segunda-feira, 23 de abril de 2012

Em Nome de Thonarr (Parte 7)



Padraig não tinha como saber, mas, pouco tempo depois de ter voltado para a cidade, seu nome se tornara conhecido por todos no Castelo das Águias. Os aprendizes com quem conversara tinham-se encarregado de falar sobre ele aos quatro cantos: com os mestres, como Shanion – que ergueu o lábio, num gesto de desdém característico, ao ouvir sobre o menino que acreditava num Thonarr de carne e osso - , com os companheiros de Círculo e até com os artesãos e os empregados do Castelo. Entre outras observações, discutiam o significado das palavras de Camdell, que os intrigavam pelo simples fato de terem sido ditas: até onde se lembravam, o Mentor jamais lhes dera qualquer conselho.

As perguntas se multiplicaram em ecos pelos corredores até chegar aos ouvidos de Kieran. Isso aconteceu em torno da hora do crepúsculo, propiciando uma entrada abrupta, quase violenta na sala de refeições.

- O garoto esteve aqui! – exclamou ele, dirigindo-se sem rodeios a Camdell. – Por que ninguém me chamou?

- Você já falou com ele – respondeu o Mentor, sem se abalar. – Despertou a curiosidade que, agora, começa a trazer mais indagações. Ele tem de achar as respostas antes de decidir o que realmente quer.

- Eu poderia ajudá-lo – argumentou Kieran.

- Mais tarde, sim. Agora só iria pressioná-lo – disse Thalia, da outra ponta da mesa.

Kieran franziu o cenho e se voltou para a elfa. Ela estava perto de Shanion, como vinha acontecendo nos últimos tempos, mas, como sempre, não tardara a acorrer em defesa de Camdell. Como se fosse necessário.

- Eu sei que você o quer na Escola. Eu também quero – tornou brandamente o Mentor. – Mas o menino tem de sentir que está fazendo a coisa certa. Sentir. Não raciocinar. Você compreende?

- Claro. – Kieran respirou fundo, puxou a cadeira próxima à de Lara. – Não é o meu jeito de lidar com as coisas, mas, de qualquer modo...

- Até parece – murmurou Lara, de si para si, com um risinho. Seus olhos claros se encontraram com os de Kieran, escuros e estreitos, guardiões de tantos segredos. Ele trabalhava na esfera do Pensamento, sim. Tinha a vontade mais ferrenha, mais direcionada que ela já vira, incluindo a de Hillias. Mas Lara sabia muito bem o que os sentimentos podiam levá-lo a fazer.

Mais cedo que de hábito, ele se recolheu a seus aposentos, numa das torres mais antigas do Castelo. Seu quarto ficava no segundo andar, com a janela voltada para o pátio interno e outras construções; não era a melhor vista que poderia ter, mas permitia que observasse o movimento na Ala Azul, onde tinham lugar as aulas de Magia da Forma e Pensamento. Sua vigilância prevenira e reparara vários desastres provocados por aprendizes descuidados ou, pelo contrário, mais aplicados do que seria bom para eles mesmos. Esta noite, porém, a Ala parecia tranquila, e, depois de um breve instante de observação, ele deixou a janela e se voltou para a estante na parede oposta.

Ao contrário do que se poderia pensar, Kieran não mantinha um só livro de Magia em seu quarto, à exceção dos grimórios que continham suas próprias anotações. Todos os demais tratavam de seus outros interesses: livros sobre a história das Terras Férteis, relatos acerca de guerra e estratégia militar e muitas obras literárias, principalmente de poesia élfica. Tinha também alguns volumes de sagas e o exemplar do Etta em que aprendera as primeiras letras, as páginas amassadas e sujas por seus dedos de garoto do campo. Ele também, naquele tempo, encontrara conforto nas histórias sobre os Heróis.

Kieran pegou o livro e se pôs a folheá-lo, ao mesmo tempo em que caminhava de um lado a outro do quarto. O volume era humilde, com uma encadernação barata e várias páginas soltando, mas algumas pareciam saltar aos olhos por outro motivo: aquelas que o menino, e mais tarde o jovem Kieran ap Fergus visitara com frequência, embora seu aprendizado o houvesse levado a descrer dos Heróis. Ainda assim, as sagas continham mensagens, ensinamentos e símbolos poderosos que nenhum mago digno desse nome ousaria negar.

Seus dedos correram sobre as páginas, descuidados como outrora. O livro se abrira numa história sobre três Heróis, Thonarr, Woden e Loki, aquele a quem os homens se referiam como o Esquerdo. A maioria dos meninos com quem crescera preferia Thonarr, embora muitos se declarassem devotos de Thýrr, patrono de Scyllix e dos guerreiros. Kieran, porém, sempre gostara mais de figura de Woden, com seu cajado e o olho encoberto pelo chapéu de viagem, e o interesse cresceu à medida em que avançava no aprendizado da Magia. Como ele, Woden era aquele que entoava encantamentos e que adquirira um Dom por meio de sacrifícios. Era inteligente, misterioso e às vezes sombrio. E, além disso, tinha um elo mágico com os corvos. Isso o fazia enxergar longe, mesmo com um olho só.

