quarta-feira, 9 de maio de 2012

Em Nome de Thonarr (Parte 8)

O mundo estava vindo abaixo.

Sua mãe tinha tentado sondar o que se passara no Castelo, mas Padraig a despistara com comentários vagos sobre a paisagem e as torres. Com o Preste, mais cedo, houvera um silêncio constrangido, depois uma forçada disgressão por assuntos que não incluíam a Magia ou Mestre Camdell. Ele dissera a si mesmo que o conselho não significava nada, que o Mentor quisera apenas usar uma frase de efeito, mas no fundo aquilo o incomodava, como uma luz piscando sobre seu rosto quando tentava dormir. Talvez fosse exatamente isso: a mente, o espírito, as convicções até agora tão arraigadas postas em jogo e a decisão em suas mãos. Seguir obedecer, teria sido mais fácil. Mas não podia ignorar as perguntas que surgiam a cada momento.

Sem saber o que fazer, ele dirigira suas preces a Thonarr, pedindo que o orientasse naquele momento de confusão. O Herói não o atendera – orar não lhe sugerira uma resposta, nem lhe trouxera conforto – mas uma chuva forte começou a cair logo depois, e com ela os trovões que eram o atributo de Thonarr. De alguma forma ele se manifestava. E talvez quisesse dizer alguma coisa, mas Padraig não teve tempo de refletir, pois sua mãe o chamou com urgência para vedar as janelas da estalagem. No teto, goteiras deixavam passar grossos fios d´água, e o chão fora enlameado pelos sapatos das várias pessoas que se abrigavam ali. A maioria pediu algo para comer, por isso o assado acabou rápido, obrigando-os a improvisar. Não havia mãos a medir entre os que cozinhavam e os que serviam.

Padraig estava na cozinha, picando frutas para mais uma rodada de ponche, quando escutou o alarido vindo do salão. As vozes eram muitas, mas, antes mesmo de acorrer, ele reconheceu a do Irmão Liam, um jovem iniciado do Templo que escapulia com frequência para um trago n´ ”A Espada e o Lírio”.

- Toda a ajuda possível, sim, é o que estão pedindo; mas nada de mulheres e crianças, e tem de ser rápido – dizia, os olhos arregalados como pratos. – Temos que tirar o que pudermos antes que desabe.

- O que vai desabar? – Padraig ergueu a voz acima da balbúrdia.

- O andar superior de uma das alas do templo – disse Liam, como ele esperava e temia. – Já estava com problemas, e o peso da água...

Encolheu os ombros, como se desse a explicação por encerrada. De fato, não fora preciso mais do que isso para que alguns homens se dirigissem à porta. Os mais resolutos correram para o templo, outros ficaram ali olhando a chuva como se refletissem. Padraig se demorou por um instante junto deles, mas sua hesitação foi cortada pelo raio que riscou o céu, bem diante de seus olhos, no momento em que os voltava para o templo. O ribombar de um trovão lhe encheu os ouvidos, e de repente não havia mais o que ponderar.

- Filho! – A voz de Moira às suas costas, quando já se afastava. – Paddy, não vá! Eles não querem crianças no templo!

- Não sou criança – gritou ele dentro da chuva. Caía pesada como uma cortina, quase o impedindo de ver o templo embora estivesse tão próximo. Ele se orientou guiado pelo hábito, esbarrando nos homens apressados que acorriam de todas as direções.

- Por aqui, venham! – Diante do templo, o porteiro gesticulava com uma lanterna. – O Preste Goliath está ali em frente, Ele dirá a todos o que devem levar, e para onde.

- E os artesãos? – indagou Padraig, lembrando-se do encontro na Ala Violeta. –Eles não estão tentando arrumar o piso?

- É tarde demais pra isso – respondeu o porteiro. Seus olhos fundos encararam o garoto de um jeito que lhe causou arrepios. Alheios à conversa, os outros homens passaram por eles e se juntaram à brigada comandada pelo Preste Goliath, que transportava móveis e arcas de um lado para o outro. Era o que também devia fazer, contudo seus pés relutavam em levá-lo pelo mesmo caminho, e ele não saberia dizer o que o fez dar meia-volta e seguir pelo corredor oposto.

