domingo, 26 de março de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 6)




Fosse por sua própria vontade ou pela insistência geral, Tina finalmente decidiu me fazer um pouco mais de companhia. Juntos, fomos até a porta para nos despedir dos outros, e ali ficamos mais alguns momentos, olhando, ora para Nayla e Cassius, que subiam com uma lâmpada, ora para Aymon e Thierry, que seguiam em direção às luzes da Cidade Baixa. Nem bem tinham voltado as costas e já estavam rindo, esquecendo-se da preocupação que deveriam demonstrar por Olivier. Imaginei a reação de Nayla se viesse a descobrir a trama. Ela havia jurado que não perdoaria mais nenhuma mentira de Thierry.
-- Você faria isso comigo? -- perguntou Tina, inesperadamente, fazendo-me estremecer. Olhei-a, um tanto incerto quanto a haver compreendido, mas a franqueza em sua expressão acabou com todas as dúvidas. Ela percebera muito bem o que havia acontecido.
-- Não, amor. -- Suavemente, puxei-a para mim, ao mesmo tempo em que fechava a porta. -- Eu não sou perfeito, é claro, mas não enganaria você dessa maneira. Agora mesmo estava pensando no que Nayla faria se descobrisse tudo. Você sabe, ela disse que...
-- Ah! Então, seria esse o motivo para não me enganar? Você mentiria, se soubesse que eu não ia descobrir?
-- Oh, não! Não é nada disso! -- protestei, sentindo-me ao mesmo tempo estúpido e irritado. Tina me olhava sorrindo, mas com um certo ar de vitória. Era como se, havendo me apanhado em falta, condescendesse em me perdoar. Naquele momento, acho que não teria me importado se ela fosse embora.
-- Não tenho nenhuma razão para mentir -- resmunguei, por fim. -- Se eu quisesse sair, sairia, não me daria ao trabalho de inventar desculpas. Mas acontece que eu não queria encontrar ninguém além da minha namorada.
-- Que sou eu -- disse Tina, suavemente.
-- Sim, que é você -- concordei, sentindo minhas defesas caírem por terra. Tina lançou os braços sobre os meus ombros, olhou-me nos olhos, sorrindo, dessa vez, com menos segurança. Ela também não sabia por onde começar.
-- Cyprien -- disse, quase num sussurro.
-- Tina -- murmurei, e como não me ocorressem mais palavras acabei por beijá-la. Não foi um beijo muito longo, mas foi dos bons, e outros se sucederam sem intervalo, enquanto, pouco a pouco, nossas mãos adivinhavam os contornos do corpo do outro. Ainda não era nada de mais -- nada que já não tivéssemos feito, é verdade que em raros momentos, ocultos pelos becos do Labirinto -- mas sabíamos que desta vez podíamos ir em frente, e essa simples ideia fazia crescer em nós tanto o medo quanto o desejo.
Bem devagar, com as pernas e as mãos tremendo, fui conduzindo Tina para as almofadas, e reclinei-me sobre ela enquanto nos beijávamos. Dali ao inexplorado, era apenas uma questão de instantes. Ao se dar conta disso, o corpo dela estremeceu entre meus braços, e eu a beijei com mais vontade ainda, desejando, com toda força, que ela confiasse em mim e conseguisse vencer o medo. Talvez assim eu fosse capaz de agir com segurança.
-- Não fique assustada -- sussurrei, junto ao seu ouvido. – Não vou fazer nada que você não queira. E você também não precisa fazer nada... Se não tiver vontade -- acrescentei, o mais rápido que pude.
-- Eu sei. E foi muito bom você ter falado, mas acho que podemos ir em frente. Eu estou tranquila. Pelo menos até agora.
Sorriu, tentando me fazer crer que dissera a verdade, ou talvez procurando convencer a si mesma. Àquela altura, eu já me livrara das sandálias e da camisa, entrelaçara-me no corpo de Tina, envolto num monte de saias que iam subindo cada vez mais.
E foi então que a senti hesitar.
-- Cyprien -- disse, os olhos inquietos. -- Você ouviu esse barulho?
-- Barulho? Qual? -- fiz eu, e ergui a cabeça, tentando apurar o ouvido. Tudo que escutei foi o vento soprando de leve através da janela.
-- É a brisa da noite -- concluí. -- Nada mais.
-- Não, não, havia mais, sim. Alguém falou... Escute!
-- Oh, Alfonz! -- soou então, claramente, a voz de Mandol. Tina e eu nos entreolhamos, depois sorrimos, eu meio sem graça, como se devesse ter previsto a interrupção. O que mais poderia esperar, com aqueles vizinhos?
-- Quer que eu feche a porta?
-- Não, está bem assim. Está fazendo tanto calor! Seu cabelo está todo molhado.
-- Eu sei. Foi por isso que tirei a camisa. E se quiser fazer o mesmo...
-- Oh, não -- murmurou Tina, abafando um riso nervoso. -- Quer dizer, sim, mas espere um momento. Vá com calma. Deixe eu ficar um pouquinho só abraçada com você.
-- O tempo que quiser - disse eu, tomando-a nos braços. Mais uma vez, o vento trouxe os sons da casa vizinha, embora não fosse mais a voz de Mandol e sim uns ruídos estranhos que procurei ignorar. Suave, o corpo de Tina se moveu ao meu encontro, peito contra peito, ventre contra ventre, curvas e ângulos se encaixando uns aos outros em harmonia. Respirando com força, beijei-a, e estava para desatar os últimos laços quando escutei o grito:

-- CYPRIEN!
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quarta-feira, 22 de março de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 5)

   

