sexta-feira, 27 de março de 2015

Audioresenha e Sorteio de Exemplares - até 26/04/2015



Pessoas queridas,

As lindas Allana Dilene e Fernanda Eggers, do canal Ideia Transitiva, fizeram uma audioresenha muito legal dos dois primeiros livros da série. Ao mesmo tempo, estão sorteando um exemplar de cada livro, autografado por mim e acompanhado de marcador, button e... tcharan... Caderninho temático!

A audioresenha pode ser conferida clicando aqui.

Este é o link do sorteio, que corre até dia 26 de abril no Rafflecopter.

Participem! Compartilhem! Tragam os amigos!

Conto com vocês!

quinta-feira, 19 de março de 2015

Depois da Invasão (Parte 3)

          

         A família de Ethel morava algumas casas adiante, perto do pequeno templo consagrado a Freyr, o Senhor da Colheita. Kyara as acompanhou até lá, seus ouvidos atentos à conversa das pessoas que deixara para trás. Algumas a criticavam, afirmando que não devia ter vindo ao povoado, mas várias outras diziam concordar com seu conselho para os próximos tempos. Entre esses últimos estavam Wilf e sua mulher, e não foi uma surpresa perceber que deixavam o grupo e subiam a rua atrás dela.
          - Vamos com vocês – disse o velho, quando a alcançou. – Nossa casa é perto, e talvez eu tenha uns ovos para repartir.
        - Ainda não agradecemos as galinhas – disse Anna, tentando sorrir: aquilo fora logo após a morte de Raymond. – Eu cuidei bem delas, e estavam dando ovos todos os dias. Mas agora isso acabou.
           - Ninguém mais tem animais – concordou Wilf. – Mas fui ao campo ontem e não estiveram lá. Ainda podemos ter boas colheitas no verão.
            - Se houver braços para isso – disse sua mulher.
      Ethel empurrou a porta, murmurando um pedido de desculpas pela casa. O exterior fora preservado, mas os sinais da invasão eram visíveis lá dentro, embora não houvesse manchas de sangue. Ninguém golpeado na cabeça pelo simples fato de pertencer a uma raça diferente; nenhuma donzela. No fim das contas, até que a família tivera sorte.
          Anna desapareceu assim que entraram, puxada pela amiga para um quarto no interior da casa. Kyara se sentou no único banco intacto enquanto os outros acendiam o fogo e punham água para ferver. Falaram em desenfaixar e, de novo, limpar seu ferimento, mas a ideia foi posta de lado, já que não dispunham de remédios. Então, as mulheres foram colher verduras para um caldo, deixando-a com o velho Wilf, que cruzou os braços e a fitou com o olhar franco.
         - Bem, Kyara, o que vai fazer? – indagou. – Vocês não podem continuar sozinhas naquela cabana. Que tal se ficassem conosco? Em troca de uma ajuda no campo, eu lhes dou abrigo e comida, e até algum dinheiro se conseguir vender uma parte da safra.
           - Obrigada pela oferta, mas não posso aceitar. – Um rangido na porta sublinhou a pausa em sua fala. – Não entendo de colheitas nem do campo. Só da floresta. E é lá que vou estar a partir de amanhã.
         A porta se abriu em meio à última frase. Recortados contra o céu, úmidos da chuva que continuava a cair, estavam três meninos, não exatamente crianças, porém jovens demais para ir à guerra. Kyara conhecia cada um deles e até lhes dera apelidos, mas não sabia seus nomes, nem fazia ideia de quem eram os pais. Não era o que costumava perguntar a quem surpreendia caçando clandestinamente na floresta.
              Nem mesmo quando salvava suas vidas.
              - Dama elfa. Nossos respeitos – disse o menino mais alto, fazendo uma mesura.
           - Fica quieto – rosnou outro garoto, mais robusto e de cabelos claros. – Parece um bobo falando desse jeito.
              - O que vocês querem? – perguntou Kyara, sem muita paciência.
           Os garotos se entreolharam, como se receassem falar. Momentos depois, a mãe de Ethel voltou da horta, trazendo um maço de verduras.
           - Que bom que está aqui! Junte o feno que os malditos espalharam. Hoje temos hóspedes – disse ela ao de cabelos claros.
              - Então ele é seu filho? – indagou a elfa.
             - Sim. Não o conhecia? É o mais novo, Martin. Este é meu sobrinho Lutwig – disse a mulher, pondo a mão no ombro do menor, que Kyara apelidara de Coelhinho por causa dos seus dentes da frente. – E o mais alto é filho dos vizinhos. O nome dele é Gunther, mas todos o chamam de Cotovia, porque está sempre cantando.
