quinta-feira, 12 de junho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 1 : De espiões e expectativas



           A reunião que deveria decidir vários destinos foi suspensa após a primeira hora. Do seu posto de observação – uma janela no comprido corredor que conduzia ao refeitório -, Tarja viu o criado entrar na sala em que os mestres de Magia confabulavam e, depois de uma saudação desajeitada, dizer algo que fez todos os sete se levantarem como um só. Sem correr, mas imprimindo certa urgência a seus passos, eles deixaram a sala e enveredaram pelo corredor que levava à cozinha, carregando livros e papéis, mas deixando jarras e bandejas para serem recolhidas pelo empregado... o qual, para o divertimento da moça, comeu um punhado de nozes e saboreou com todo vagar uma taça de vinho antes de começar a tirar a mesa.
          Tarja deixou a janela e se encaminhou aos alojamentos, atravessando o refeitório e um dos pátios internos para chegar à escada. Passou pelo segundo piso e, após hesitar por uns momentos diante da porta de Razek, subiu os degraus estreitos que davam acesso à torre.
           Dois anos antes, quando aquele intragável rapaz de Casa Nobre com quem ela vivia partira para Riverast, Vergena surpreendera a amiga mais nova ao chamá-la para partilhar seu quarto. O convite fora duas vezes bem-vindo, pela oportunidade de estreitar os laços com Vergena – que ela admirava desde os primeiros tempos na Escola – e por conduzi-la ao melhor quarto de todo o alojamento. Elas dispunham de lareira própria, de uma pequena casa de banho anexa e de uma bela vista para as montanhas. Além disso, eram vizinhas de Lear e Gwyll, cujo aposento era um verdadeiro centro de convívio entre os aprendizes do Terceiro Círculo. Tarja, ao se mudar, ainda estava no Segundo, e fora uma espécie de privilégio participar daquelas reuniões regadas a chá e vinho, das brincadeiras acerca dos colegas e mestres e até mesmo das discussões que irrompiam em torno de qualquer polêmica. Era um círculo à parte dentro da Escola, um lugar de atmosfera mutável, mas no qual ela sempre se sentira à vontade.
          E agora, de repente, seus companheiros de torre haviam chegado ao fim daquela etapa, e estavam prontos para partir.
             E cada um dos três, à sua maneira, lhe faria falta.
           A porta do seu quarto estava aberta, assim como o baú em que Vergena vinha arrumando seus livros e outros objetos, mas o aposento estava vazio. Tarja olhou para o outro lado do pequeno corredor e viu os amigos reunidos no quarto dos rapazes, enchendo taças de vinho que mantinham aquecido sobre um braseiro. Erdon, outro candidato a concluir o aprendizado, também estava lá, deitado na cama de Lear e fitando os pequenos sóis pintados no teto. Lembranças que, provavelmente, os próximos habitantes do quarto iriam apagar.
           - Tarja! Como estão as coisas? – indagou Lear, assim que ela entrou no quarto. – Não vá me dizer que eles já terminaram!
           - Não, mas fizeram uma pausa. Um criado foi chamá-los. – Tarja se sentou ao lado de Gwyll e pegou uma taça de vinho. – E saíram levando os papéis, acho que não pretendiam voltar à sala tão cedo.
           - Será? Por que você não ficou mais um pouco?
        - Sinceramente! Ela estava vigiando a sala para você! – replicou Vergena, as sobrancelhas se unindo sobre os grandes olhos oblíquos. – Ficou à janela, de pé, durante mais de uma hora, quando podia estar fazendo alguma coisa mais divertida! O que mais você queria?
           - Ela ficou por mim também – disse Gwyll, em tom conciliador.
         A resposta se limitou a um olhar irônico por parte da elfa. Assim como ela, que assumiria o posto de Mestra das Águias em Scyllix, Gwyll já tinha sido confirmado como um dos aprendizes a receber sua espada, e ainda tinha todas as chances de ser aceito para prosseguir os estudos na Escola de Magia de Riverast. Não precisava de alguém que espionasse a janela da sala dos mestres e o informasse de cada gesto de Finn ou carranca de Kieran. Lear, no entanto, não tinha certeza de que conseguiria nenhuma dessas coisas, e a ansiedade começara a levar a melhor sobre ele nos últimos dias. Daria tudo para saber o que estava sendo dito a seu respeito.
          - Pelo que pude perceber, não houve discussão até agora – disse Tarja. – O que quer que tenham conversado, estão todos de acordo. Mas foram Mestres Algias e Sophia que falaram mais. Deve ser sobre a ida de Galdor e Lahini para a Escola de Artes da Cura.
