terça-feira, 6 de maio de 2014

O Javali: um conto de Lear Encanta-Dragões (Final)


      - Mestre Kieran! O se-senhor? – gaguejou Erdon, sentindo o chão se abrir sob seus pés. – Não queríamos... quer dizer, bom, o Razek afinal seguiu outro caminho...
       - Razek...? – As sobrancelhas do mestre se uniram sobre os olhos. – O que aprontaram com ele desta vez?
       - Nada! – Lear se apressou a dizer, mas o próprio afobamento deixou claro que não era verdade. Kieran o encarou com aqueles olhos estreitos e cruzou os braços, e Erdon engoliu em seco, à espera de uma catástrofe... que não veio, substituída pelo inesperado ruído de alguém a correr desabaladamente pela trilha do lado oposto ao do bosque.
       Na mesma hora, o instinto de proteção fez os quatro garotos avançarem para perto do mestre, e até mesmo Erdon deu um ou dois passos em sua direção. Lear, o único dentre todos a ter um bastão de poder, o empunhou com energia, pronto a tecer algum encanto que protegesse o grupo, enquanto Kieran se limitava a respirar fundo e esperar. E apesar do que o trouxera até ali, apesar de todo o seu poder, nem mesmo ele estava preparado para ver a moça que, momentos depois, surgiu no início da trilha, o rosto afogueado, os olhos cheios de susto e a voz entrecortada pela falta de fôlego.
      - Um javali! E está enfurecido, tenham cuidado! – gritou ela, correndo para Kieran. O mago piscou, aturdido, e ia replicar quando, emergindo subitamente por entre arbustos, o javali irrompeu na clareira, urrando feito um demônio enquanto investia mais uma vez sobre Anna de Bryke.
     Então, tudo aconteceu muito rápido. Os meninos gritaram, agarrando-se uns aos outros e tentando sair do caminho; Erdon se voltou para Lear, que já brandia o bastão e gritava desfazendo o encanto; Kieran girou sob os pés, protegendo Anna com o corpo e proferindo sua própria fórmula mágica – e o javali desapareceu diante daqueles oito pares de olhos. Em seu lugar restava apenas um porco, ainda assim perigoso, enlouquecido com uma dor que ficou visível tão logo a ilusão se desfez.
      - O focinho dele está preto! – gemeu Lohan, tentando se proteger atrás dos colegas mais altos. – O que é aquilo?
      - Ferrões de abelha! – Erdon respondeu, sua voz abafada pelas frases enérgicas de Lear e Kieran. Se ambos trabalharam no mesmo sentido ou de formas complementares foi impossível saber, mas, para alívio de todos, o porco se aquietou após uns poucos instantes, deixando de perseguir a Mestra de Sagas para se quedar, imóvel e como que estupefato, diante do agitado grupo de meninos. Em seguida, como se aquilo houvesse sido demais para ele, deitou-se e começou a roncar; e foi então que Erdon voltou a engolir em seco, sabendo o que viria a seguir por parte de Kieran.
      - Certo. – A voz do mago era contida; quase sempre começava assim. – Alguém usou ilusionismo, depois criou um elo entre sua mente e a desse porco e o mandou para uma trilha onde ele foi atacado por abelhas, o que, é claro, o deixou furioso. Até aí eu entendi. Quem pode me explicar o resto?
       - Nós... – começou Lear.
      - Eu explico – disse Gareth, inesperadamente. – Mestre Kieran, isso era para ser uma brincadeira com Razek. Nós achamos que ele estava neste bosque porque vimos a pegada de mocassim...
      - Que era o da Mestra Anna! – exclamou Lohan, dando um passo à frente e apontando para os pés da moça. – Eu disse que a pegada era pequena para ser do Razek!
      - Mas nós achamos que era – tornou Gareth. - E o javali, que na verdade era o porco, devia seguir a pessoa que fez a pegada, portanto seguiria o Razek, e nós devíamos ver como ele se sairia através da projeção de pensamento do Lear.
      - Mas não queríamos que ele se machucasse nem nada, era só para rir um pouco – disse o Ruivo, e o Encanta-Dragões lançou ao menino um olhar de agradecimento. – Aí descobrimos que o Razek estava em outra parte da floresta, mas não vimos quem estava por aqui, pois o Lear se confundiu com a energia de outro mago. Com certeza foi a do senhor, não foi? Usando um encanto para encontrar Mestra Anna?
