quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Passo Além do Círculo - Epílogo: Cinco Magos, Dois Amantes e um Mundo a Descobrir



               O festival do solstício de inverno era sempre muito animado, mas o daquele ano passaria às crônicas do Castelo das Águias como o melhor de todos. Era o último de Lear, aquele de quem toda a Escola sentiria saudade, e que, como se esperava, deu tudo de si para bem desempenhar seu papel. Desde a conversa que tivera com os mestres na Ala Amarela até a outra, ainda mais secreta, com Mestre Kieran – durante a qual os madrugadores foram brindados com um espetáculo de águias, soldados e catapultas criados por ilusionismo na muralha -, o Encanta-Dragões andava compenetrado, empenhado em provar seu valor, e o resultado foi uma atuação que era a própria essência da Arte transformada em Magia.
               Tarja também participou da peça, mas seu papel era discreto: uma das aldeãs que clamavam aos Heróis por boa caça e colheita. Isso a manteve nos bastidores boa parte do tempo, sem ver as reações de Razek, que dessa vez estava sentado entre os espectadores. Enquanto a peça se desenrolava na arena, ela pensava mais uma vez sobre a decisão que tinha tomado a respeito dos dois, o quanto aquilo a comprometeria e afetaria seu futuro, mas, principalmente, o quanto estava ansiosa para que pudessem conversar. Talvez não houvesse como fazê-lo na festa, mas seria em breve, e isso talvez já acarretasse algumas mudanças. Só esperava que resultassem em algo bom para os dois.
              Quando a peça acabou, uma breve fala do Mentor Camdell foi a deixa para que a festa tomasse conta do Castelo. Música irrompeu de um canto do palco, tocada por artistas contratados na cidade, pois tanto Mestre Urien quanto os aprendizes que o haviam auxiliado na apresentação queriam dançar e se divertir. Pares se juntaram, amigos formaram uma roda, cerveja e vinho jorraram dos barris enquanto mais um assado girava no espeto. Alegria!
              Os cinco magos recém-ordenados estavam por ali, orgulhosos em suas tiaras e trajes de ritual. Lear fora o único a trocá-lo pelas roupas que usara na peça, mas de qualquer forma ele estaria colorido e reluzente. Lahini e Galdor usavam mantos verdes, elegantes e discretos, enquanto Vergena impressionava numa túnica azul e prateada. Gwyll também vestia azul, e seu olhar vez por outra pousava em Tarja, mas nunca se detinha mais do que um momento. E qualquer um, até mesmo ela, percebia que ele já começava a viver em outro universo.
              Em meio à confusão e às risadas, Tarja escapuliu dos amigos que a puxavam para a roda e foi até uma das mesas, onde se serviu de queijo e pão com nozes e passas. Não podia ingerir carne nem álcool até que terminasse a cerimônia na qual seria uma das assistentes, a qual estava marcada para a noite seguinte, mas outras guloseimas eram permitidas. Feito o prato, ela se afastou da mesa, passando por Mestra Anna, que dançava numa roda com os aprendizes mais novos, e pelos dois homens que a olhavam: Nardus, já meio alto e de cara triste, e Mestre Kieran, com seu sorriso indecifrável. Razek estava com ele, ambos segurando taças que deviam conter suco de fruta, porque também não podiam tomar cerveja nem vinho.
               Os olhos do rapaz estavam presos em Tarja. Ele trocou algumas palavras com Kieran, que apenas assentiu com a cabeça. Depois, pegou outra taça e se aproximou de Tarja, com seu melhor sorriso. Parecia um pouco o do Mal, a marca do mestre que Razek venerava e às vezes imitava. A diferença é que era fácil decifrá-lo.
             - Framboesa – anunciou o rapaz, entregando-lhe a taça. – Está bem doce, é bom depois desse queijo horrível.
             - Queijo delicioso – contestou Tarja, e tomou um gole do suco. – Isso também está bom. Quer dançar?
