cúmplice encurvou seus lábios. – Bom, mas o fato é não somos como a maioria das pessoas, e a Escola é além de tudo um lugar de acolhida. Nem todos pensam assim, mas já é alguma coisa educarmos nossos aprendizes nesse sentido.
-- É verdade. E os aprendizes adoram Cyprien. Existe até uma espécie de disputa – riu Theoddor. – Começou com os pequenos, a quem ele ensina malabarismo, fazendo questão de tomar parte na peça. Cyprien sugeriu que aparecessem como os moradores da cidade do tal Guedésio, mas então foi a vez de os outros dizerem que não: que é preciso ter público para o espetáculo, e a vez dos menores de estar no palco chegaria quando passassem ao Segundo Círculo. Pediram que Thalia interferisse, e ela deu razão aos mais velhos; disse que as crianças fariam melhor em estudar os símbolos e aprender a tabela de equivalência. É o que estão fazendo, mas desde então os dois grupos andam meio estremecidos.
-- Mesmo? Não notei nada em meus aprendizes, só que estão entusiasmados com a peça, mas, agora que falou, já tinha percebido que os menores têm estado de cara emburrada. Até Camdell, sempre tão distraído, foi capaz de notar alguma coisa. Finn, você sabe se Linnet e Brenan estão com algum problema?, ele me perguntou. Disse que os viu cochichando pelos cantos, e que Linnet parece mais calada e mais concentrada. Ela que nunca para quieta, muito menos em silêncio.
-- Riverast terá trabalho com nossos pupilos dentro de uns anos – disse Theoddor, sem reprimir um sorriso: por mais justa que fosse a sua causa, e melhores as intenções, a fundação da Escola de Artes Mágicas representava de certa forma uma vingança.
Contra as regras excludentes, não as da Magia, mas aquelas que os mestres haviam criado no passado a fim de manter suas tradições seguras. Contra as próprias tradições, que tinham fechado tantas portas para Theoddor e outros como ele. Contra os julgamentos apressados. Felizmente, desta vez, ele chegara a tempo de evitar o pior... ou assim pensou durante os dois dias seguintes, nos quais não foi ao anfiteatro e não tornou a ver Ruaridh. Cyprien apareceu no refeitório para o almoço, um dia cercado pelas crianças, no outro acompanhado pelos que ensaiavam a peça, sempre parecendo muito alegre e seguro de si. Quem adivinharia o que estava por vir?
...
Imagem: Ferramentas medievais de carpintaria. Imagem livre, encontrada em sites educativos e Pinterest. 

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domingo, 1 de março de 2020

Um Artista no Castelo (Parte 8)


Guedésio era um velho ranzinza, cuja porta jamais se abria para quem necessitasse de abrigo ou alimento. Declarava, alto e bom som, que os pobres só o eram por preguiça, que as crianças deviam aprender desde o berço o valor de meia moeda e que cada um era o único responsável por sua própria ventura ou desventura. Tinha especial aversão pelos saltimbancos, pois não admitia que a arte pudesse servir para ganhar o pão. No inverno, quando os lagos se cobriam de gelo e todos aproveitavam para calçar patins, o divertimento de Guedésio era levar baldes de água fria até a janela do seu sobrado, de onde os despejava sobre qualquer músico ou acrobata que ousasse fazer de sua porta local de espetáculo.