       -- É injusto, mas sempre foi assim -- disse Thierry. -- Desde a Reconquista, não temos nenhum direito, a não ser o de estar vivos.
      -- E mesmo esse gostariam de nos tirar -- ajuntou Nayla. -- Por isso, temos que estar preparados para o pior.
      -- É verdade -- disse Cassius. -- Essas coisas acontecem o tempo todo. Ele é seu vizinho, eu sei, e você tem pena... Mas... Bem, acho que não adianta chorar pelo que não tem remédio.
      -- Mas é claro que tem! -- disse Tina, com paixão. -- O remédio é protestar, é lutar por nossos direitos, como queria Haney o Audaz. É isso mesmo! -- acrescentou, vendo que o tecelão abanava a cabeça. -- Se todos tivessem ajudado, aposto que ele teria conseguido devolver o poder ao Povo Alto!
      -- Como? Ele morreu, Tina -- disse Thierry. -- E o seu pai, que nunca fez nada de errado...
      -- Morreu junto com ele, eu sei. -- À luz do fogo, seu rosto parecia moldado em argila. -- E se quer que eu diga, tenho muito orgulho dele, justamente por causa disso. Ele não conseguiu nada, mas morreu lutando. Não se conformou. E, se houvesse mais gente como ele, na certa as coisas não estariam como estão agora.
      -- Aposto que sua mãe não pensa assim -- disse eu, olhando-a nos olhos.
Pega de surpresa, Tina mordeu os lábios, fitando-me como se eu lhe houvesse posto o dedo na ferida. Ela ouvira muitas vezes, com certeza, a mãe se lamentar pela sorte de Elias, pela morte que jamais perdoara a Haney, como se este houvesse feito mais do que atiçar uma chama já acesa. Talvez já tivesse mesmo ouvido o que eu ouvira de Thespio, naquela tarde, a seu próprio respeito. Uma moça excelente, mas rebelde, inconformada como fora seu pai. Já não restava nenhuma dúvida do que, para sua mãe, representava um sonho impossível.
      -- Você não acredita. -- Foram só palavras, mas senti claramente a distância que crescera entre nós. -- Você também vai se contentar, a vida toda, em ficar de braços cruzados.
      -- Eu não disse isso. Disse apenas que sua mãe deve temer por você. E também não pretendo ficar de braços cruzados -- acrescentei, sem refletir. -- Eu não faria uma revolução, ao menos não agora, mas concordo que devemos lutar por nossos direitos. É verdade que ainda não sei como -- confessei, vendo que todos me fitavam --, mas creio honestamente que existem outros meios.
       -- Que meios, Cyprien? Só mesmo pelas armas -- disse Thierry. -- Nós não votamos, não temos representantes no Conselho, não podemos ter propriedades nem entrar nas guildas. O que mais nos resta fazer?
       -- Ora, não sei! Alguma forma de protesto, talvez.
       -- Quem sabe bruxaria -- brincou Aymon. -- Quem sabe se aquela poção que Rowenna quer dar a Édobec vai fazê-lo desaparecer numa nuvem de fumaça.
       -- Que poção? - perguntou Tina, sem dar tempo ao meu desesperado pedido de silêncio.
       Aymon resumiu a história como pôde, salientando, justiça seja feita, que a poção diminuiria a dor, mas não os ferimentos de Édobec; no entanto, para Tina, aquilo foi o suficiente, e não tardei a ouvir de seus lábios aquilo que temera desde o princípio.
       -- Oh, Cyprien, o que está esperando? Vá logo falar com Rowenna! Se ela chamou você, é porque precisa da sua ajuda!
       -- Isso mesmo, Cyprien -- apoiou Nayla.
      -- Espere aí! Como, “isso mesmo”? -- fez Thierry, com olhar incrédulo. -- Está mandando nosso amigo arriscar o pescoço?
      -- Ora, não deve haver perigo. Rowenna sabe o que faz.
      -- E ela nunca preparou uma poção em casos como esse -- lembrou Tina. -- Deve haver uma razão para que esteja ajudando o Édobec.
      -- Sim, mas onde é que o Cyprien entra nisso? -- tornou o músico. -- Ela prepara a poção, e ele a faz chegar até o sujeito? Lá, na frente de toda a cidade?
      -- É um risco muito grande - disse Aymon.
      -- Calma! Não sabemos se é essa a ideia de Rowenna -- disse Cassius, muito razoavelmente. -- Se for, ela deve ter uma forma de proteger também o Cyprien; e se não tiver, bem, ele sempre pode se recusar a cumprir a tarefa, não é verdade?
      Assenti, olhando para Tina. Ela engoliu em seco, fitando-me com uns olhos cheios de ansiedade. Com certeza estava dividida entre o temor por mim e o desejo de que eu fizesse alguma coisa por Édobec. Era mais ou menos como o que eu sentia em relação a mim mesmo.
      -- Vou falar com Rowenna. -- Era o primeiro passo, e era seguro, por isso me senti um pouco melhor. -- Ainda não pude encontrá-la, mas ela deve voltar ainda hoje. Então, vou saber quais são os seus planos. Talvez o que ela tem em mente seja menos arriscado do que parece.
      No fundo, eu não via grande possibilidade de que assim fosse, mas a resposta pareceu contentar a todos, e ao menos garantiu algumas horas de paz até o fim da noite. Uma nova rodada de vinho, acompanhada pelas salsichas, serviu para relaxar a tensão, e logo estávamos rindo e dizendo asneiras como de costume. Aymon ficou ligeiramente bêbado e se pôs a declamar poesia, tendo ao fundo os sons meio incertos da flauta de Thierry. Diante da cena, tive sérias dúvidas sobre o sucesso do encontro na Cidade Baixa, mas, conhecendo bem seus limites, os dois não beberam nem mais uma gota dali para diante. Meia hora depois, pudemos então fazer música de verdade -- e senti minhas esperanças crescerem ao ver a emoção e a ternura contidas no olhar de Tina. Ela parecia se encontrar em cada uma das minhas canções.
      -- E agora é a minha vez -- disse Thierry, pondo a flauta de lado. -- Cyprien fez uma boa tentativa, mas a noite não pode acabar sem que vocês ouçam um verdadeiro cantor.
      -- Verdadeiro e muito modesto -- rebati, passando-lhe o alaúde.
Thierry afinou duas cordas, limpou a garganta e ia começar a cantar quando alguém bateu repentinamente à porta. Esperando ver um dos vizinhos -- e fazendo votos para que não fosse Rowenna --, pedi à pessoa que entrasse, e logo a inesperada visita se revelou como um garoto de doze anos, vizinho de Thierry numa das ruas mais altas. Que eu me lembrasse, ele jamais viera à minha casa, e não pude achar nenhuma razão para que estivesse ali até perceber o olhar que trocou com o músico. Depois de ver aquilo, até um tonto haveria concluído que se tratava de um cúmplice.
      -- Thierry, vieram avisar que o seu tio bebeu um pouco demais, numa daquelas tavernas do porto. Ele está sem conseguir voltar para casa, e a sua mãe pediu que você fosse buscá-lo; mas é melhor levar um amigo, porque parece que ele não está podendo nem levantar.
      -- E essa agora! - exclamou Thierry, fingindo-se contrariado. -- Bem, pessoal, sinto muito, mas tenho que ir. Não posso deixar o velho Olivier numa encrenca como essa.
      -- Não quer que eu vá junto? - perguntou Nayla. -- Não é para levar mais alguém?
      -- Sim, amor, mas é melhor que seja um homem, para ajudar a carregar meu tio. Que tal você, Aymon? Cyprien é o anfitrião, não pode sair, e quanto a Cassius... Bem, a ele eu queria pedir mais uma vez o favor de acompanhar minha garota. Você pode fazer isso, Cassius?
      -- Mas é claro -- murmurou o tecelão.
      -- Não é preciso -- acudiu Nayla. -- Cassius, você mora logo ali adiante, e eu quase às portas da Fortaleza. Não faz sentido você andar tudo aquilo para me levar.
      -- Faz, sim. Você sempre pode topar com alguém indesejável pelo caminho.
      -- É verdade, Nayla -- disse Aymon. -- A gente não pode confiar em todo mundo. Nem mesmo no Labirinto.
      -- Eu posso ir com você -- disse Tina, depois de alguma hesitação. -- Subindo aqui pela rua da esquerda, nós...
      -- Oh, não! Você pode ficar um pouco mais -- apressou-se Nayla a dizer. -- Cassius não deixaria que fôssemos sozinhas; e, quando você for, garanto que Cyprien vai ser gentil o bastante para acompanhá-la.
      -- Isso mesmo, Tina. Ainda é cedo para todos irmos embora -- ajuntou Thierry. -- Além disso, se esperar mais um pouco, pode ser que você encontre Rowenna. Você não está curiosa para saber dos planos?
      -- Ah, sim, é claro que estou -- disse Tina, olhando de soslaio para mim. -- Só não sei é se devo... se nós dois... Bem... Você entende, não entende, Cyprien?
      -- É claro, bela -- respondi, com a voz mais suave que pude. -- E deixo a seu critério ficar ou não... Embora, é claro, eu prefira que você fique, ainda que seja apenas para conversarmos um pouco mais.
      Falei, e sorri candidamente, para não demonstrar o meu verdadeiro desejo. No fundo, o que eu queria era abraçá-la bem apertado e não soltá-la até o dia seguinte.
      Mesmo que não fizéssemos amor, eu queria passar aquela noite com uma menina que gostasse de mim.