      - Eu... – Kieran pareceu querer dizer algo, mas parou ao ver a expressão de sua prometida. Ela se refizera do susto e agora o olhava meio perplexa, meio contrariada.
      - Você não disse que tinha trabalho a fazer? Por que veio atrás de mim? – perguntou, num tom que eles jamais tinham visto alguém usar com Mestre Kieran. – Se eu não achasse o Rydel para terminar o passeio, poderia voltar sozinha. Sei muito bem como me orientar na floresta!
      - Sim, mas a questão não é só essa. Veja o que aconteceu! – Kieran olhou em torno, achando numa só mirada um argumento e pessoas mais culpadas que ele. – O que essa brincadeira estúpida poderia ter causado? Respondam!
     - Não era para ela, mestre. Era para o Razek, ele provavelmente ia perceber tudo. Ninguém sabia que Mestra Anna estava aqui – defendeu-se Lear. – Nem jamais poderíamos imaginar que o porco seria picado de abelhas.
      - E além disso era só um porco – ajuntou Conan. – Não era um javali de verdade. Claro que ela não sabia, por isso ficou assustada, mas um porco não poderia...
      - Ah, não poderia? – interrompeu o mago, ainda contendo a raiva. – Algum de vocês, moleques, por acaso cresceu no campo? Sabem o estrago que um porco furioso é capaz de fazer?
        Sem esperar resposta, ele abriu o cinto, que caiu no chão sem ruído enquanto Kieran erguia a túnica e a camisa. Então, virou-se de lado, expondo o torso entre a cintura e as costelas, e sete rostos se franziram com pena e uma espécie de horror ao ver a feia cicatriz que repuxava a pele do mestre.
    - Nem cinco anos eu tinha. Por sorte era um porco menor e consegui escapar antes que me arrancasse um pedaço – disse ele, por entre murmúrios consternados. – Mas o porco que me mordeu estava preso num chiqueiro. Não estava enlouquecido por ferroadas. E, claro... Não tinha sido influenciado por um bando de fedelhos, liderados por dois inconsequentes que já deviam ter sido chutados da Escola. Não é mesmo, Erdon? Lear?
      - Não, mestre. Quer dizer, sim, fomos inconsequentes – atrapalhou-se o Encanta-Dragões. – Mas não quisemos fazer mal a ninguém, e o senhor sabe disso. Nem a Razek, nem aos que estão com ele, e muito menos a Mestra Anna. Espero que ela nos perdoe pelo mal-entendido.
     - Pedimos mil desculpas – ajuntou Erdon. Estava sendo sincero – jamais teria querido causar transtorno à Mestra de Sagas, e Kieran os confrontara com a possibilidade real de algo pior que um simples susto –, mas a ideia de que poderiam ser expulsos da Escola eram o que o fazia suar frio. Lear, com seu talento inato, conseguiria com facilidade um mestre que o orientasse, mas Erdon não teria para quem se voltar, porque não havia outra Escola de Artes Mágicas nem outros magos que pensassem como Camdell. Felizmente, a rápida intervenção de Anna ao dizer que os desculpava e até rir um pouco da história - ou talvez a presença dela na vida de Kieran - tinha suavizado as disposições do mestre, e ele se contentou em resmungar mais um pouco e em afirmar que pensaria várias vezes antes de endossar a próxima iniciação dos rapazes.
      - Você também, Lear. Não pense que não sei que a ideia foi sua – rosnou, olhando torto para o Encanta-Dragões. – E como achou tão fácil criar um elo com esse porco, é você que vai tirar os ferrões, acordar o bicho e levá-lo de volta para o lugar de onde ele veio.
        - Tirar os ferrões? Mas como?
       - Não faço ideia. Há mais de vinte anos não trato de porcos, e nunca vi nenhum ficar com o focinho assim. Mas você é um sujeito esperto – Kieran bateu nas costas do aprendiz com a mão aberta, não exatamente um tapinha carinhoso. – E tem cinco bons amigos para ajudar na tarefa.
      - Nós? Mas a gente só... – Conan começou em voz alta, mas o tom diminuiu diante do olhar do mestre. – A gente só veio por causa deles.
      - Sim, vamos deixar os meninos fora disso – pediu Anna, com o braço em torno de um Gareth cabisbaixo. Lohan parecia prestes a chorar. Kieran olhou de um para o outro, depois ficou uns instantes a observar o Ruivo, que mexia nas folhas de um arbusto e afetava um ar inocente.
