A família de Ethel morava algumas casas adiante, perto do pequeno templo consagrado a Freyr, o Senhor da Colheita. Kyara as acompanhou até lá, seus ouvidos atentos à conversa das pessoas que deixara para trás. Algumas a criticavam, afirmando que não devia ter vindo ao povoado, mas várias outras diziam concordar com seu conselho para os próximos tempos. Entre esses últimos estavam Wilf e sua mulher, e não foi uma surpresa perceber que deixavam o grupo e subiam a rua atrás dela.
- Vamos com vocês – disse o velho, quando a alcançou. – Nossa casa é perto, e talvez eu tenha uns ovos para repartir.
- Ainda não agradecemos as galinhas – disse Anna, tentando sorrir: aquilo fora logo após a morte de Raymond. – Eu cuidei bem delas, e estavam dando ovos todos os dias. Mas agora isso acabou.
- Ninguém mais tem animais – concordou Wilf. – Mas fui ao campo ontem e não estiveram lá. Ainda podemos ter boas colheitas no verão.
- Se houver braços para isso – disse sua mulher.
Ethel empurrou a porta, murmurando um pedido de desculpas pela casa. O exterior fora preservado, mas os sinais da invasão eram visíveis lá dentro, embora não houvesse manchas de sangue. Ninguém golpeado na cabeça pelo simples fato de pertencer a uma raça diferente; nenhuma donzela. No fim das contas, até que a família tivera sorte.
Anna desapareceu assim que entraram, puxada pela amiga para um quarto no interior da casa. Kyara se sentou no único banco intacto enquanto os outros acendiam o fogo e punham água para ferver. Falaram em desenfaixar e, de novo, limpar seu ferimento, mas a ideia foi posta de lado, já que não dispunham de remédios. Então, as mulheres foram colher verduras para um caldo, deixando-a com o velho Wilf, que cruzou os braços e a fitou com o olhar franco.
- Bem, Kyara, o que vai fazer? – indagou. – Vocês não podem continuar sozinhas naquela cabana. Que tal se ficassem conosco? Em troca de uma ajuda no campo, eu lhes dou abrigo e comida, e até algum dinheiro se conseguir vender uma parte da safra.
- Obrigada pela oferta, mas não posso aceitar. – Um rangido na porta sublinhou a pausa em sua fala. – Não entendo de colheitas nem do campo. Só da floresta. E é lá que vou estar a partir de amanhã.
A porta se abriu em meio à última frase. Recortados contra o céu, úmidos da chuva que continuava a cair, estavam três meninos, não exatamente crianças, porém jovens demais para ir à guerra. Kyara conhecia cada um deles e até lhes dera apelidos, mas não sabia seus nomes, nem fazia ideia de quem eram os pais. Não era o que costumava perguntar a quem surpreendia caçando clandestinamente na floresta.
Nem mesmo quando salvava suas vidas.
- Dama elfa. Nossos respeitos – disse o menino mais alto, fazendo uma mesura.
- Fica quieto – rosnou outro garoto, mais robusto e de cabelos claros. – Parece um bobo falando desse jeito.
- O que vocês querem? – perguntou Kyara, sem muita paciência.
Os garotos se entreolharam, como se receassem falar. Momentos depois, a mãe de Ethel voltou da horta, trazendo um maço de verduras.
- Que bom que está aqui! Junte o feno que os malditos espalharam. Hoje temos hóspedes – disse ela ao de cabelos claros.
- Então ele é seu filho? – indagou a elfa.
- Sim. Não o conhecia? É o mais novo, Martin. Este é meu sobrinho Lutwig – disse a mulher, pondo a mão no ombro do menor, que Kyara apelidara de Coelhinho por causa dos seus dentes da frente. – E o mais alto é filho dos vizinhos. O nome dele é Gunther, mas todos o chamam de Cotovia, porque está sempre cantando.
- Eu sei. Mas para mim é Rouxinol e não Cotovia – replicou Kyara. A mãe de Ethel franziu o cenho, sem entender. Foi então que Martin destravou a língua.
- Lá na floresta. Quando pusemos aqueles laços. – Ele se explicava para as duas ao mesmo tempo. – Eu disse que foi o guarda-caça que nos viu, mas na verdade foi a elfa. E também foi ela que distraiu o Barão naquela vez em que apanhamos a lebre.