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quinta-feira, 16 de março de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 4)



-- Oi, rapazes! Desculpem a demora -- disse Nayla, dando-me um leve beijo na face. Sem uma palavra, Cassius pousou uma das cestas no chão, estendendo a mão livre para mim e depois para o músico. Perguntei como andavam as coisas, e ele sorriu, mas seu sorriso foi tímido e muito breve. Tão breve quanto o instante entre minha pergunta e o beijo de Nayla e Thierry.
-- Sentiram falta de nós no mercado -- disse ela, assim que recobrou o fôlego. -- Queriam a todo custo que eu dançasse, mesmo sem música. Por que não apareceu? Eu fiquei esperando você para fazer as compras.
-- Bom, eu estava muito cansado, e o dinheiro estava com você. Mas de qualquer jeito você teve companhia, não teve?
Isso olhando para Cassius, que ficou ainda mais sério e baixou a cabeça. Por sua vez, Nayla pareceu ter ficado ofendida, e, antes que eu me visse envolvido em mais uma discussão, achei melhor sugerir que todos entrássemos. Nada como um bom vinho e almofadas para apaziguar uma briga.
-- Ah, que delícia! - exclamou Nayla, aninhando-se no tapete. -- Como eu queria ter uma casa só para mim! Na minha, quase tenho que expulsar uma das crianças para me sentar.
-- Já disse várias vezes para você vir morar comigo -- replicou Thierry. -- É verdade que teríamos que viver com minha mãe e meu tio, mas sempre é melhor do que aturar quatro irmãos menores.
-- Sim, mas, nesse caso, como ficaria a minha mãe? Meu pai é um inútil, não faz nada a não ser filhos, e ela precisa de ajuda. E não falo só do dinheiro, mas de quem dê uma mão com a casa e com as crianças. Não fique com essa cara, Thierry. Você mesmo vive dizendo que só não dá o fora por causa da sua mãe.
-- Mas que cara eu fiz? Eu concordo com você. Todo filho tem a obrigação de cuidar dos pais, quando eles ficam velhos. Não é mesmo, Cyprien?
-- Claro -- respondi, por entre os dentes cerrados. Em meus pensamentos, vira surgir a imagem de minha mãe, uma imagem imprecisa, apagada, não só pelo tempo que decorrera desde a sua morte, mas também pelo fato de minhas memórias datarem de quando eu era muito pequeno. Tinha apenas quatro anos quando ela se fora. Ainda assim, eu me lembrava de ter desejado ardentemente crescer rápido, quando então mataria meu padrasto e cuidaria de minha mãe até o fim da vida. Infelizmente, não fui capaz de realizar nenhum desses desejos.
Respirei fundo, tentando afastar a dor e o vazio. Lembranças tristes não são boa companhia para ninguém. Além disso, eu não queria parecer abatido diante de meus amigos, e menos ainda de Tina, quando ela finalmente aparecesse. O que teria acontecido para fazê-la demorar tanto?
-- Não, eu não falei com ela -- disse Aymon, a quem interpelei assim que o vi cruzar a porta. -- Passei em frente à casa, e as luzes estavam acesas, mas achei que fosse a mãe ou a prima dela. Na verdade, eu pensava que Tina fosse chegar antes de todo mundo.
-- Tem certeza de que a avisou? -- perguntou Nayla. -- Thierry está sempre se esquecendo de me dizer as coisas.
-- Sim, mas isso é por causa do hábito. -- Não seria eu a falar das outras razões. -- Tina e eu estamos juntos há pouco tempo, e eu fiz questão de ir lá, ontem à noite, para convidá-la. Só não lhe disse que não íamos sair, porque também não sabia, mas de qualquer jeito ela já devia ter aparecido. Se não chegar na próxima hora, acho que vou dar um pulo até a casa dela.
-- Calma, homem! A noite é uma criança! -- riu Aymon.
-- E o meu estômago não espera! Que tal a gente provar logo essas tortas?
Naturalmente, a ideia partiu de Thierry, mas os outros aderiram de imediato, e eu mesmo tratei de acender o fogo e preparar a grelha para as salsichas. Sobre a mesa, além das tortas, havia queijo, pão e os pastéis trazidos por Aymon, e o vinho fora temperado com ervas e canela. As taças ficaram vazias em poucos instantes, e eu ia enchê-las de novo quando, de repente, a porta se abriu, proporcionando-me o prazer e o alívio de ver entrar minha namorada.
-- Tina! Até que enfim! Cyprien estava indócil à sua espera -- disse Nayla. -- Ele já estava até pensando em subir para procurar você.
-- É mesmo? Bom, me atrasei para sair -- disse Tina, contrafeita. Avancei para beijá-la, e ela correspondeu, mas seus lábios estavam tensos, e as mãos pareciam gelo em torno de minha cintura. Enlacei-a, tentando transmitir segurança, enquanto a fitava intensamente em busca de respostas.
-- Sinto muito pelo atraso -- disse ela, por fim, forçando-se a sorrir. -- Espero que isso não tenha estragado os seus planos.
