quinta-feira, 17 de abril de 2014

O Javali : um conto de Lear Encanta-Dragões (Parte 1)




Pessoas Queridas,



Antes do feriado da Páscoa, deixo aqui o início de um conto ambientado entre os dois romances da nossa série. O ponto de vista é o de Erdon, um aprendiz meio atrapalhado que aparece brevemente em "O Castelo das Águias", mas os personagens principais são outro aprendiz, ainda mais trapalhão, e... um porco. 

Espero que curtam!


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       Feitas as contas, a probabilidade de conseguir sua espada de mago se tornara ainda mais remota, ao menos naquele ano. Mas não havia como negar que foi divertido.
       Era Dia de Descanso, e, apesar de ter acordado à hora de sempre, Erdon ficou na cama até mais tarde. Seus companheiros de quarto haviam saído, mas ele ouvia os passos de alguém no andar de cima, e pelo impacto sabia não se tratar das moças nem de Gwyll. A dedução se mostrou verdadeira quando os passos desceram a escada, acompanhados por um cantarolar em surdina, e avançaram pelo corredor; quando alcançaram sua porta, houve um instante de silêncio, seguido por uma batida e o ranger dos ferrolhos.
       - Erdon, Colm, Nardus? Alguém por aí? – perguntou uma voz familiar. Erdon respondeu com um resmungo, ao que o outro, sentindo-se autorizado, entrou no quarto e tocou a meia esfera de cristal incrustada na parede. A luz suave se espalhou pelo aposento, fazendo Erdon piscar e iluminando o rosto do Encanta-Dragões.
       - Vamos comer alguma coisa? – perguntou ele, no tom alegre de sempre. – Vai ser a raspa do tacho, pois com certeza somos os últimos. Mas saco vazio não para em pé.
       Erdon tornou a resmungar e se levantou, pegando as calças que largara emboladas no chão e as vestindo de qualquer jeito antes de sair e se encaminhar à sala de banho. Estava alagada, com pegadas enlameadas por toda parte e a banheira ainda cheia da água ensaboada usada pelo último aprendiz para se lavar. Pisando com cuidado, Erdon se deslocou pelo aposento e fez suas abluções, voltou ao quarto para pegar uma túnica e a vestiu enquanto caminhava até o refeitório com Lear. Iam sem pressa, a brisa nos cabelos, os pés à vontade em sandálias de palha trançada. Eram boas as manhãs de verão no Castelo das Águias.
       O desjejum se estendia até a nona hora nos Dias de Descanso, mas o movimento costumava ser bem pequeno após a oitava. Eles estranharam a aglomeração de crianças no refeitório, não o grupo completo do Primeiro Círculo, mas uns doze ou quinze deles reunidos em torno de Rydel, o elfo de cabelos dourados que ensinava Ciências da Terra. Ao seu lado estava um aprendiz do Terceiro Círculo, um meio-elfo de pele morena que atendia por Razek, mas a quem os rapazes mais velhos se referiam como Zangado ou Esquentadinho. Estava de pé, com os braços cruzados e um leve sorriso para variar da habitual cara fechada; quando os colegas se aproximaram, não os chamou, mas tocou o ombro do mestre, cujos olhos se iluminaram assim que ele os viu.
       - Erdon, Lear, estava mesmo precisando de vocês – disse ele, em tom efusivo. – Ou melhor, alguém como vocês, com certo conhecimento da floresta. Falei com Tarja e Vergena, mas elas têm um compromisso na cidade, e não sei onde Gwyll se meteu,,, Vocês teriam umas horas livres? Para ajudar com um trabalho do Primeiro Círculo?
       - É uma competição! – exclamou uma aprendiz de tranças, que devia ter uns doze anos.
     - É uma brincadeira. – Como bom seguidor de Odravas, Rydel tinha aversão a tudo que envolvesse competir e medir forças. – Vamos à floresta em três grupos e todos têm a missão de encontrar os itens de uma lista. Uma folha de carvalho, um grilo, uma pena de coruja e assim por diante. Os grupos vão por caminhos diferentes e se reúnem no fim do dia para ver o que conseguiram.
       - Quem achar mais coisas vence – disse o garoto que parecia ser o mais velho do bando.
    - Não, Conan! Mestre Rydel já disse que não! – retrucou um pequeno elfo. – É só para ver se reconhecemos os itens da lista!
       - E onde entramos nisso? – indagou Lear. – É para acompanharmos dois grupos?
       - Um só – disse Razek, prontamente.
      - Isso mesmo, um só – confirmou Rydel. – Eu irei com um dos grupos; Razek, que desde a confusão com as águias tem acompanhado Kieran à floresta, irá com outro; para o terceiro pensei em Anna, mas ela não passou a noite na Ala Rosada e não apareceu para o desjejum. Então, achei que dois aprendizes do seu grupo seriam uma boa opção, pois vocês têm boa noção das trilhas da floresta e podem ajudar um ao outro. Vocês aceitam?
       - Ah, mestre... Não sei não. Acho que me confundo com as trilhas – Erdon procurou uma desculpa. – Mestra Anna deve chegar logo. Ela seria bem melhor que Lear e eu.
       - Não sabia que você falava por Lear – observou Razek, irônico.
       - Ora, seu...
      - Sem brigas, por favor – cortou Rydel. – Se vocês não podem, ou não querem, tudo bem. Faremos nosso jogo num outro dia.
       - Ah, nãããão! – exclamou a menina de tranças. Um murmúrio de protesto cresceu entre os demais aprendizes, permeado por algumas sugestões: que fossem só dois grupos (não ia ter muita graça); que chamassem Mestra Anna (quem ousa bater à porta de Mestre Kieran, que é com quem ela deve estar?); que o terceiro grupo fosse acompanhado pelo sempre solícito Padraig, o que seria uma boa solução, se o aprendiz de Mestre Camdell não madrugasse no templo da cidade todos os Dias de Descanso.