- Ele estava lá nesse dia? Isso vocês não me contaram! – exclamou a mãe, em tom aflito. – Sabíamos que Raymond era um bom homem, no máximo lhes daria um castigo brando, mas o Barão...! Nem gosto de pensar o que ele faria se os pegasse.
- Ela nos ajudou – disse Martin. – E nos deixou ficar com a lebre, porque já tinha conseguido um cervo.
- Um cervo? Mas... eu não entendo – balbuciou a mulher. – Está querendo dizer que ela o caçou?
- Shhh! Ela o caçou, sim – disse, enérgico, o velho Wilf. – Caçava escondido, vez por outra, assim como os garotos. Mas nem você nem ela querem que isso vá parar em certos ouvidos.
- Claro que não – concordou a mãe de Ethel. – Mas quem diria! Uma mulher caçando cervos!
- Isso é comum no lugar de onde venho – disse Kyara. – Todos caçam com arcos e lanças. E dividimos tudo – não há ricos e pobres entre nós. É o que eu acho que deviam fazer por aqui.
- Nós escutamos quando a senhora falou – disse Martin, e se agachou diante dela. – Também a ouvimos dizer que podia viver da floresta, e foi por isso que viemos. Queremos que nos leve junto quando sair para uma caçada.
- O quê? Ah, não! – exclamou a mãe. – Um laço para pássaros ou lebres é uma coisa, mas cervos? Na floresta do Barão? Esqueçam. É perigoso demais.
- Concordo que é perigoso, mas por causa da guerra. Não do Barão – disse Kyara, e aproveitou para dizer o que estivera entalado durante anos em sua garganta. – Essa é uma coisa que nunca vou entender. Como é que um homem pode ser dono de uma floresta? E como os outros aceitam que ele diga onde se pode ou não caçar? Eu não concordo.
- Nem nós! Leva a gente – insistiu Martin. Seus olhos brilharam, refletindo o fogo da lareira. Isso fez Kyara se lembrar de como costumava chamá-lo.
- Eu queria levar, Raposa Fulva – disse. – Mas com soldados e mercenários por aí, não sei se é uma boa ideia.
- É melhor que você também não vá – disse a mãe do menino. – Veja o que fizeram no povoado... o que fizeram com nossas filhas. Você não pode correr o risco de topar com eles na floresta.
- Pelo contrário. Eles nos pegaram porque estávamos dormindo na cabana. – Apertou os lábios, jurando para si mesma não cometer esse erro de novo. - Ela fica à vista de todos, assim como as casas de vocês. Já na floresta, eu tenho como me esconder de modo que ninguém me encontre. E é lá que minhas armas estão também.
- Então, se é assim – começou Martin, mas foi interrompido pela entrada de um grupo de mulheres. À frente vinha a esposa de Wilf, carregando uma cestinha com quatro ovos; as outras eram gente do povoado, e entre elas estava a que primeiro dera suporte às palavras de Kyara. Vinha de mãos vazias, mas a mulher atrás dela trazia um molho de cenouras, e outra um pão redondo ao qual faltava pouco menos de um terço.
- Está uma confusão na rua – disse ela. – Querem obrigar a mulher do bailio a repartir a comida que escondeu no porão.
- Não podem obrigá-la – observou a mãe de Ethel, voltando-se para Kyara. – Não foi o que você sugeriu, foi?
- Não. E eu nem devia ter dito nada – respondeu a elfa. – É um assunto de vocês e não meu. Afinal, só vou ficar por hoje.
- Então, por hoje, vamos todos comer juntos – ofereceu a mulher que trouxera o pão. – Nós gostamos do que você disse. Achamos que está certa, por isso fomos pegar o que havia em casa e vamos dividir. Não é muito, mas ninguém vai dormir com fome.
Kyara concordou com um aceno. Desde que decidira partir, sentia-se distanciar de tudo aquilo, mas era bom saber que as pessoas estavam colaborando umas com as outras.
Ela lhes fora de alguma ajuda, afinal.
(Continua)...
Parte 2
Final
Adorando a Kyara! E o conto também, Ana, suas descrições são tão gostosas de ler, me sinto dentro da história. Espero que a Kyara e os meninos (amei os apelidos XD) consigam caçar de algum modo \o/.
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