-- Ah, não! Nós já tínhamos decidido ficar por aqui mesmo. E também mal começamos a comer alguma coisa. Quer uma taça de vinho? Todo mundo gostou muito da minha receita.
-- Quero, sim. Obrigada.
-- Acomodem-se, vocês dois -- ofereceu Nayla. -- Deixem que eu acabo de servir o vinho.
-- Isso mesmo, Tina. Sente-se aqui comigo -- disse eu, reclinando-me sobre as almofadas. Tina fez menção de aceitar o convite, mas, logo em seguida, retraiu-se, recuando na direção da lareira acesa. Vi a tristeza brilhar em seus olhos à luz das chamas. Foi nesse momento que decidi ir direto ao assunto.
-- O que aconteceu? -- Era uma pergunta de todos, mas ninguém mais a teria feito. -- Não estou falando do atraso, mas dessa cara triste com que você chegou. Algum problema em casa? Sua mãe disse alguma coisa quando você saiu para me encontrar?
-- Ah, sim. -- Tina sorriu levemente, avançou um passo, roçando a ponta dos dedos em minha mão estendida. -- Ela disse para eu me divertir e deixar de sonhar com o impossível. E também para não incomodar você com as minhas asneiras, pois você é uma joia de rapaz e ela não me perdoaria se eu o deixasse escapar. Foi isso que ela disse quando eu estava saindo.  
-- E olhe que não foi pouco -- disse Thierry, tentando fazer graça. -- Se me elogiassem assim, acho que eu até ficaria vermelho.
-- Não ligo para os elogios -- falei, sem nenhum esforço, porque dessa vez não era mentira. -- Só quero saber por que sua mãe disse todas essas coisas. O que significa, por exemplo, “sonhar com o impossível”? Não deve ter nada a ver comigo... Ou será que tem?
Falei, e no instante seguinte já me arrependera, pois aquele era um assunto que só dizia respeito a nós dois. Felizmente, minha suposição foi logo descartada -- e o melhor de tudo é que Tina, para provar que não era eu a causa de sua tristeza, aconchegou-se ao meu lado nas almofadas, beijando-me com os lábios macios aos quais me habituara na última lua. Passei suavemente os dedos em sua face. Ainda era possível sentir o rastro deixado pelas lágrimas.
-- Vamos, bela. Diga o que houve -- pedi, quase num sussurro. -- Aqui somos todos seus amigos.
-- É verdade, Tina. Talvez possamos ajudar -- disse Cassius, muito sério. Surpreendi-me por ser ele o primeiro a se acercar de nós. Logo depois, Nayla e Thierry também vieram para mais perto, e por fim Aymon se sentou diante de Tina, completando o círculo de olhos e ouvidos atentos. Então, vendo que não podia nos deixar de fora daquilo, Tina suspirou e disse:
-- Édobec.
-- O quê? -- fez Nayla, franzindo a testa.
-- Édobec -- esclareci, quase conseguindo compreender tudo. -- É aquele velho que roubou os legumes no verão passado. Tina deve estar triste por causa da pena que ele recebeu.
 -- É isso mesmo, Tina? -- perguntou Cassius, não muito convencido.
-- Também. Ou talvez não, porque, quando ele foi preso, não fiquei triste e sim revoltada. Como é que podem deixar uma pessoa na prisão, durante um ano inteiro, por ter roubado comida para dar aos filhos? Não, não existe justiça, para nós, nesta cidade.
-- Também acho -- disse eu. -- Mas não deve ter sido isso que fez você chorar.
-- Não, realmente não foi -- admitiu ela. -- Na verdade, foi o outro lado da história que me deixou triste. Vocês devem se lembrar de que Édobec é nosso vizinho de rua...
-- É mesmo! -- exclamou Aymon.
-- ... E assim, minha mãe e minha prima se dão com a mulher dele, e eu mesma, numa certa época, fui muito amiga dos filhos. Pois bem, eles passaram todo esse ano com dificuldades, mas ultimamente falavam com uma certa esperança, fazendo planos para quando Édobec saísse da prisão. O genro dele falava em voltar para as estradas, o filho estava querendo se estabelecer noutra cidade, enfim, todos eles pensavam em deixar este ano para trás e recomeçar tudo. Mas hoje, depois de ter saído a sentença, a mulher e a filha dele entraram em desespero, e então começaram a ir de casa em casa, chorando e pedindo aos vizinhos que fizessem alguma coisa. Foi de cortar o coração, aquelas duas infelizes, gritando, se desgrenhando, dizendo que o pai ia morrer, que o marido ia ficar aleijado por causa das chicotadas. E minha mãe e as outras vizinhas pedindo calma, tentando consolar as duas, mas no fundo sabendo muito bem que talvez estivessem certas. Ele pode não suportar... É um homem de quase sessenta anos... E por causa de uns malditos legumes, ele pode... Pode...
Parou, lutando contra as lágrimas que voltavam a lhe apertar a garganta. Sem poder fazer mais nada, abracei-a, esperando que desabafasse, mas ela respirou fundo algumas vezes e conseguiu se dominar. Aymon foi buscar um copo d’água, e, enquanto Tina o bebia em pequenos goles, procuramos dizer alguma coisa que servisse para confortá-la. 