       Erdon ouviu a discussão com um certo sentimento de culpa, mas ainda assim sem querer abrir mão do seu tempo livre. Imaginava que Lear fosse manter a mesma posição, o que teria certamente acontecido... se o Encanta-Dragões não fosse tão suscetível ao apelo dos colegas mais novos.
       - Ah, por favor, por favor, venha com a gente! Vai ser divertido! – pediu a das tranças.
       - Você pode aproveitar e nos dar umas dicas sobre transmutação. Pelo menos ilusionismo – disse um menino arruivado.
       - Ah, não sei, pessoal...
       - Vamos! Você é o melhor! – insistiu o garoto. Lear suspirou, depois encolheu os ombros e olhou para Erdon, com um sorriso que deixava claro o quanto estava envaidecido.
       - Bom, quando todos pedem, não tenho como negar – disse ele. – Vamos lá? Acho que é nosso dever ajudar quem está começando.
       - Ajudam mais se trocarem de calçado. Essas sandálias vão deixar vocês na mão – disse Razek, apontando para o próprio pé calçado de mocassim.
       Não era um mau conselho – dado por outro, talvez soasse bem-intencionado – mas o sorrisinho que o acompanhou era bem coisa de Razek, e era irritante, como tudo que vinha dele. Tão irritante que Erdon até se esqueceu de arranjar uma desculpa; quando percebeu, Rydel já começava a formar os grupos. Cinco crianças seguiriam com ele, incluindo as duas únicas meninas; Razek ficou com quatro garotos, Erdon e Lear com outros quatro, entre os quais o arruivado, que aliás era chamado de Ruivo pelos colegas. A partida foi marcada para dali a meia hora, dando tempo às crianças para irem se trocar ou buscar qualquer coisa no alojamento. Erdon franziu a testa ao ouvir o Ruivo declarar que trocaria as sandálias por sapatos.
       - Para quê? Vão estragar na floresta – argumentou. – Mestre Rydel também está de sandálias.
       - Ele é seguidor de Odravas – retrucou o menino. – Costuma andar até descalço. Mas eu é que não vou correr o risco de machucar meus pés.
       - Eu vou de sandálias – atalhou Lear. – E você não disse que eu era o melhor?
       - Em ilusionismo, claro que sim. Mas de floresta quem entende é o Razek. Sem querer ofender! – acrescentou o Ruivo, vendo a expressão dos colegas mais velhos. Ele tratou de dar o fora enquanto os dois se entreolhavam, sem trocar uma palavra, mas deixando muito claro um para o outro o que teriam gostado de fazer com o pescoço de Razek.
       - Sujeitinho arrogante – comentou Erdon, quando saíam da Ala Branca com as frutas que tinham pegado à guisa de desjejum. – Acha que sabe tudo, só porque nasceu na Floresta do Sol e caçava quando garoto. Mas duvido que conseguisse pegar alguma coisa hoje em dia.
       - Bom, ele derrubou duas águias guerreiras com Magia – concedeu o Encanta-Dragões. – Mas deixou as duas feridas; não achou um jeito melhor de combatê-las, quando nós... Ei! Que bicho é esse, amigo? Vai ter festa?
       A pergunta fora dirigida a um dos empregados do castelo, que atravessava o pátio puxando um enorme porco preso a uma corda. Ia a caminho da cozinha, onde, como disse aos rapazes, esperava que o intendente fosse chamado para lhe dizer o que fazer com o animal. Este acabara de ser entregue no portão dos fundos pelo pai de um aprendiz, em agradecimento ao que a Escola de Artes Mágicas estava fazendo por seu filho.
       - Se não o matarem hoje, não sei como vão fazer. Não temos chiqueiro, e um bicho desses não pode ficar solto – disse ele, coçando a cabeça. – No estábulo acho que não dá certo.
       - Não mesmo... e acho que o Gurion não vai resolver nada hoje, Ele sempre vai à cidade nos Dias de Descanso – disse Lear, referindo-se ao intendente. – A cozinheira-chefe também, e Lori não vai mandar matar o bicho sem falar com ela. Acho que você vai ter que dar um jeito por hoje.
       - É, parece – disse o homem, contrariado. – E bem que eu tinha mais o que fazer do que ficar cuidando de porco.
       - Bom, se quiser, a gente pode ajudar, por uma parte do dia – tornou Lear, ao que Erdon o olhou perplexo. Não tinha entendido nada. O Encanta-Dragões, porém, continuou a falar, contando sobre um parente que tinha uma fazenda perto de Madrath e o que costumavam fazer com os porcos no verão.
       Então, embora o plano completo lhe escapasse, Erdon começou lentamente a compreender.

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Ilustração mostrando um camponês alimentando porcos com bolotas de carvalho, retirada do History Cookbook.

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5 comentários:

  1. Sempre gostei do Lear. Se ele fosse um personagem de AD&D acredito que ele seria um ilusionista como classe de personagem.

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  2. Eu simplesmente adoro o Razek e o Lear. Ótimo texto, sempre mostrando maestria na narrativa e construção de personagens. Aguardo por mais, Ana!

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    1. Ah, sim, e vai ter novela solo do Lear, assim como tivemos a do Thorold! Aguardem! :)

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