            - Eu sei. Mas para mim é Rouxinol e não Cotovia – replicou Kyara. A mãe de Ethel franziu o cenho, sem entender. Foi então que Martin destravou a língua.
          - Lá na floresta. Quando pusemos aqueles laços. – Ele se explicava para as duas ao mesmo tempo. – Eu disse que foi o guarda-caça que nos viu, mas na verdade foi a elfa. E também foi ela que distraiu o Barão naquela vez em que apanhamos a lebre.
          - Ele estava lá nesse dia? Isso vocês não me contaram! – exclamou a mãe, em tom aflito. – Sabíamos que Raymond era um bom homem, no máximo lhes daria um castigo brando, mas o Barão...! Nem gosto de pensar o que ele faria se os pegasse.
             - Ela nos ajudou – disse Martin. – E nos deixou ficar com a lebre, porque já tinha conseguido um cervo.
          - Um cervo? Mas... eu não entendo – balbuciou a mulher. – Está querendo dizer que ela o caçou?
           - Shhh! Ela o caçou, sim – disse, enérgico, o velho Wilf. – Caçava escondido, vez por outra, assim como os garotos. Mas nem você nem ela querem que isso vá parar em certos ouvidos.
             - Claro que não – concordou a mãe de Ethel. – Mas quem diria! Uma mulher caçando cervos!
           - Isso é comum no lugar de onde venho – disse Kyara. – Todos caçam com arcos e lanças. E dividimos tudo – não há ricos e pobres entre nós. É o que eu acho que deviam fazer por aqui.
             - Nós escutamos quando a senhora falou – disse Martin, e se agachou diante dela. – Também a ouvimos dizer que podia viver da floresta, e foi por isso que viemos. Queremos que nos leve junto quando sair para uma caçada.
            - O quê? Ah, não! – exclamou a mãe. – Um laço para pássaros ou lebres é uma coisa, mas cervos? Na floresta do Barão? Esqueçam. É perigoso demais.
           - Concordo que é perigoso, mas por causa da guerra. Não do Barão – disse Kyara, e aproveitou para dizer o que estivera entalado durante anos em sua garganta. – Essa é uma coisa que nunca vou entender. Como é que um homem pode ser dono de uma floresta? E como os outros aceitam que ele diga onde se pode ou não caçar? Eu não concordo.
          - Nem nós! Leva a gente – insistiu Martin. Seus olhos brilharam, refletindo o fogo da lareira. Isso fez Kyara se lembrar de como costumava chamá-lo.
            - Eu queria levar, Raposa Fulva – disse. – Mas com soldados e mercenários por aí, não sei se é uma boa ideia.
         - É melhor que você também não vá – disse a mãe do menino. – Veja o que fizeram no povoado... o que fizeram com nossas filhas. Você não pode correr o risco de topar com eles na floresta.
           - Pelo contrário. Eles nos pegaram porque estávamos dormindo na cabana. – Apertou os lábios, jurando para si mesma não cometer esse erro de novo. - Ela fica à vista de todos, assim como as casas de vocês. Já na floresta, eu tenho como me esconder de modo que ninguém me encontre. E é lá que minhas armas estão também.
           - Então, se é assim – começou Martin, mas foi interrompido pela entrada de um grupo de mulheres. À frente vinha a esposa de Wilf, carregando uma cestinha com quatro ovos; as outras eram gente do povoado, e entre elas estava a que primeiro dera suporte às palavras de Kyara. Vinha de mãos vazias, mas a mulher atrás dela trazia um molho de cenouras, e outra um pão redondo ao qual faltava pouco menos de um terço.
           - Está uma confusão na rua – disse ela. – Querem obrigar a mulher do bailio a repartir a comida que escondeu no porão.
            - Não podem obrigá-la – observou a mãe de Ethel, voltando-se para Kyara. – Não foi o que você sugeriu, foi?
            - Não. E eu nem devia ter dito nada – respondeu a elfa. – É um assunto de vocês e não meu. Afinal, só vou ficar por hoje.
            - Então, por hoje, vamos todos comer juntos – ofereceu a mulher que trouxera o pão. – Nós gostamos do que você disse. Achamos que está certa, por isso fomos pegar o que havia em casa e vamos dividir. Não é muito, mas ninguém vai dormir com fome.
            Kyara concordou com um aceno. Desde que decidira partir, sentia-se distanciar de tudo aquilo, mas era bom saber que as pessoas estavam colaborando umas com as outras.
                Ela lhes fora de alguma ajuda, afinal.