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sábado, 11 de março de 2017

Além de Agora: um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 3)



Duas horas mais tarde, o mestre finalmente se deu por satisfeito, e nós lhe prestamos um último favor levando as crianças à fonte. Os dois ainda eram pequenos o bastante para tomar banho em público, mas, naturalmente, também para brincar com a água, por isso Aymon e eu acabamos nos molhando um bocado. Quando voltamos, havia um lanche à nossa espera, preparado pela mulher de Thespio -- e foi assim, entre a conversa leve e a boa comida, que acabei por me esquecer completamente de que devia voltar à cidade.
-- Maldição! -- exclamei, assim que me dei conta. -- Até que horas Hubert fica na loja?
-- Até as cinco, acho eu. Por quê? Precisa trocar dinheiro?
-- Preciso, mas parece que vai ter de ficar para amanhã. O que você combinou com Thierry? Eu vou ter que pedir emprestado se formos jantar na taverna.
-- Oh, não! Não há nenhum perigo -- riu Aymon. -- Nós só pensamos em nos reunir na sua casa, como fazemos sempre. Ninguém está com dinheiro para um jantar de verdade.
Assenti, lamentando não ter me lembrado de ir trocar as moedas, mas ao mesmo tempo satisfeito com aquele arranjo. Eu era o único de meu grupo a morar sozinho, por isso as reuniões aconteciam muitas vezes em minha casa; mas, como também sou um camarada de muita sorte, meus amigos passaram a preferir as tavernas pouco depois de eu ter me interessado por Tina. Assim, nunca houvera um pretexto para que ela me visitasse, e muito menos para ficarmos a sós -- o que, eu tinha certeza, seria um momento inesquecível para nós dois.
Preparei-me com todo cuidado para recebê-la. A casa estava limpa, como sempre, mas eu a arrumei melhor, ordenando os poucos móveis da sala e ajeitando almofadas e tapetes. Por medida de precaução -- nunca se sabe quão longe se vai com o primeiro passo -- troquei também os lençóis da cama, e por fim eu mesmo me deixei ficar de molho num banho morno com gotas de calêndula.
Quando acabei, o céu já estava brilhante com as primeiras estrelas, e eu me sentei à porta, aspirando com prazer a brisa fresca da noite. Diante da minha, a casa de Rowenna estava toda apagada, mas a da esquerda tinha luz e movimento, e não tardou muito a que alguém saísse de lá para falar comigo. Foi Pippo, desta vez, para variar. Eles não ficam nem uma hora sem dar o ar da sua presença.
´-- Oi, Cyprien. Ainda está aí? Pensei que tivesse ido para a Cidade Baixa - disse Pippo, com um olhar que era um pedido de explicações. -- Você não tinha um compromisso hoje?
-- Sim, mas vai ser aqui em casa -- repliquei. -- Meus amigos vêm conversar e fazer um pouco de música. Se vocês não forem sair...
-- Ah! Mas a gente vai! -- Riu, parecendo subitamente animado. -- Você nem pode imaginar o que aconteceu. Depois que você foi embora, Ariela voltou a brigar com meu pai, e sabe como terminou? Ela vai comigo às tavernas, como queria, e ele concordou em ficar com o Alfonz! O que você acha disso, Cyprien?
-- Que os tempos mudaram -- disse eu, sem precisar refletir. Jamais, em outra época, Mandol teria aceitado uma coisa daquelas, por mais que amasse o neto, e ainda que quisesse ser útil ao filho e à nora. Para ele, o cuidado das crianças cabia apenas às mulheres, ao menos enquanto não cresciam o suficiente para aprender música. Ariela devia tê-lo infernizado muito para conseguir aquilo.
-- E agora, deixe-me ir, antes que o velho mude de ideia -- tornou Pippo. -- E se quiser forrar o estômago, há sopa lá em casa... Isto é, se já não combinou jantar com seus amigos.
-- Não, mas tenho salsichas e queijo, e eles também sempre trazem alguma coisa. Vai haver muito que mastigar, mesmo sem ser um jantar de verdade.
-- Ah, é? Bom, então está certo. Mas se quiser, já sabe: não faça cerimônia!
-- Obrigado. Tenham uma boa noite, você e Ariela.
-- E o mesmo para você e Tina -- riu Pippo, lançando-me um olhar cúmplice antes de voltar as costas. Olhei-o intensamente enquanto se afastava, um rapaz baixo e forte, com os cabelos muito pretos e um jeito franco e alegre de estar no mundo. De todos os meus amigos, ele era o que mais se assemelhava a um irmão, inclusive pelo fato de nem sempre nos entendermos às mil maravilhas. É sempre assim, quando as pessoas ficam íntimas demais. De qualquer forma, eu gostava muito de Pippo, e aquela conversa me fez sentir culpado por desejar me distanciar de sua família. Eles não eram do meu sangue, sequer pertenciam ao Povo Alto, mas tinham me dado apoio no momento em que eu mais precisava. Eu podia muito bem tolerar um pouco de intromissão em nome dos velhos tempos.
Instantes depois, ouvi que me chamavam do alto da rua, mas nem precisei olhar para saber de quem se tratava. Toda Pwilrie conhecia a voz de Thierry, embora poucos reconhecessem nele o garotinho que cantava canções sacras, à porta dos templos, acompanhado pela cítara de seu tio Olivier. Recentemente, porém, o tio voltara a trabalhar sozinho, e Thierry percorria as tavernas com os camaradas e com Nayla. Não é preciso dizer que os hinos sacros ficaram para trás.
-- E então? Esperando os convidados ou tomando a fresca? -- riu Thierry. -- Não me olhe assim, eu não trouxe nada, mas Nayla vem vindo aí com tortas e vinho. E enquanto ela não chega -- acrescentou, baixando a voz --, deixe-me fazer uma proposta. Eu tenho um encontro à meia-noite, na Cidade Baixa, e a coisa parece promissora; mas, como é a primeira vez que saímos, ela disse que vai chamar a irmã, e por isso eu também tenho que levar um camarada. Você não quer ir? Não conheço a moça, mas Agnès garantiu que é muito bonita.
-- Certo, mas desta vez declino da honra -- disse eu. -- Esta noite é de Tina e de ninguém mais. E por falar nisso, onde fica Nayla nessa história? Como você vai agir sem ela saber?
-- Ah! Eu já planejei tudo -- disse ele, com ar orgulhoso. -- Espere, e verá. Tem certeza de que não quer ir comigo? Posso chamar o Aymon, mas, sem querer elogiar, essas coisas são muito mais divertidas quando vamos nós dois.
-- Sei disso, amigo. Mas esta noite, realmente, prefiro não ir. Você sabe, há mais de uma lua venho querendo estar a sós com Tina, e hoje vai ser uma ótima oportunidade. Isto é, se ela concordar em ficar, depois que vocês todos tiverem ido embora.
-- E por que não iria? Ah...! - fez ele, compreendendo no instante seguinte. Assenti, sem precisar dizer mais nada, pois ambos sabíamos o que significava aquele silêncio. Tina não ia apenas decidir se ficaria ou não comigo. Ia decidir se ficaria com um homem pela primeira vez.
-- Deixe conosco, vamos fazer tudo para ajudar -- disse Thierry. -- Olhe só, Nayla e Cassius já vêm subindo a rua, com cara de quem quer ouvir o que estamos dizendo. Posso contar a eles? Sem detalhes, é claro. Só para saberem que devemos deixar o caminho livre.
-- Não é preciso. Eles vão perceber sozinhos.
-- Ah, vão? Bom, eu não respondo pelo Cassius -- replicou Thierry. -- Tonto como é, ele é bem capaz de insistir em acompanhar as moças até em casa. Veja só aquilo! Carregando duas cestas, enquanto Nayla vem leve como uma pluma. Ele deve pensar que vai conquistá-la com esse tipo de coisa. Coitado! Eu sou o único que sabe do que ela gosta.
Lambeu os lábios, olhando para a dupla que se aproximava a passos lentos. Nayla vinha sorrindo desde o início da rua, mas Cassius estava sério, como se as cestas pesassem de verdade sobre seus ombros largos. Ele era o mais alto e forte de nós, mas andava meio curvado, talvez por causa do seu ofício de tecelão. Também sempre fora o mais quieto, inclusive em sua paixão por Nayla, que nunca declarara abertamente embora todos a percebessem. Onde quer que ela fosse, Cassius estava ao seu lado, sem pedir coisa alguma em troca, fiel como um cavaleiro à dama dos seus amores. Na minha opinião, essa tática podia vir a dar certo, mas Thierry não me ouvia, continuava a fazer pouco de Cassius e da própria Nayla. Talvez fosse bem feito se ele acabasse por perdê-la. Só assim daria valor a quem, por mais de um ano, vinha sendo sua companheira nos bons e nos maus momentos.

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Parte 1

Parte 2

Parte 4

Conheça O Jogo do Equilíbrio, novela em que Cyprien já está em outra fase da vida.

