quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Diários da Reescrita 5 : Vozes e Pontos de Vista



Pessoas Queridas,

Por mais de uma vez, mencionei as dores e as delícias de esperar o resultado de uma leitura crítica. Pois é, ele ainda não chegou, mas no último final de semana recebi um feedback muito importante, e o que é melhor: de viva voz. Isso porque a leitora crítica do próximo livro, que mora em outro estado, fez uma visita ao Rio de Janeiro e a esta ansiosa contadora de histórias, antecipando alguns dos comentários que serão lidos quando eu me sentar para fazer os ajustes finais no texto.

A maior parte dos comentários foi favorável (ueba!), e dentre esses houve um que me deixou muito feliz, pois senti que estou no caminho certo. Refere-se aos pontos de vista e às vozes dos dois narradores que já conhecemos nessa série, Anna de Bryke no primeiro livro e Kieran de Scyllix no segundo. De acordo com minha leitora, é possível perceber claramente a diferença entre as formas como cada um deles conta a história, e o melhor: neste segundo livro eu não cedi (palavras dela) à "tentação de sair do personagem para favorecer o texto". Ou seja, não emprestei a maior habilidade e disposição para contar histórias de Anna ao novo narrador, que é também uma pessoa instruída, mas tem um temperamento fechado e frequentemente casmurro.

Dizendo assim, parece óbvio, e é, mas também é uma armadilha da qual muitas vezes os escritores não se apercebem. Com a narrativa em terceira pessoa creio ser ainda mais difícil (saberei se houver um quarto livro!), já que é preciso prestar atenção não apenas àquilo que o personagem vê e faz, mas também à leitura que ele faz das coisas e dos acontecimentos. Um exemplo que considero bem-sucedido é o de George Martin: ao escrever sob o ponto de vista de Bran, por exemplo, ele faz observações sobre coisas nas quais só uma criança iria reparar. Por outro lado, a visão de duas pessoas diferentes na mesma situação (Sam e Jon, digamos), pode fornecer diferentes abordagens e desdobramentos para um cenário ou acontecimento. Em primeira pessoa creio que seja mais fácil, mas já vi alguns livros que mesmo assim falham em estabelecer diferenças entre a voz do narrador e outros personagens que se manifestam por discurso direto. A situação mais flagrante são os romances epistolares, ou aqueles em que aparecem cartas e diários: não é possível que uma senhora que passa os dias bordando no bastidor escreva do mesmo jeito que um soldado no front, mas sim, vi livros em que isso acontece.

No caso desta série, as diferenças começam no gênero, passam pela idade, background e e história de vida e seguem com o temperamento e a profissão. Anna é jovem, gregária, cresceu entre pessoas amorosas e tem o ofício de contar histórias, de forma que Vrindavahn, da primeira vez que a vê, já se transforma em um cenário provável para sua aventura pessoal:

Vista de cima, Vrindavahn tinha um aspecto acolhedor. As construções imponentes, ornadas de colunas, que davam tanta fama às cidades grandes não faziam a menor falta naquelas ruas estreitas, calçadas por seixos redondos, onde se alinhavam as casinhas de madeira e tijolos. Os únicos prédios de pedra eram o do Conselho Municipal e o templo, dedicado ao Deus Único e aos Heróis cultuados pelos homens. Eles tinham fundado a cidade – a arquitetura deixava isso bem claro – e ainda estavam em maioria, mas muitos tinham sangue élfico. Famílias mistas eram comuns nas Terras Férteis, principalmente após o último tratado, que reunira toda a região numa só Liga de defesa e ajuda mútua.

(Anna, em O Castelo das Águias)


No segundo livro, a intenção não é recontar a história que já conhecemos através de Anna, mas, ao lhe dar prosseguimento, perceber onde ela errou e onde acertou ao se apaixonar por um mago 18 anos mais velho, que fez coisas terríveis no passado e que olha para um lugar desconhecido como um militar pensando na melhor forma de conquistar o território. E que "cospe" as palavras pelo canto da boca em vez de pronunciá-las graciosamente.


Se eu precisasse escrever um relato sobre a Ilha dos Ossos, não gastaria mais que cinco linhas. Todo o centro era ocupado por um maciço pedregoso, e à volta havia pequenas praias, a maioria no lado oposto àquele que se voltava para a Ilha Albatroz. Os piratas se concentravam nas duas praias desse trecho, que eram muito próximas, porém separadas pelo rochedo do forte. A maior tinha o atracadouro de osso e os depósitos onde estocavam suprimentos; na outra, eu soube mais tarde, ficavam os prisioneiros, amontoados em duas cabanas onde eu não alojaria um cão.

(Kieran, no segundo livro cujo título é surpresa).


Não sei se esse pequeno trecho dá a ideia de como eles são diferentes, em vários sentidos. Mas posso garantir que quem ler o segundo livro encontrará um estilo narrativo um pouco diferente do primeiro, que condiz com o personagem e até com a própria história: não mais um romance de formação/aventura romântica com mensagem ecológica, mas uma quest com direito a monstros e batalhas.

Quanto ao terceiro, a ideia é fazer com que eles se alternem, introduzindo ainda outros narradores em pequenos capítulos - um exercício para mim, que eu espero seja do agrado daqueles que lerem. Porque no fundo é esse o objetivo de todo contador de histórias.

Até a próxima e um grande abraço!

4 comentários:

  1. Interessantíssimo esse texto, Ana.

    Se em diálogos, um autor já corre o risco de fazer com que personagens com "bagagens culturais" diferentes falem de forma similar (ou demonstrem um vocabulário igualmente rico), imagine o quão grande é o risco de algo assim acontecer em uma narração em primeira pessoa.

    Concordo com o exemplo do Martin como um mestre em narrar sob diferentes óticas distinguindo-as bem.

    Parabéns pela postagem e prestarei mais atenção nesses detalhes em meus escritos de agora em diante.

    Abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu, Jacó! Sim, na minha opinião esses registros falados, quer seja uma narrativa em primeira pessoa quer seja um discurso direto, têm de variar de maneira sensível. Um mestre de sagas "empola" mais as frases que um soldado e um juiz fala diferente de um artesão. No meu caso também há registros diferentes de acordo com a região, mais que a raça - um homem das Terras Férteis fala parecido com um elfo, guardadas as diferenças de instrução e posição social, mas há jeitos de falar típicos do Leste, do Oeste, das Terras Geladas. Isso ajuda o leitor a perceber o personagem e o universo.

      Excluir
  2. Nossa, isso é com certeza muito importante, Ana, e é algo em que muitas vezes a gente não presta atenção. Mas é óbvio que esse cuidado deixa a história muito mais palpável e crível. Muito bom, também prestarei mais atenção nesses detalhes daqui para frente.

    ResponderExcluir
  3. Nem preciso dizer o quanto isso é importante (e um grande desafio para os escritores). Criar uma voz para um narrador, diferenciar personagens é talvez a coisa mais importante ao escrever um livro. É isso que faz com que o leitor se lembre da história, dos personagens, é o que faz a leitura inesquecível e não apenas "mais uma". Quantos livros lemos que sequer lembramos o nome dos personagens? Mas se lemos um livro com voz marcante, ele será lembrado. Não tem como.

    ResponderExcluir