A passagem estava às escuras, o chão alagado; o som da chuva se projetava no túnel formado pelas paredes, trazendo-lhe uma forte sensação de clausura. Foi um alívio chegar ao fim. Ele sorveu o ar saturado de chuva, depois ergueu os olhos, sabendo de antemão o que iria ver.

A chuva. O patamar. Vultos borrados, no extremo do corredor, apressando-se a descer as escadas. E, em meio a isso tudo, o andaime abandonado pelos artesãos, ainda tendo em volta algumas vigas com as quais, talvez, pensavam escorar o piso a fim de consertá-lo. Mas até eles, pelo jeito, achavam que era tarde demais.

- Padraig!

Uma voz grave soou no corredor que acabava de abandonar. Alarmado, o menino se voltou, mas não viu nada além de escuridão, logo quebrada pelo súbito clarão de um raio. Ele tornou a dar as costas para o túnel, esquadrinhando o espaço à sua volta – e então, por um instante mais curto que um bater de pálpebras, enxergou um vulto maciço no alto do andaime.

A reação foi imediata: um grito de susto, não isento de medo, tão inesperada foi a visão. Fugaz, também: apenas um momento se passara e a figura não estava mais lá. Restava apenas o andaime, lavado pela chuva e estremecendo ao sopro do vento, os repetidos clarões dos relâmpagos iluminando-o por partes. O topo, o meio, de novo o topo, as vigas, o martelo...

Martelo?

Padraig protegeu os olhos com a mão e deu alguns passos sob a chuva. Sua impressão estava correta: um grande martelo de ferro fora deixado numa das tábuas do andaime. Talvez, afinal, os artesãos tivessem vindo, pensou. Talvez pretendessem voltar e foram desencorajados, pelas pessoas ou pela chuva.

E se não fosse assim – teria dado tempo?

No instante seguinte ele estava junto ao andaime, agarrado àquele fio de esperança e ao martelo que empunhara sem saber o porquê. Seu coração batia descompassado, mas as mãos estavam firmes, e assim permaneceram enquanto os raios caíam cada vez mais perto. Os trovões se sucediam, enchendo seus ouvidos num vozerio contínuo, até o ponto em que nada lhe restou senão responder.

- THONARR!

Sua voz cresceu no espaço em meio à tempestade. Uma espiral vibrante de calor o percorreu dos pés à cabeça, um forte pulsar entre os olhos – e de repente foi como se um raio dardejasse do centro de seu corpo às mãos erguidas. O martelo brilhou, envolto em tonalidades elétricas, projetando uma luz rubi-azulada que se estendia como uma trilha até o alto do andaime. Á sua luz, Padraig viu claramente a fissura no piso, sentiu em todo o corpo o tremor da estrutura precária, e então não conseguiu conter um novo grito.

Acabava de compreender o que tinha nas mãos.

Epílogo

7 comentários:

  1. Pois é... Padraig é um cara bacana. Gosto desse conto, principalmente de algumas palavras que você usou. Mal posso esperar para vê-lo completo.
    bjos
    vania

    ResponderExcluir
  2. você esqueceu que sou um ser ansioso e que por mim as coisas, e os textos, nasceriam prontos e acabados no dia de ontem!!! Tudo bem que meu santo protetor é mesmo São Nunca, mas nesse caso podia ser São Depressa.
    beijos,
    vania

    ResponderExcluir
  3. O Padraig é um fofo em O Castelo das Águias! Muito legal conhecer mais sobre ele! Então foi assim que ele achou seu martelo?

    ResponderExcluir
  4. Astreya, o importante não é ser O Martelo, mas sim ser O Padraig. Siga lendo e você verá. :)

    ResponderExcluir
  5. A propósito: um personagem que pouco aparece no livro 1, mas estrela um dos contos mais apreciados no blog, é Razek, o menino que brinca com fogo. Quem ainda não deu pode dar uma olhada no conto "O Fogo Interior". E depois me digam.

    ResponderExcluir
  6. Padraig condiz mesmo com uma personalidade digna de Thor: Forte,sincero e claro. Claro como um raio.

    Beijos,
    Ana

    ResponderExcluir