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sábado, 4 de março de 2017

Além de Agora: um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 2)

     

          Chegando ao Labirinto, esvaziei os bolsos e me sentei para contar o dinheiro. Eram moedas estrangeiras, e eu tinha experiência bastante para saber que valiam pelo menos três dirans de ouro: uma bela colheita. Guardei-as num dos meus esconderijos e subi até a fonte, onde me lavei e enchi o maior jarro que era capaz de carregar. De volta a casa, troquei as calças de acrobata por um par mais confortável e ia me barbear quando ouvi a voz de Ariela, que me chamava da porta, sem querer correr os riscos de uma entrada súbita. Disse-lhe para não fazer cerimônia, pois eu estava vestido -- e foi quanto bastou para que, no instante seguinte, o espelho refletisse um rosto claro e sério por trás do meu.
         -- Bom dia, Cyprien. Obrigada por levar o leite -- disse ela, um tanto ríspida, colocando um embrulho sobre a mesa. - Sua roupa está aqui, secou muito rápido, com todo esse sol. E se quiser tenho um pouco de carne cozida que dá para todos. É até bom que venha -- acrescentou, baixando a voz. -- Ao menos sei que não vai ficar contra mim, quando os dois recomeçarem.
        -- Mas nunca fico contra você. Só o que não quero é me envolver nas suas discussões.
        -- E por que não? Você é como se fosse da família, e, cá entre nós, é o único membro dela a ter um pouco de senso. Oh, isso foi tudo que não pedi a Deus: além de um marido tonto, um sogro rabugento, e ainda por cima o Alfonz não tem me deixado em paz. Está ouvindo? Não posso sair um instante, e ele logo começa a berrar. E por falar nisso, não quer vir de uma vez comigo? Ele parece meio quente, eu até procurei Rowenna, mas ela saiu muito cedo esta manhã. Talvez você saiba de algum chá que eu possa dar a ele.
          Um tanto a contragosto, assenti, deixando minha tranqüilidade para entrar na atmosfera sempre agitada da casa vizinha. Pippo e Mandol estavam na sala, o primeiro afinando um alaúde, o outro rondando, aflito, o berço de Alfonz, que, deitado de costas, chorava e soluçava com as mãozinhas na boca. Só mesmo aqueles três para não perceber o que o menino estava sentindo.
         -- Então, pequeno, o que há com você? -- perguntei, aproximando-me do berço. Alfonz parou de chorar assim que me viu, estendeu os braços, soltando um gritinho alegre quando o levantei. Como de hábito, ele avançou para abocanhar meu queixo, mas logo se desprendeu, franzindo a testa ao perceber alguma coisa diferente.
          -- Upa! É melhor tomar cuidado -- exclamei. -- Ainda não fiz a barba hoje.
          -- Qual barba...! -- riu Pippo, divertido. -- Meia dúzia de pelos, e mal se podem ver. Isso não arranha ninguém.
          -- Arranha um bebê -- disse Ariela, franzindo o cenho.
          -- E ele já pode me dar o troco -- falei, tentando passar ao largo da discussão. -- Vê a gengiva de baixo, como está irritada? Isso é um dentinho que está querendo apontar.
          -- O quê? Um dente?
          -- Mas já? -- fez Mandol, olhando admirado para o neto. -- Pensei que ainda fosse levar algumas luas!
          -- E o que é que eu dou a ele? -- perguntou Ariela, muito prática.
          -- Não sei -- respondi, passando-lhe o garoto. -- Ou melhor, Rowenna me explicou uma vez, mas prefiro esperar que ela volte. Eu não tive quase nenhuma experiência com isso.
          -- Grande Cyprien! -- exclamou Pippo. -- Músico, acrobata, ladrão e curandeiro. Pode dizer qual o remédio, Ariela confia mais em você do que em Rowenna. É verdade! -- insistiu, vendo que eu erguia as sobrancelhas. -- Foi ela mesma quem me falou!
          -- Eu não disse isso - replicou Ariela. -- Só disse que Cyprien tem mais boa vontade. E nem foi em relação ao remédio, mas a outra coisa, que aliás eu ia mesmo...
          -- Não! Nada disso -- cortou Mandol, com um gesto de irritação. -- Você não vai pedir a ele que fique com o Alfonz, e isso pelo simples fato de que você não vai sair. Onde já se viu? Com um filho ainda no peito, e ainda mais doente, e quer ir dançar nas tavernas? Será possível que não tem nenhum juízo?
           -- Ele não está doente, só irritado -- rebateu a nora. - E o senhor sabe muito bem que ele toma leite de cabra há quase uma lua. E quanto a dançar, pelo que me lembro, eu sempre disse que queria continuar, e o seu filho prometeu que não me impediria. Como é que o senhor, meu sogro, está dizendo que não vou sair?
          -- Ariela, vá com calma, meu pai não está de todo errado -- disse Pippo, já começando a suar frio. -- Alfonz ainda é muito pequeno, e precisa de você, e talvez... Bom, talvez Cyprien nem possa ficar com ele esta noite.
          -- Era isso que eu ia dizer – falei. Pippo suspirou, aliviado. Ariela apertou os lábios, mas não disse nada, limitando-se a voltar as costas e a tratar de concluir o almoço.
           A carne tinha um cheiro ótimo, e o sabor se revelou ainda melhor, mas, por mais que tivesse decidido não me sentir culpado, não fui capaz de apreciá-la como deveria. Era difícil negar ajuda a quem sempre fizera tanto por mim. Apesar disso, eu estava resolvido a cortar certas amarras, e além de tudo tinha mesmo um compromisso para a noite, por isso fiquei firme e não voltei atrás. Já era tempo de estabelecer os limites da minha gratidão.