        -Talvez – Gwyll concordou. – Eles já foram aceitos, bastando a recomendação de Mestra Sophia. Sabem até qual a casa em que vão se alojar, uma tal de Solar das Ervas. Deve ser meio sem graça, só com magos curandeiros... espero que eu consiga um lugar mais interessante, porque...
        - Sim! A sua casa vai ser mais interessante, de forma que você nem sinta falta daqui – disse Tarja, num rompante. Gwyll teve um momento de surpresa, mas em seguida compreendeu e desviou o rosto de faces avermelhadas. Tarja fez o mesmo, mordendo os lábios para se impedir de continuar. Aquele não era um assunto para ser tratado ali.
    - Pessoal, tenho novidades! – Uma voz suave anunciou a chegada de Nardus, o último dos aprendizes cujo futuro estava na berlinda. – Eu estava na cozinha e ouvi quando mandaram servir uma refeição para um novo hóspede. – É um emissário de Riverast! E ele trouxe um baú cheio de cartas e encomendas para os mestres!
       - Aaaai! É agora que vão demorar a se reunir de novo! – Erdon estapeou a própria testa, fez uma careta. – E eu aposto que entre essas cartas há algumas para Mestre Finn, dizendo que não têm interesse em receber nenhum nascido sem o Dom!
      - Bobagem – contestou Vergena. – Se você e Nardus conseguirem a espada, estão iniciados, podem prosseguir com os estudos para os círculos superiores. Isso foi assegurado por Mestre Camdell ao fundar esta Escola.
      - É verdade, Erdon. Devíamos nos preocupar se vamos ter a espada ou não. Da minha parte, vou entender se me mandarem esperar mais um ano – disse Nardus, coçando o queixo onde despontava uma barba rala. – Na verdade, acho que até seria bom... se eu pudesse estudar mais ritualística, estando ainda aqui, com Mestre Finn e Mestre Urien...
       - E a Mestra de Sagas, claro – disse Erdon, com malícia.
     Nardus enrubesceu violentamente e não respondeu. Tarja e Vergena trocaram um olhar significativo e Gwyll balançou a cabeça, mas Lear não pareceu ter percebido, envolvido como estava em seus próprios problemas e dramas.
      - Estou aqui há dez anos, mais tempo que qualquer um – lamentou ele. – Sou o aprendiz mais velho da Escola. Se ficar ainda mais, o que vai acabar acontecendo? Vou ter aulas com Padraig? Com a filha do Mestre Thorold? Sim, porque Tarja e o grupo que entrou com ela estão quase me alcançando. Quem sabe ainda levam a espada antes de mim.
       - Que nada! Precisamos de mais um ano, pelo menos – disse Tarja, para animá-lo. – Nossa meta é entrar para Riverast, e Mestre Kieran prometeu nos recomendar, mas temos que trabalhar duro nessa última fase. Precisamos nos aprimorar no combate mágico e fazer meditação, porque ainda fico muito dispersa, enquanto ele...
       - “Ele” é Razek, não é? – interrompeu Vergena. – Porque o restante do seu grupo vai precisar de mais do que um ano. Mas, se está falando só de vocês dois, não se discute.
       - Claro que é só dos dois. São um casal, não são? Tarja e o Esquentadinho – brincou Erdon.
      A frase soou sem maldade, fazendo os outros sorrirem, à exceção de Gwyll. Este apenas se voltou e olhou para Tarja... não com ciúmes, o que seria inesperado, nem com malícia, o que a deixaria irritada, mas no fundo não mudaria as coisas. Não, em vez disso ela viu em seus olhos a pior coisa que poderia encontrar.
        Alívio.

        ********

        Quem leu o livro ou acompanha o blog deve ter percebido que este conto se passa alguns meses após os acontecimentos relatados em O Castelo das Águias. Alguns aprendizes do Terceiro Círculo se preparam para receber o título de magos (num ritual em que recebem uma espada e uma tiara das mãos do mestre com quem têm mais afinidade) e, enquanto uns estão tranquilos, outros roem as unhas de ansiedade para saber o que será decidido a seu respeito.
         Este conto alternará a perspectiva de Tarja, que ainda não está preparada para deixar a Escola, e um dos que alimentam expectativas, Lear Encanta-Dragões. Espero que gostem e prossigam a leitura nas próximas postagens! 


Parte 2

2 comentários:

  1. Criativo e interessante.Vou acompanhando.

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    1. Obrigada! Já temos três partes do conto postadas, espero que tenha visto e que continue a acompanhar. Abraços!

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