               (Continua)...



Parte 2

Final

domingo, 8 de março de 2015

Depois da Invasão (Parte 2)



A chuva as alcançou um pouco antes de chegarem ao povoado. Pelo caminho, viram os homens de que Anna havia falado, soldados regulares de Siberlint, mortos um ou dois dias antes em seus uniformes verdes. Kyara se agachou para observar a grama pisada ao seu redor. Ou muito se enganava ou as pegadas eram de camponeses.
- Já houve gente por aqui. Pessoas do povoado – disse, mais otimista. – Estão conseguindo ir e vir, o que é um bom sinal. Mas temos que ter cuidado mesmo assim.
Anna assentiu, em silêncio, e continuou a andar. Avançava sem dificuldade, mas às vezes fazia uma pausa, levando a mão ao ventre como se sentisse pontadas de dor. Kyara a amparou, enlaçando-a pela cintura, e foi assim que entraram no povoado.
A visão das primeiras casas bastou para que soubessem o que acontecera. Estavam arrasadas, muito mais que a cabana do guarda-caça, que pelo menos continuava de pé. Ali, no povoado, metade dos tetos fora queimada e várias casas tiveram paredes postas abaixo, revelando o interior sombrio e dilapidado pelo ataque. As galinhas, patos e outras aves domésticas que costumavam ciscar na frente das casas tinham desaparecido, restando apenas um cão, que latiu à aproximação das duas.
- Valha-me Deus! É a elfa com a filha! – bradou uma mulher, aparecendo à porta. Um velho saiu de trás da casa vizinha, seguido por uma moça que carregava um bebê. Logo, três dezenas de pessoas estavam na rua, quase todas mulheres e crianças que fitavam Kyara com um misto de surpresa e temor.
- Ela está machucada – sussurrou uma menina para a mãe. – Os soldados devem ter ido à casa dela.
- Foram mercenários – disse Anna, em voz alta. Conquistou alguns acenos de compreensão, mas isso foi tudo. Ao contrário de Kyara, que após trinta anos ainda era conhecida como “a elfa do Raymond”, a moça costumava acompanhar o pai nas visitas ao povoado, e, embora ele fosse um estrangeiro e ela meio-humana, tinham conseguido fazer algumas amizades. Era de se esperar que essas pessoas, ao menos, lhes estendessem a mão.
A não ser que estivessem em situação ainda pior.
Kyara percorreu o grupo com os olhos apertados. A maior parte das pessoas não estava ferida, mas todos tinham um aspecto lamentável, ali, sob a chuva fina, com as roupas e os cabelos chamuscados e os olhos fundos. As moças e mulheres mais novas estavam cabisbaixas, como se sentissem vergonha. Kyara franziu o cenho ao ver Ethel, a amiga de Anna, com um lábio partido e um hematoma na maçã do rosto, que ela tentava esconder no ombro da mãe. Quando tudo começou, Ethel era uma garota alegre, recém-casada com Hansel Ferreiro. Jovem e forte, ele fora convocado para as tropas do Barão, que marcharam para o Norte a fim de se juntar às de seu suserano, o Jarl de Pengell. Com sorte, podia estar vivo, mas não se achava ali para defender Ethel ou ao menos confortá-la depois que o horror acabasse. Era assim a guerra.
- Eu sinto muito. – Alguns rostos se franziram em surpresa: não se lembravam de ter ouvido a voz da elfa em outra ocasião. – Lamento pelo que aconteceu com vocês e com suas casas. Mas não podem se deixar abater – prosseguiu, sem tomar fôlego. – Há quanto tempo os soldados se foram?