          Meu encontro da tarde tinha um pouco a ver com isso, mas, havendo também vantagens para mim, eu não o encarava como se estivesse fazendo um favor. Desde a morte de Gontran, vinha me aperfeiçoando com outros saltimbancos, e, embora já houvesse superado a todos, ainda faltava aprender como passar o ofício adiante. A única forma era através da prática, por isso me propus a ajudar Thespio, o antigo mestre de Aymon, que já tivera vários alunos e era como um segundo pai para todos eles. Essa era a principal razão para que eu o preferisse aos demais. Não queria que nenhuma criança viesse a sentir por mim o que eu sentia por meu padrasto.
         O treinamento já havia começado quando cheguei. Sob o atento olhar de seu pai, Dara, a filha de oito anos de Thespio, praticava malabarismo com argolas, enquanto Aymon trabalhava com o outro aprendiz, um garotinho de quatro anos. Quando entrei, eles me olharam, mas continuaram a treinar, ao passo que Dara recolheu as argolas e olhou interrogativamente para Thespio.
         -- Ora, por que eu? Dê você mesma o recado -- disse o pai, de um jeito ríspido que não era o habitual. -- Foi você quem o recebeu, não foi?
         -- Que recado é esse, Dara? -- perguntei, já apreensivo.
         -- De Rowenna, que eu e minha mãe encontramos no mercado. Ela quer que você vá com ela ver o Édobec.
         -- O Édobec? Mas como é que eu posso vê-lo, se ele está preso?
         -- Isso não é para hoje -- disse Thespio, com o cenho franzido. -- É para amanhã, no patíbulo; e não é só para ver o homem, mas para fazê-lo tomar uma poção. Rowenna diz que com isso ele vai ficar meio dormindo, e assim vai aguentar melhor as chicotadas. Mas cá entre nós, Cyprien, se eu fosse você, não arriscaria o meu pescoço por tão pouco. Não que o Édobec não mereça -- acrescentou, depois de refletir por uns instantes --, mas é muito difícil fazer uma coisa dessas sem dar nas vistas.
           -- E se eles dissessem que era só um pouco d’água? -- sugeriu Dara. -- Ou se misturassem a poção num jarro de vinho? Assim, ninguém ia perceber nada.
          -- Talvez não, mas o problema não é esse -- disse Thespio, sem perder o ar carrancudo. -- Se fosse só isso, Rowenna poderia muito bem se arranjar sozinha. Acontece que a poção é de efeito curto, e o Édobec tem que tomá-la quando já estiver no patíbulo; e, caso você não saiba, é proibido dar de comer ou de beber a um prisioneiro que está para receber a pena. Uma pessoa pode ser presa se a virem fazendo isso.
          -- E tanto pior se for do Povo Alto, é claro -- completou Aymon. -- Você não está pensando em ir, está?
          -- Não sei -- respondi, porque realmente não tinha certeza. Se eu bem conhecia Rowenna, e ninguém a conhecia melhor do que eu, havia boas razões para que nos arriscássemos, embora eu não visse nenhuma além do simples fato de Édobec ser um de nós e estar em apuros. Por outro lado, essa razão bastava para eu querer ajudá-lo -- ou ao menos deveria bastar, já que, diante da oposição de Aymon e Thespio, eu começava a me perguntar se valeria a pena. O que seria aquele pequeno gesto diante de tudo que nos faziam passar?
          -- Não adianta remar contra a maré -- dizia, em tom amargo, o saltimbanco. -- Desde a Reconquista, muita gente já tentou, e eles sempre levam a melhor. Não ouviu as histórias? O nobre Ali, Assiá dos Tamancos, Lovat, Firmin, Haney o Audaz com a sua revolução... Esse foi o pior de todos, arrastou oito homens para a forca, além de uns trinta presos e açoitados. Foi por ter seguido Haney que morreu um de meus melhores amigos, Elias, o fabricante de sabão. O pai da sua namorada -- concluiu, com um olhar que me fez estremecer.
           Não pelo pai de Tina, que eu nem chegara a conhecer, mas por ela própria.
         -- Você precisa ter cuidado com essa moça -- prosseguiu Thespio, como se adivinhasse meus pensamentos. -- Ela tem boas qualidades, isso eu não contesto, mas é muito rebelde, e ultimamente anda falando demais. A cada vez que alguém é preso, ela faz um discurso. Um dia, isso vai acabar caindo nos ouvidos errados, e ela vai ter o mesmo fim do pai. E você também, Cyprien... Se continuar a se deixar conduzir por Rowenna.
          -- Não me deixo conduzir por ninguém -- rebati, irritado. Thespio sustentou meu olhar sem dificuldade, depois deu de ombros, como se desistisse da discussão. Qualquer um, aliás, teria feito o mesmo, principalmente por estarmos falando de Rowenna. Ela se ocupara de mim, sem dúvida -- chegara até a me querer como aprendiz --, mas não me conduzia, ou, pelo menos, não mais do que conduzia a qualquer outro morador do Labirinto. Para nós ela não era apenas uma curandeira, mas sim uma espécie de sábia, a conselheira e a bruxa-madrinha do Povo Alto. Nós todos nos sentiríamos meio perdidos sem a sua luz.
           Sem voltar ao assunto, levamos o treino adiante, e logo a tensão se dissipou para dar lugar à camaradagem de sempre. Sob a orientação de Thespio, Aymon e eu acompanhamos os garotos em vários exercícios, alguns executados com entusiasmo, os mais fáceis com uma displicência que acabou por lhes valer um belo sermão. Foi um daqueles inspirados, mas foram só palavras, sem nada dos tabefes e varadas que Gontran me dava por muito menos. E, no entanto, eles ficaram afinadíssimos depois daquilo.