             - Depois. Agora quero falar com você – disse Razek. Isso a intrigou um pouco – afinal, era ela quem queria falar com ele – mas Tarja se limitou a assentir e a deixar que o rapaz a conduzisse para longe da arena, onde estavam os músicos. Buscando um lugar mais isolado, acabaram por se afastar do anfiteatro e a se sentar num banco de madeira, ao lado do galpão de Mestre Tomas, onde os sons da festa chegavam até eles como um murmúrio a distância.
             - Então – disse Tarja, mal haviam se acomodado. – O que você queria dizer?
             - Eu, hum... Bom, não é nada de mais. – Razek assumiu um ar inocente. – É que Padraig faz aniversário por estes dias, e a mãe dele resolveu dar um jantar para alguns amigos. Não os da Escola, mas os que ele tem na cidade, gente do Templo e coisa assim. Só que nós dois partilhamos um quarto e temos estado bem próximos... então, ele me convidou para esse jantar, e eu quero saber se você viria comigo.
              - Na casa de Padraig? – Tarja franziu a testa. – Mas eu não sou tão amiga dele.
              - Não, mas eu... eu não quero ser o único meio-elfo à mesa. Sério! – exclamou o rapaz, vendo que ela sorria. – São todos humanos, acho que até um preste, e vão ficar olhando para a minha cara e as minhas orelhas. Gosto do Padraig e quero estar lá, mas preferia não passar por isso sozinho.
              - E por que eu, então? – desafiou a moça. Razek abriu a boca, pronto para responder, depois pensou melhor e ficou em silêncio. Parecia pouco à vontade, e Tarja sabia exatamente qual a razão, por isso decidiu não prolongar o desconforto do rapaz.
               - Não precisa ficar vermelho – disse ela, tocando-lhe a face. – Estou só brincando. Claro que vou com você.
               - Vai mesmo? Não precisa, se não quiser.
               - Vou, sim. Talvez seja divertido. E ouvi dizer que a mãe de Padraig cozinha bem – sorriu Tarja. Razek também sorriu. Seus dentes pareciam ainda mais brancos em contraste com a pele morena, e os olhos eram brilhantes. Ele hesitou um momento, depois se aproximou e a beijou de leve nos lábios, um toque de calor em meio à noite de inverno.
               - E depois disso – falou, baixinho. – Quer dizer, não a festa, mas a cerimônia de Vergena. Quando acabar o trabalho mágico. Vamos ficar juntos?
               - Engraçado você falar nisso – respondeu Tarja, no mesmo tom. – Eu estava para perguntar se você gostaria de se mudar para o meu quarto, depois que Vergena for para Scyllix.
               Suas palavras provocaram um turbilhão em Razek. Ele estremeceu, tocou o ombro de Tarja, depois afastou a mão, como se temesse machucá-la. Por fim, depois do que pareceu um longo tempo, murmurou:
                - Você e eu... quer dizer, nós viveríamos juntos? Não só como amigos, mas...
                - Como amigos – Tarja confirmou – e às vezes mais do que isso, quando nós dois quisermos que seja assim. Seria o mesmo que agora, só que moraríamos no mesmo quarto.
                - Sem o Gwyll no Castelo – lembrou Razek, com os olhos cintilando.
                - Sem o Gwyll – concordou Tarja, mas algo na expressão dele a fez acrescentar: - Mas, por favor, não pense que isso é mais do que realmente é. Gosto de você, Razek, quero tentar fazer com que isso cresça, mas não posso prometer nada. Não sei se vou seguir outros caminhos, conhecer outras pessoas. E não quero que você, também, se feche para isso.
                - Mas sou fechado – disse o rapaz, com resolução. – Sempre me neguei a tudo e a todos até que a conheci. E não sei explicar por que isso acontece; tudo que sei é que sempre quis estar com você, você e mais ninguém, e que ficava morto de raiva quando a via com outro.
                - Raiva de mim? – indagou Tarja, ao que Razek sacudiu a cabeça.