       - De algumas coisas se escapa por sorte... não é mesmo? – disse o mago, por fim, sem deixar de olhá-lo. – Tudo bem, vamos deixar passar, mas só desta vez. Da próxima, quem for atrás de um cabeça de vento como Lear vai ser tão responsável quanto ele pelas consequências, entendido?
       - Sim, mestre! – Até os dois rapazes entraram no coro.
       - E o jogo de Mestre Rydel? – lembrou Gareth, de repente. – Será que ainda teríamos como achar o que ele pediu?
       - Não podemos andar na floresta sozinhos. – Conan se voltou para Anna, um sorriso matreiro nos lábios. – Mestra, já que está aqui, será que não podia...
       - Acompanhar vocês? Mas é claro!
     - O senhor também vai, Mestre Kieran? – indagou Lear, já agachado diante do porco que ainda dormia.
     - É o que parece – resmungou o mago. – Espero que não demore muito, pelo menos. Quanto a vocês, não tenham pressa. Retirem cada ferrão, e depois vejam se alguém lá no Castelo sabe o que fazer nesses casos. À noite, quero ver esse porco no cercado, bem alimentado e feliz.
      - Cercado? Mas lá não tem cercado nenhum – disse Erdon. – Nem chiqueiro. O homem com quem falamos não sabia onde alojar o porco.
    - É mesmo? Hum. Então é bom apressar um pouco as coisas – replicou o Mestre das Águias, juntando as mãos. – Por sorte, há bastante madeira serrada no galpão dos carpinteiros. Mas mesmo assim vocês vão ter muito trabalho pela frente.
      Um canto de sua boca se ergueu devagar, desenhando o Sorriso do Mal de que Tarja sempre falava. Erdon estremeceu e olhou para Lear, esperando vê-lo igualmente intimidado, talvez contrariado com o que acabara de ouvir. No entanto, para sua surpresa, Lear estava sorrindo – e o faria várias vezes ao longo da tarde, enquanto os dois arrancavam ferrões de abelha, puxavam e empurravam o porco pela floresta até o Castelo e pregavam tábuas para construir um pequeno cercado.
       - No fim até que valeu a pena – dizia ele, sempre que o amigo resmungava pelo Dia de Descanso jogado fora, e das primeiras vezes Erdon o mandou para um certo lugar. Lear, porém, insistiu, fazendo-o se lembrar de detalhes como a cara de inocência do Ruivo, o desconcerto de Kieran diante da zanga de Anna e o ar aparvalhado do porco; e como não havia quem resistisse a Lear quando se punha a fazer imitações, Erdon começou a achar graça também e a recordar, ele mesmo, algumas partes da história. Que não deixara de ser divertida, embora não da forma como haviam planejado... e embora o saldo final fosse de muito cansaço e algumas marteladas nos dedos.
       - E agora pensei numa coisa – comentou Lear, olhando para o porco, que comia tranquilamente de um cocho trazido do estábulo. – O dia que passamos juntos me fez criar uma certa afeição por este nosso amigo. Eu ia detestar saber que ele virou bacon ou coisa parecida, então pensei... Será que, se em vez de um porco, o empregado encontrar aqui um...
         - Lear, não comece de novo..
       - Não, sério! Fale a verdade – disse, entusiasmado, o Encanta-Dragões. – Você acha que eles teriam coragem de fazer bacon, digamos, de... de um unicórnio?
         Erdon martelou com tanta força que rachou a tábua ao meio.

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Leia a primeira parte do conto aqui.

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Sobre a ilustração, cabe contar uma pequena história. Minha talentosa amiga Gisele Bera Bizarra fez esse desenho para o blog, como um presente, e quando o vi tive a impressão de que Anna e Kieran estavam correndo de algo. Já faz mais de um ano, e desde então tenho me prometido escrever um conto em que isso acontecesse. Pensei, pensei... e aqui está o resultado. Espero que tenham curtido.

Até a próxima!

2 comentários:

  1. Lear transformou o porco em Uni? :D

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    1. Se os leitores assim quiserem... Esta é uma das possibilidades do desafio que vem por aí, valendo prêmio especial!!

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