- Há dois dias e meio – respondeu o velho Wilf. Ele fora o melhor camarada de Raymond, um fazendeiro já na casa dos setenta, mas ainda robusto. Por seu intermédio, Kyara soube que o povoado fora arrasado numa única manhã e os de Siberlint haviam ficado com tudo que era de valor. Ao contrário do que ela pensava, porém, não eram eles os mortos do caminho, e sim um segundo grupo, que fora surpreendido pelos homens-de-armas do Barão. Isso ocorrera muitas horas depois da partida dos invasores.
- Então o socorro veio, mas tarde demais – concluiu Kyara. – Eles fizeram alguma coisa por vocês?
- Eles nem tinham vindo nos socorrer. – Wilf torceu os lábios, como se aquilo o enojasse. – Vinham requisitar víveres, como se ainda tivéssemos de sobra. Mas é claro que teria sido preferível enviar o resto do grão e dos animais para o castelo do que perder tudo para aqueles bastardos do Norte.
- E não sobrou mesmo nada? Nenhuma comida? – insistiu Kyara.
Wilf cerrou a boca com força e olhou para sua mulher, que torcia as mãos. Outras pessoas se entreolharam com ar desconfortável, mas ninguém disse nada. Kyara cruzou os braços, impaciente, e ia repetir a pergunta quando finalmente uma mulher falou.
- Algumas famílias conseguiram esconder um pouco de comida. – O tom era seco, quase de desafio. – Quem tem, dá aos filhos. Não a estranhos.
- Nós não somos estranhos – rebateu outra mulher. – E aqui há crianças com fome.
- Quem tinha para onde ir deixou o povoado – disse o velho Wilf. Kyara assentiu, lembrando-se das pegadas que vira no caminho, perto dos soldados mortos. Deviam ser dos aldeões que tinham partido.
- Se o Barão não vai ajudar, nem há como ir embora, é preciso tocar a vida de algum jeito – disse ela, e olhou para a mulher que falara em primeiro lugar. – Você guardou comida e deve repartir com os outros. Vocês também – prosseguiu, erguendo a voz para o grupo. – Antes da guerra, aqui viviam trezentas pessoas, e sei que algumas eram pobres e outras mais abastadas. Agora há pouca gente e todos devem ser iguais. É o que têm a fazer para passar pelos tempos difíceis.
- É mesmo! – apoiou a que falara sobre as crianças. A primeira baixou a cabeça, com as faces vermelhas, enquanto os demais se limitavam a olhar uns para os outros. Kyara respirou fundo e pegou a mão de Anna, preparando-se para partir. Não parecia haver nada para elas no povoado.
- Boa sorte – disse, e começou a dar meia-volta.
- Espere! – exclamou a esposa de Wilf. – Onde vão? Também precisam de ajuda!
- Vocês já têm muitas bocas para alimentar – retrucou a elfa. – Não podem cuidar de mais duas.
- Bobagem! Raymond era guarda-caça do Barão – disse o velho fazendeiro. – Era um dos nossos, e morreu defendendo o castelo. A mulher e a filha dele são bem-vindas.
- Venham para nossa casa – convidou Ethel, timidamente. – Posso emprestar um vestido para Anna. E ainda restam verduras e nabos na horta.
- Você tem certeza? Nós poderíamos nos arranjar na floresta. Na primavera, vive-se bem com o que se tira de lá – disse Kyara, sem perceber o brilho que suas palavras provocaram em três pares de olhos.
- Não, não. Venham conosco – disse a mãe de Ethel. Anna lançou um rápido olhar a Kyara e avançou para o lado da amiga. A elfa hesitou por um momento, depois encolheu os ombros e assentiu. Seria bom, para as moças, estarem juntas e consolarem uma à outra.