Kieran também via muitas coisas através das águias.

O livro estava aberto na figura de Woden quando ele ouviu os gritos. Não eram de pânico ou de raiva – as guerras o tinham ensinado a distinguir – mas um aviso, um chamado que vinha dos arredores da Torre dos Ventos. Ele correu até a janela, surpreendendo-se com a rajada de chuva que o atingiu antes mesmo de tê-las visto.

Eram duas, como os corvos de Woden, e majestosas, com sua grande envergadura e as penas douradas. Voavam sem esforço, apesar do vento cada vez mais forte, mas isso iria mudar rapidamente à medida em que suas asas se encharcassem. Elas avistaram o mago junto à janela e tornaram a gritar, fazendo com que seus olhos as seguissem quando, num vigoroso bater de asas, deixaram as imediações da Torre dos Ventos. Iam em direção a seu lar, a floresta; mas, em vez de voar em linha reta, fizeram uma curva pronunciada, passando diante dos olhos de Kieran e contornando boa parte do castelo. Ele se debruçou sobre o parapeito, tentando não perdê-las de vista, mas foi um longo momento antes que voltassem ao rumo esperado. Ao se afastarem, gritaram pela terceira vez, o som se perdendo em meio ao ruído agora furioso da chuva.

Siga-nos, mestre. Venha ver.

Sem hesitar, Kieran subiu correndo até o andar superior e se dirigiu à janela. Ficava do lado oposto à do seu quarto, descortinando boa parte de Vrindavahn - e foi exatamente no centro da cidade que ele viu o que atraíra as águias.

Por um instante, sua única reação foi ficar parado, tentando compreender o que tinha diante dos olhos. Para um homem comum, não havia nada além de uma tempestade com raios, mas ele via o brilho da energia mágica que impregnava toda a região ao redor do templo de Bragi. Com certa dificuldade, conseguia ver pessoas se movendo por ali, mas o brilho não parecia vir de nenhuma delas e sim do próprio ar, da chuva que envolvia a cidade como um manto líquido. O mais estranho, porém, era a forma como os resquícios da energia permaneciam no templo, um lugar que normalmente não teria atraído aquele tipo de vibração. Porque era uma vibração, uma força que não provinha de homem ou elfo e sim da própria natureza, e como tal podia vir a causar uma catástrofe.

A não ser que alguém interferisse para evitar.

Os tratados de Magia diziam que a chuva devia cair onde era necessária, tal como o fogo precisava arder onde houvesse uma centelha. Kieran pensou nisso por um momento antes de perceber a quantidade de pessoas correndo em direção ao templo, as vibrações de angústia e desespero que se desprendiam de cada uma delas. Então, teve certeza do que devia fazer.

Passando às pressas por seu quarto, ele pegou um manto e um chapéu que o protegessem da chuva e deixou a torre, enveredando por um corredor da Ala Azul até a sala em que – se não quisessem problemas com ele – seus aprendizes deviam estar praticando para um teste de habilidade no dia seguinte. Pensara encontrar vários deles ali, mas, para sua surpresa, viu apenas Gwyll, que suava com o esforço de fazer flutuar alguns cadernos com a força do pensamento.

- Mestre! – exclamou o meio-elfo, arregalando os olhos. Como era de se esperar, a concentração foi por água abaixo, os cadernos caindo no chão com um ruído abafado. Kieran não perdeu tempo perguntando pelos demais. Apenas explicou o que ia fazer, acrescentando que sua ajuda seria bem-vinda, embora não necessária. Gwyll hesitou por um instante, depois assentiu, cheio de um brio que revelava o mago habilidoso que um dia viria a ser. Infelizmente, faltavam alguns anos – e foi acompanhado de um rapazinho magro, orelhudo e de cabelos eriçados que o Mestre das Águias rumou a todo galope para o templo de Bragi.

Parte 8

3 comentários:

  1. Incrível!! Eu também gosto muito de Woden (sempre gostei de Odin!). O clima dos contos é maravilhoso, só me dão mais vontade de ler O Castelo das Águias!

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  2. "Como ele, Woden era aquele que entoava encantamentos e que adquirira um Dom por meio de sacrifícios. Era inteligente, misterioso e às vezes sombrio. E, além disso, tinha um elo mágico com os corvos. Isso o fazia enxergar longe, mesmo com um olho só."

    Realmente, Ana, sua escrita é fantástica! (desculpe a demora em comentar, mas ando enrolada demais,como sempre...)

    Beijos da sobrinha,
    Ana

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