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Parte 3


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quarta-feira, 1 de março de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 1)

Rrrrrrespeitável Público,
Hoje começo a postar uma novela estrelada pelo jovem Cyprien de Pwilrie.
Espero que gostem!



Além de Agora



Perguntam pelo mundo
olhos de antepassados:
querem, em mim, suas mãos
o inconseguido (...) 
Vive! - clamam os que se foram,
ou cedo ou irrealizados.
Vive por nós! - murmuram suplicantes.
                            (Cecília Meireles)

-- A minha bolsa! Ladrão! Pega ladrão!
A praça se ergueu em polvorosa com o grito do mercador. Cem passos adiante, voltei-me para trás, divertindo-me com a confusão em torno dele. Nem bem um instante se passara e já o círculo estava fechado, para desespero do homem, que se esgoelava pedindo que lhe abrissem caminho. Gritos inúteis: estávamos na cidade dos curiosos. Nem que quisesse ele poderia correr atrás do tal ladrão.
Atravessei com calma a rua que separa as praças do templo e do mercado. Aymon já estava lá, no lugar de sempre, dispondo seus apetrechos sobre o surrado tapete de acrobata. Eram apenas nove da manhã, cedo demais para um espetáculo, mas o público teria sido ainda menor sob o sol do meio-dia. O calor persistiria durante todo o verão, e eu me sentia tolo ao me lembrar disso. Eu deveria ter ido para o Norte quando me convidaram.
-- Oi, Cyprien! Que tal está hoje? -- saudou Aymon, já como uma forma de chamar a atenção para nós. No mesmo tom exagerado, retribuí, e cobri com saltos e estrelas a distância que ainda nos separava. Vendo isso, algumas pessoas começaram a se interessar, e, enquanto Aymon os encorajava a chegar mais perto, aproveitei para me livrar da minha pesada túnica de quatro cores. Moedas retiniram, espalhadas pelos vários bolsos secretos. Os mercadores deveriam atar melhor os cordões de suas bolsas.
-- Está pronto, camarada? - sussurrou Aymon, que segurava três bolas de madeira em cada mão. Fiz que sim e ele começou a me atirar uma a uma, que eu devolvia com a mesma precisão e cada vez mais rápido. Então, quando uma boa quantidade de gente já olhava fascinada para aquele arco-íris, soltamos as bolas, entrando no segundo número do nosso espetáculo. Foram sete ao todo, entre acrobacia e malabarismo. Por fim, coloquei uma tábua sobre um barril vazio, saltei para cima dela e pus-me a tocar rabeca, naquele equilíbrio precário, enquanto Aymon passava o chapéu entre os espectadores. A maioria ficou até o fim e a coleta foi mais que razoável, mas, como sempre, eu não tinha ficado satisfeito. Não havia mérito algum em repetir aqueles números, nem mesmo os mais difíceis, fossem quais fossem as variações. Eu precisava encontrar alguma coisa que me devolvesse o antigo entusiasmo.
-- Palavra, Cyprien, não sei do que você reclama -- disse Aymon, recolhendo sua parafernália. -- A féria foi excelente, levando em conta a hora e o calor. E os números saíram perfeitos. A gente não poderia ter feito melhor do que fez.
-- Eu sei, meu amigo. Mas não é essa a razão. -- Suspirei, sabendo de antemão que ele não ia compreender. -- Acontece que estamos nisso há anos, desde pequenos, e eu gostaria de tentar algo diferente.
-- O quê? Uma nova arte? Não chegam as suas três?
-- Não sei se poderia ser uma nova arte -- respondi, embora talvez ele estivesse certo. -- Mas eu queria fazer alguma coisa que ninguém mais soubesse fazer.
-- Ah, mas você pode! -- exclamou Aymon, com a expressão iluminada. -- Você pode muito bem ser o primeiro a manter dez bolas no ar. Thespio já disse várias vezes que está perto: só um pouco mais de treino, e você consegue! Não vai ser ótimo se os mestres o reconhecerem como o melhor malabarista de Pwilrie?
Assenti, sem querer ir mais longe naquele assunto. Na minha opinião, o público não iria nem notar se eu usasse mais uma bola, mas Aymon estava convencido do contrário. Eu não queria fazer pouco de algo que meu amigo achava tão importante.
-- E agora, onde vai? -- perguntou ele, suspendendo a bolsa onde levava os apetrechos. Respondi que voltaria à Praça do Templo, e, como Aymon também fosse até lá, aproveitei para lhe contar o caso do mercador. Ele riu um bocado, principalmente quando lhe mostrei o homem. Depois de quase uma hora, ele ainda não conseguira se livrar dos curiosos. Esse é o tipo de coisa que só acontece em Pwilrie.
Depois de me lembrar do encontro da tarde -- tínhamos prometido ajudar Thespio com os aprendizes --, Aymon seguiu seu caminho, enquanto eu ia me reunir ao público do cego Omar. Recentemente ele começara a contar histórias, e eu ia ouvi-lo sempre que podia. Omar não era um grande narrador, mas sabia prender a atenção, e o melhor é que seus contos sempre se passavam no tempo dos Reis.  Os heróis eram todos do Povo Alto, o que não impedia o público de aplaudi-los, com o mesmo entusiasmo usado para insultar os seus descendentes. Só mesmo a arte para fazê-los esquecer o ódio que tinham de nós.
-- Em nome de Deus, o visível e oculto, eu lhes trago esta história - começou Omar, à maneira antiga. -- Há muitos anos, quando era nosso rei o bom Munir, vivia em Pwilrie um pobre rapaz, que nada possuía além do ofício de que tirava o seu sustento. Numa noite de verão, porém, ele teve um sonho...
Encostei-me a uma parede, prestando atenção ao conto, mas sem deixar de observar as pessoas que se agrupavam à volta do cego. Gente do povo, na maioria, e vários estudantes, além do bando de crianças que sempre aparece quando alguém conta histórias. Aqui e ali, um chapéu elegante ou uma túnica bordada revelava a fortuna de seus donos, que, no entanto, não precisavam temer por suas bolsas naquele momento. Eu nunca tiro nada de quem esteja assistindo a um espetáculo.
-- Esse rapaz, meus amigos, era novo e forte -- dizia agora a voz do cego Omar. -- Havia muito tempo ele era só no mundo, e não tinha obrigações que o prendessem. Então, convencido de que só no estrangeiro encontraria sua boa fortuna, ele resolveu...
-- Proclamação! Proclamação! -- ouvi gritarem, de repente, às minhas costas.
Pego de surpresa, Omar se deteve, com a mão no ar e uma expressão de desamparo, enquanto boa parte do público debandava para ir ter com os arautos. Essa gente ainda não aprendeu que eles só sabem trazer más notícias.
-- Ouçam-me todos, cidadãos de Pwilrie! -- gritou o arauto-chefe, desenrolando um pergaminho. -- Em nome do Prefeito e dos Conselheiros, faço saber que, no terceiro dia da sétima lua, à décima hora da manhã, Édobec, morador do Labirinto, sem profissão, será levado ao patíbulo da Praça do Conselho, onde receberá cinquenta chicotadas pelo crime de roubo; e que o dito Édobec, tendo já cumprido um ano de prisão, será solto à segunda hora da tarde do mesmo dia, devendo até lá permanecer atado ao patíbulo, como exemplo para todos os que sentem inclinação para o mesmo caminho. E tendo assim deliberado, seguem o selo e a assinatura do Prefeito, e mais as de três Conselheiros. Em Pwilrie, no segundo dia da sétima lua do ano de 792.
Ergueu o pergaminho, exibindo-o diante dos olhos das pessoas mais próximas. Um murmúrio correu pela multidão, alguns aprovando, outros achando o castigo duro demais, ainda que fosse para um membro do Povo Alto. Afinal, Édobec não tinha assaltado, não tinha invadido a casa de pessoas decentes nem tocado a filha ou a mulher de algum cidadão. Não era preciso fazê-lo pagar em sangue o preço do que roubara.
Voltei as costas, aturdido, mas antes de tudo revoltado com o que acabara de ouvir. Mais uma vez um homem do meu povo fora condenado sem julgamento e recebera uma pena absurda, que nunca teria sido imposta a um cidadão de Pwilrie. E ai de nós se tentássemos intervir ou simplesmente protestar em praça pública. Após a Reconquista, nosso único direito era o de viver como escória na cidade que fora nossa por tantas gerações.
Entre murmúrios e protestos velados, os arautos partiram, e logo a multidão também se dispersava. Alguns ainda se voltaram para Omar, esperando talvez o fim da história, mas desistiram diante da tristeza dos olhos cegos. Suas mãos, por uma vez esquecidas de se estender, pendiam quietas e inúteis sobre os joelhos, e os ombros se haviam curvado sob o peso da realidade. Naquele momento, nem ele próprio poderia ter acreditado em seus heróis.
-- Não se deixe abater, meu velho -- disse eu.
-- Ah, Cyprien. -- Omar respirou fundo, voltou o rosto em direção à minha voz. -- Que triste é ter de escutar uma notícia como essa. Ainda mais quando é alguém como Édobec -- um pobre homem, sempre sem trabalho, sempre em apuros para dar de comer aos filhos. Você sabe o que ele roubou? Um cesto de legumes, que viu na carroça de um camponês. Como pode um juiz dar uma pena dessas a um homem que roubou legumes? É injusto!
-- Também acho -- repliquei. -- Mas eles sempre fazem isso, quando conseguem pôr as mãos em um de nós.
-- Ei, cego! E como acaba a história? -- perguntou um estudante.
Omar sacudiu os ombros, franziu o cenho, como se quisesse dizer que acabava mal. Dei-lhe um tapinha nas costas e me afastei, sentindo em dobro o peso das moedas que levava na túnica.

Eu teria uma sorte bem pior que a de Édobec se fosse apanhado com elas.

(Continua...)

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Parte 2

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