As coisas iam assim quando, no seu septuagésimo sétimo aniversário -- que coincidia com o solstício de inverno --, três jovens, que ele escorraçara daquele jeito, decidiram dar-lhe uma lição. Os três, cujo delito fora apenas passar sob a janela do velho cantando uma canção élfica, eram na verdade aprendizes de uma maga poderosa, e aproveitaram sua ausência para, com a ajuda de artefatos mágicos, transformar em gelo a casa, os pertences e tudo em que Guedésio tocasse. De uma hora para outra, ele se viu envolto em gelo no lugar de roupas quentinhas, viu gelo onde deviam estar as chamas da lareira e os alimentos da despensa; foi rechaçado por seus sócios e pelos supostos amigos, e nem sequer foi capaz de tomar a sopa distribuída no templo da cidade, pois o simples toque de sua boca a convertia em gelo.
Por fim, desesperado e sem abrigo, e depois de muito vagar nos arredores da cidade, Guedésio encontrou a casa da maga, que o fez passar por vários testes e desafios antes de desfazer o encanto dos aprendizes. Com isso, o velho se tornou um novo homem, mudou seu jeito de pensar e de proceder; a partir de agora, os saltimbancos que cantassem sob a sua janela podiam esperar uma chuva de moedas no chapéu.
-- E, ao longo da peça, todos os símbolos, todos os ensinamentos. Não faltou nada – disse Theoddor, satisfeito. – Claro que ele mesmo não os conhece, foi informado pelos aprendizes, mas conseguiu encaixar tudo na história. Desenhou também os cenários, que serão móveis, com entradas e saídas, mas tudo muito simples. Um bom carpinteiro e um bom pintor terão aquilo pronto em três dias.
-- Então não vão precisar de gruas, nada disso, certo? Acho bom – disse Finn, inclinando a cabeça --, porque não dispomos de todo aquele aparato do testro de Madrath.
-- De fato – disse Theoddor. – Mas acho que Madrath não combina muito com nosso amigo Cyprien... não acha?
Tocou o pulso, aludindo às marcas que ambos tinham chegado a ver na pele do saltimbanco. Finn concordou com um gesto: sabia o que elas eram, e o que, possivelmente, significava alguém como Cyprien ter chegado em Vrindavahn com os restos de tinta no pulso. Um anseio, uma busca, um sonho que não dera certo. Ele tentaria levá-lo adiante, do mesmo jeito, noutra ocasião? Ou simplesmente redesenharia seus planos, como fizera o próprio Theoddor, muitos anos atrás?
-- Seja como for, este ano teremos uma peça interessante, não apenas instrutiva; e, se tudo correr bem, já será no novo anfiteatro. Um feito e tanto – comentou o mestre de Magia da Forma. – O Castelo está se transformando, dia após dia. O que diriam disso os seus antepassados?
-- Não sei se gostariam muito... como também não gostariam de saber que eu, o único herdeiro, não levei a linhagem adiante. Mas não estão aqui para ver. – Fez uma pausa, afugentando da memória os olhos tristes de sua mãe, a dureza das palavras de seu pai. – Pelos anos que me restam, vou seguir em frente com meu plano. E veja só! Não está valendo a pena?
Estendeu os braços na direção do anfiteatro, do qual, duas luas atrás, pouco havia além da estrutura em forma de concha. Agora estava quase terminado, e com tempo de sobra antes da festa de solstício. Claro que estavam sujeitos a imprevistos – uma temporada muito longa de chuvas, por exemplo --, mas seu conhecimento de Ciências da Terra quase permitira a Theoddor afastar essa possibilidade.
Com as bênçãos de Bragi, daria tudo certo.
Mãos às costas, seguido por Finn, que observava tudo à volta com interesse, ele caminhou ao longo das arquibancadas, indo em direção à arena onde montariam o cenário para a peça do solstício. Ali, Ruaridh, o mestre construtor, conferia algumas medidas, feições duras apertadas entre a barba e as sobrancelhas esfiapadas.
-- Mestre Theoddor. – O homem se endireitou ao vê-lo. – Fazendo uma inspeção?
-- De forma alguma. Apenas apreciando o bom trabalho. E estava comentando com Finn – prosseguiu Theoddor – que será muito bom, finalmente, vermos uma peça encenada como deveria ser.
-- Ah... sobre isso. – O artesão hesitou, cautela ou desagrado. – Posso ser bem direto com o senhor?
-- Claro que sim, Ruaridh. O que houve? Precisa de alguma coisa?
-- É, bem, vamos precisar de mais tinta, mas não é disso que se trata. O caso é que – esfregou os braços, pouco à vontade -- o pessoal está meio irritado, porque alguém vem usando as coisas do galpão de trabalho sem seguir as regras. Ferramentas ficam fora dois ou três dias; pregos e lona somem, e ninguém deixa um aviso sobre quem pegou, nem pedido para que reponham. E eu sei que o senhor não vai gostar de ouvir, mas... Tudo indica que quem está fazendo isso é o tal sujeito de Pwilrie.

Imagem: Batalha de bolas de neve retratada em afresco do Castello del Buonconsiglio, em Trento

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