                - De você, não. Raiva dele, e de mim também, por ser desse jeito. Mas talvez não seja culpa minha. Você saiu aos elfos da sua família e não vê problema em estar com várias pessoas; já eu tenho um lado humano, que sente ciúmes, e um lado que vem da minha tribo, onde num relance você pode passar a amar alguém para a vida toda. É assim que eu sou, Tarja – concluiu, largando a taça para segurar os dois ombros da amiga. – E é assim que eu gostaria que fosse entre nós, mas finalmente entendi que não posso apressar o tempo. Se para você tem de ser aos poucos, então que seja. Eu estou pronto para tentar.
                 Calou-se, as mãos nos ombros dela, os lábios apertados no esforço de conter sua emoção. Tarja meneou a cabeça, também comovida: aquele fora o maior discurso que ela já ouvira de Razek... e, para sua alegria, parecia inteiramente sincero.
                 - Bom – replicou ela, disfarçando com um sorriso. – Parece que Padraig vai perder seu companheiro de quarto.
                 - Ele não vai se importar, e não será por muito tempo – disse Razek. – De qualquer forma, assim que Vergena partir...
                 - Você faz o quê? – perguntou uma voz feminina, fingidamente zangada. Tarja e Razek se voltaram e se depararam com Vergena, que se aproximava a passos lentos, toda brilhante em sua tiara e manto prateados. Alguém vinha atrás dela, um homem alto e de ombros largos que Tarja supôs ser Kieran, mas logo suas roupas revelaram tratar-se do Encanta-Dragões. Por que ele estava ali e não na festa?
                 - Vocês sumiram de repente – disse Vergena, com um sorriso que desmentia o cenho franzido. – Achei que tinham desistido de ajudar no meu ritual.
                 - Claro que não! Estamos só conversando – Tarja garantiu. – Qualquer outra coisa fica para depois de amanhã.
                 - Digo o mesmo – declarou Lear. – Mestre Kieran acha que eu devo assistir a essa cerimônia de Mestra das Águias, e, além disso, receber uns ensinamentos sobre defesa e combate. Então, estou como vocês. Nada de carne, nem vinho, nem... nada.
                 - Bom, a Magia tem um preço – filosofou Vergena. – Vamos precisar nos abster de coisas várias vezes por ano, talvez por tempo prolongado, se quisermos seguir esse caminho. E só entramos no Quarto Círculo. Ou melhor – acrescentou -, acho que na verdade ainda estamos no Terceiro, e tudo que fizemos se limitou a dar um passo para fora dele. Nem fomos muito longe.
                 - Mas vamos – disse Lear. – Estamos indo, principalmente eu e você; e Riverast tem seus próprios desafios. Penso onde isso vai nos levar. – Ergueu a cabeça, olhando para as estrelas. – Se voltaremos a nos ver, se vamos estar muito diferentes daqui a cinco, dez ou vinte anos. O que vocês acham?
                  - Eu vou ser o mesmo. – Razek jamais faria confidências ao Encanta-Dragões.
                  - Eu não faço ideia – disse Vergena, olhando para a amiga. – E você, Tarja? Ainda tem um ano ou dois aqui em Vrindavahn. Como acha que vai ser o futuro?
                  Tarja encolheu os ombros, sorriu, mas ficou em silêncio. Na verdade, não sabia o que falar, embora houvesse passado muito tempo dizendo a si mesma que poderia controlar seu destino e inventando cenários ora bons, ora alarmantes. Agora, porém, sabia que não havia certezas, e não se afligia com isso. Tudo que sabia é que fizera escolhas, e deveria continuar a fazê-las e a esperar que fossem acertadas.
                 Pois a verdade é que nenhum mestre, nenhum ensinamento, nada poderia antecipar por completo aquilo que ela encontraria após o primeiro passo para além do círculo.

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Parte 6.5

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É isso, Pessoas Queridas. O conto chegou ao fim. Mas todos esses jovens magos (e os não tão jovens) têm muitas histórias pela frente, assim como seus aprendizes, os artesãos e, claro, a nossa Mestra de Sagas.

Espero que continuem conosco para que possamos compartilhá-las.

Até breve!

Ana Lúcia Merege

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