quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Primeiro Outono - parte 5



Enrodilhada em sua manta de lã, à espera do sol que a cada dia aparecia mais tarde, Maryan escrevia sobre os costumes da tribo. Ainda não sabia quase nada além do que ouvira em Bryke; esperava conhecer outras pessoas, quem sabe ir às casas delas para colher suas próprias impressões. A casa de Anna, talvez, e da avó que se mostrara ao mesmo tempo dura e generosa. Ou ainda a de Zendak, se ele voltasse a visitá-la. Por que não viera naqueles últimos dias?

Traçada a última letra – fora pouco, de fato, o que escrevera – ela ergueu a cabeça, fitando a trilha que começava a vinte passos da casa. Conduzia à floresta – da qual até agora vira apenas a orla – e às cabanas construídas pela tribo sobre e ao redor de árvores milenares. Corvo, Lobo e Lontra, cada Casa tinha um abrigo para rituais e reuniões, mas os jovens viviam em família até que se casassem. Quase todos o faziam, ao contrário dos Elfos Brilhantes, e sempre por amor.

E, por estranho que parecesse, tanto o amor quanto o casamento duravam a vida inteira.

Maryan se recostou à parede da casa, as mãos trançadas sob a nuca, recebendo em cheio e com prazer o afago do sol. Sim, apesar das dificuldades havia beleza neste lugar, uma tranquilidade que dificilmente conseguiria obter em Kalket. A vida na floresta criava pessoas bem diferentes daquelas que conhecera até então. O que faria, em algumas gerações, com a cultura que seu próprio povo trouxera das Terras Férteis? Em que medida eles se adaptariam ou até se misturariam à tribo? Mesmo ela, como Mestra de Sagas, achava difícil imaginar.

Um estalido, como o som de um graveto sendo quebrado, a despertou de suas reflexões. Anna vinha andando rápido pela trilha, com o sol nas costas, mas mesmo assim os olhos e o sorriso estavam cheios de luz.

- Oi, menininha! Já estava com saudades suas! – exclamou Maryan, abraçando-a ao mesmo tempo em que olhava para o adulto logo atrás dela. Era Zendak, saudando-a com um sorriso em que se lia um prenúncio de novidade.

- Trouxe uma coisa para você – anunciou, e se sentou a seu lado, sobre os calcanhares. Suas roupas eram finas, tanto quanto podem ser uma calça e uma camisa feitas de couro, mas tinha na mão um agasalho mais quente, forrado, com gola de pelos cinzentos. Ele o entregou a Anna, fazendo um sinal para que se sentasse ao lado de Maryan, e ergueu os olhos sombreados para a Mestra de Sagas.

- O que eu tenho é uma história – disse, com ar solene. – Nossas histórias são contadas de coração e dadas como presente. Você aceita?

- Uma história? Mas é claro! – replicou Maryan, na mesma hora. Muitas vezes, lendo sobre os povos da floresta, encontrara menções a essa prática: presentear uma narrativa, quer se tratasse de uma história pessoal ou uma da tribo, como se fosse um bem precioso. Quem a ouvia se tornava o depositário, e quase sempre se sentia no dever de retribuir com outra história ou algum tipo de favor. Do ponto de vista de Zendak, isso devia ser muito sério, mas Maryan não tinha medo de decepcioná-lo. Quanto a favores, sabia que o xamã tinha em alta conta o fato de ela estar ensinando as letras a Anna; e, no que tocava a histórias, conhecia todas que algum dia tinham feito parte de um livro.

- Fico honrada em ouvi-lo – disse, tentando soar mais ou menos formal. Zendak sorriu, passando a mão pelos cabelos que caíam como uma asa negra. Então, começou.

Há muitos anos, havia uma caçadora da Casa do Lobo, e seu nome era Kyara. Ainda era jovem, mas tinha trazido muita carne para a tribo; tinha cicatrizes no corpo e garras de urso no colar.

Num dia de inverno, Kyara seguiu os rastros de um gamo até bem longe do território da tribo. Quando viu, era tarde para voltar, então ela decidiu procurar uma gruta que servisse de abrigo. Encontrou, mas dentro dela já estava um homem – um dos primeiros que ela via e com quem falou. E o que Kyara nunca teria imaginado é que, antes daquela noite acabar, ia sentir seu coração bater, seu corpo ficar quente, seu espírito dançar de alegria, tudo por aquele homem que se chamava Raymond de Pwilrie.