(Continua...)

Parte 1

Parte 3

domingo, 1 de março de 2015

Depois da Invasão (Parte 1)

               


              Quando ela abriu os olhos, tudo era dor.
            Uma nuvem escura, como de tempestade, aparecia pelos rombos do teto, onde a palha fora arrancada. No interior da cabana, os poucos móveis e utensílios jaziam por todo lado, junto com as roupas amarfanhadas e sujas de sangue. Estava seco, à exceção de uma pequena poça no chão, ao lado do rosto de Kyara.
Um instinto muito antigo a fez tocar aquele sangue com os dedos. Era viscoso, com um cheiro familiar que ela só reconheceu quando mexeu a cabeça. A dor cresceu como uma onda a partir da nuca, enquanto do lado de fora uma voz insistia em gritar:
- Mãe! Mãe!
Com esforço, apoiando-se nas mãos, Kyara se sentou e olhou para a filha, que acabara de entrar na cabana e corria para se ajoelhar a seu lado. Quis então perguntar por que Anna (*) tinha o rosto sujo e o vestido rasgado, mas, antes que pudesse falar, a moça lançou os braços ao seu redor e irrompeu em soluços.
- Você está viva, mãe. Eles foram embora – disse, e repetiu como se não acreditasse. – Eles foram e deixaram você viva.
- Sim, minha querida, não chore – sussurrou Kyara. Ainda não se lembrava de tudo, mas podia perceber o essencial, principalmente o que tinham feito com sua filha. Isso a fazia querer consolá-la, esquecendo de si mesma e de sua dor para embalá-la como a uma criança. Foi a própria Anna que, por fim, notou o ferimento em sua cabeça.
E, enquanto ela o lavava e enfaixava, Kyara começou a se lembrar.
Eram vários homens, soldados ou, provavelmente, mercenários a serviço de Siberlint, a cidade do extremo Norte que declarara guerra a Pengell. Quatro noites atrás – nem uma Lua transcorrera desde a morte do seu Raymond – eles tinham invadido o lar do antigo guarda-caça, e ali ficaram durante todo esse tempo, brigando, jogando dados e se encharcando com o vinho ordinário que tinham trazido. A cabana fora dilapidada, bem como as reservas de comida, mas aquilo não foi nada perto do que fizeram às mulheres. Anna, principalmente, que era jovem e meio-humana, com o corpo cheio de curvas que enchiam os olhos daqueles homens brutais. Que um corvo os arranque, pensou Kyara, cerrando os dentes e as mãos.
- Fique parada. Não vai demorar. – Anna atava a faixa em torno de sua cabeça. – Pena não termos nada com que fazer um remédio.
- Por que eles me deram essa pancada? Disso não consigo lembrar.
- Por nada. Pura maldade – disse a moça. – Foi aquele meio vesgo, que cuspia por todo lado. Quando estavam saindo, cuspiu também em você e a acertou com o cabo da lança. Falou: “Pra você, elfa maldita!” ou coisa assim. Você caiu e eu comecei a gritar, mas me arrastaram para fora. Tinham a intenção de ir até o povoado e queriam que eu os guiasse, além de servir de refém. Mas mudaram de ideia quando viram alguns soldados de Siberlint mortos pelo caminho.
- E para onde foram então?
- Não sei. Mas desistiram do povoado, pois acreditam que esteja defendido pelos homens do Barão. Eu duvido: para mim todos os homens foram mandados como reforço a Pengell ou estão no castelo, e a maioria deve ter morrido assim como o pai. Mas é claro que não ia dizer isso.
- Claro que não. Você é esperta – disse a mãe, sentindo o orgulho assomar apesar da dor. Anna sorriu com amargura e não disse nada. Lá fora, a trovoada rugiu, a tarde cada vez mais abafada sob as nuvens. Logo choveria.
- Temos que consertar o teto. – Kyara olhou para cima, depois ao redor. – Temos que fazer tanta coisa. Nem sei por onde começar.
- Acho que devíamos ir até o povoado – disse Anna. – Ver como está, saber o que houve. Eu teria ido se não fosse a preocupação com você.
- Por quê? Ninguém veio saber o que houve aqui – resmungou a elfa. – E se o lugar estiver ocupado por homens de Siberlint?
- Observamos de longe. Você sabe como ir sem ser vista – respondeu a filha. – Se houver invasores no povoado, voltamos e nos escondemos na floresta. Se não, vamos tentar ficar por um tempo na casa de Ethel ou na do velho Wilf. Ele era amigo do pai – acrescentou, vendo Kyara franzir o cenho. – E, de toda forma, será melhor ficar lá do que aqui. Não temos comida, e a cabana é visível para qualquer um que se afaste cem passos da estrada.
- Então a floresta seria melhor. Mas você tem razão. – Kyara apertou os lábios. – Talvez, no povoado, tudo esteja bem e possamos ter alguma ajuda. Você precisa de roupas e... bom, algum tipo de ungüento – completou, desviando o olhar do vestido de Anna. De todas as marcas da violência, nenhuma era mais difícil de encarar do que aquelas manchas de sangue.

*****

Continua... 

(*) Para os não-familiarizados com a saga: esta não é Anna de Bryke, protagonista dos romances, mas sim sua mãe, filha de Kyara e Raymond, que tinha o mesmo nome. 

Parte 2