- Meu avô! – exclamou Anna, radiante.

- Adorei essa imagem – disse Maryan a Zendak. – "O espírito dançando de alegria"... Isso é quando uma pessoa se apaixona?

- Não só. Os espíritos sempre dançam. Às vezes voam – garantiu o xamã. – Continue a ouvir.

Sem pensar duas vezes na tribo que deixava para trás, Kyara partiu com seu homem, e andaram muitos dias até chegar a um povoado distante. Ali, deram a Raymond um trabalho. Ele devia viver numa cabana dentro da floresta, ajudar os homens ricos que fossem caçar lá - e, ao mesmo tempo, impedir que outros fizessem o mesmo, ainda que suas famílias precisassem de carne.

Kyara não se conformou com essas regras. Então, como os lobos, começou a caçar de noite, e os homens ricos nunca descobriram. Isso durou muitos anos, antes e depois de ela ter uma filha a quem chamaram Anna, como a mãe de Raymond. Era uma criança muito doce. Parecida com esta outra Anna.


Sorriu para a menina, que corou de prazer e escondeu o rosto nas mãos. Preparava-se para continuar quando Effimon surgiu na trilha que conduzia aos currais, carregando um balde de leite, o braço livre aninhando contra o peito vários queijos de odor picante.

Zendak fez uma careta, levando a mão ao nariz num gesto exagerado. Effi apenas sorriu. Com sua pisada leve, aproximou-se até a distância de cinco passos, olhando ora para Maryan, ora para o xamã, que pelo jeito era tão seu conhecido quanto de Narhi e Pylos.

- Desculpem a intromissão. Vinha falar com Maryan, mas, de longe, percebi que contavam uma história – disse ele. – Posso ouvir também?

Em resposta, Zendak estendeu o braço, correndo o polegar pela manga do casaco de Effi. Era de couro de veado e bem surrado, provavelmente um dos agasalhos oferecidos pela tribo no primeiro inverno de Bryke. Talvez pelo próprio xamã.

- Você pode ouvir – decidiu este, após alguns momentos. – Mas tem de ficar em silêncio. E manter essa... coisa o mais longe possível.

- Prometido – disse Effimon, o rosto inescrutável. Pousando o balde no chão, ele se sentou ao lado de Maryan, deixando que o xamã prosseguisse com a narrativa.

Kyara dos Lobos amava sua filha. Lamentava criá-la num lugar tão perigoso, longe da tribo e à mercê dos homens ricos que, além de tudo, estavam sempre lutando uns contra os outros. Mas mesmo assim Anna era feliz. Seus pais nunca a deixaram passar frio nem fome. Com as caçadas noturnas havia sempre carne, e das peles Kyara fazia agasalhos, como aprendera na juventude.

O último casaco que ela fez para Anna foi o melhor de todos. Foi pela época em que nossos jovens são aceitos numa das três Casas, aos quatorze anos. Se Anna estivesse aqui, eu a teria ajudado na jornada em busca do seu espírito protetor, e então o gravaria em sua pele para que sempre a acompanhasse; mas, onde elas estavam, Kyara não tinha como saber qual das Casas acolheria sua filha. Então, fez ela mesma uma jornada de caça. E aqui começa a verdadeira história.


- Como assim? Pensei que tivesse começado lá atrás – disse Maryan.

- Não. Até agora foi uma explicação para que você entendesse – replicou o xamã, imperturbável. – A história que eu vim contar não foi a de Kyara e Raymond, ou mesmo a de Anna, e sim a dessa jornada: a última caçada de minha prima antes da guerra que mudou sua vida. É nela que reside aquilo que eu realmente quero partilhar com você.

.....

Quase no fim... Não deixe de ler a conclusão!

2 comentários:

  1. Oi Ana!!

    Pensando bem, e já que sou a primeira a comentar sempre, você não acha que eu não mereço uma história-legado?

    Estou esperando...

    Muito boa a história da história...
    bjs
    Vânia

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  2. "Anna vinha andando rápido pela trilha, com o sol nas costas, mas mesmo assim os olhos e o sorriso estavam cheios de luz."

    Esta parte do conto está realmente recheada de imagens belas e um tanto xamânicas, devo dizer...

    Parabéns pela sempre escrita impecável! ;)

    Beijos da tua sobrinha e xará,
    Ana

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