sexta-feira, 3 de abril de 2015

Depois da Invasão (Final)



             A refeição foi preparada nos fogões de Ethel e de mais duas vizinhas. Outras pessoas apareceram, mulheres e crianças de todas as idades e um velho carregando um quarto de porco. Os que se opunham à partilha da comida tinham se fechado em suas próprias casas, e, embora alguém falasse em tirá-los de lá, a maioria concordou que deviam ser deixados em paz.
             - Eles vão vir quando sentirem o cheirinho do assado – disse o velho que trouxera o naco de porco. – Aproveitem bem! Não sabemos quando vamos comer carne outra vez.
              - Algumas pessoas sabem – murmurou Martin, de forma que apenas Kyara ouvisse. Ela o encarou com o cenho franzido, mas não retrucou, porque de alguma forma ele tinha razão. Além disso, não devia falar sobre caçadas, não ali, na frente de pessoas que poderiam delatá-la ao Barão ou a seus homens. Era bem verdade que a tinham apoiado por aquela vez, mas a maior parte ainda a olhava com estranheza, principalmente depois que ela se lavara e trocara de roupa. Ao contrário de Anna, que usava um vestido de Ethel, Kyara tinha optado por trajes mais práticos: um par de calças de lã pertencentes ao Rouxinol, que ficavam só um pouquinho curtas, e uma túnica de Hansel Ferreiro, à qual dobrara as mangas. Isso ocultava as poucas curvas e saliências de seu corpo, de forma que, com o capuz abaixado, ela parecia um rapazinho.
              - É verdade o que o irmão de Ethel disse? – Anna se aproximou, falando em seu ouvido. – Você vai sair para caçar amanhã cedo?
              - Amanhã, não. Hoje de madrugada. Se houver soldados na floresta, vão estar todos juntos e acampados, será mais fácil evitá-los.
              - Posso ficar aqui, não posso? – tornou a filha. – Talvez ir com você fosse mais seguro, mas ainda não consigo andar muito bem.
              - É claro, minha querida. Fique e descanse – disse Kyara, e se inclinou para beijá-la na testa. – Ethel e a mãe dela vão cuidar bem de você. Dentro de um dia ou dois, se tudo estiver tranquilo, volto a passar por aqui.
             Abraçou-a, fechando os olhos para melhor sentir a maciez de sua pele, o aroma de seu cabelo recém-lavado. Tão difícil se separar dela, ainda mais depois de tudo que acontecera, mas era o que devia fazer naquelas circunstâncias. E além disso seria por pouco tempo. Só o necessário para que ela começasse a reconstruir um lar para as duas.
               Naquela noite, quando todos dormiam, ela foi até a cama que a filha dividia com Ethel e a abraçou mais uma vez. Disse-lhe para continuar a ser forte; que tudo voltaria a ser como antes, exceto pela ausência do pai, mas quando olhassem para o céu elas veriam mais uma estrela. Anna desejou que o espírito do Lobo a guiasse na floresta, e assim, munida dessa bênção, Kyara se esgueirou em silêncio para fora do povoado.
               E, momentos depois, percebeu que estava sendo seguida.
            Num movimento rápido, sem dar a entender que ouvira os passos às suas costas, a elfa desviou da trilha, enveredando por uma pequena moita de arbustos. Esperou até que o último dos perseguidores passasse por ela e emergiu das folhagens, apoiando as mãos nos quadris antes de chamar:
                - Ei, vocês! Onde pensam que estão indo?
              O susto foi tão grande que o Coelhinho saltou para trás, quase caindo sobre a lança curta que o Rouxinol empunhava de mau jeito. Os dois respiraram fundo e a fitaram, sem saber o que dizer, enquanto Martin dava um passo à frente.
                - Nós queremos ir também – disse, sem hesitar. – Gunther trouxe a lança que era do pai e pode usar se aparecer algum soldado. Lutwig tem um estilingue.
                - Ouça, Raposa Fulva...
             - E eu sei armar laços e esfolar coelhos e esquilos – prosseguiu o menino. – Nós três podemos ajudar você a caçar. Podemos trazer carne para o povoado. Por favor – implorou, franzindo o rosto. – O que temos de comida não vai durar muito mais.
               Kyara suspirou, erguendo os olhos para a noite à sua volta. Estava calma, e era de se supor que assim também fosse na floresta, onde a chuva devia ter preservado os rastros mais frescos. Fora em noites como esta, há muitos anos, que ela aprendera a caçar, uma criança entre tantas outras da Casa do Lobo, desajeitada, afoita e ansiosa para mostrar seu valor. Esperava passar o mesmo ensinamento à filha, mas Anna jamais fora além das lições mais simples, já que no fundo preferia ser como as moças do povoado. Ainda assim, ela enfrentara com coragem as provações dos últimos dias, e Kyara tinha certeza de que a mesma fibra existia naqueles três.
              No entanto, até a fibra mais resistente pode se romper. A sua quase se rompera, mais de uma vez, ao longo desses tempos de guerra.
                 Ela não podia arriscar a vida das crianças.
               - Escutem, vocês todos. – Ajoelhou-se, ficando da altura deles como se fazia na tribo. – Não posso levá-los para a floresta. Não agora. O que posso fazer, se conseguir, é trazer uma parte da caça para o povoado. Em troca, vocês cuidam de Anna, e talvez possam me arranjar ferramentas e outras coisas. Mas isso enquanto durar a guerra – acrescentou, olhando nos olhos de cada um. – Quando ela acabar, vamos caçar debaixo dos bigodes do Barão. Combinado?
             - Combinado! – exclamou o Coelhinho, vermelho de excitação. O Rouxinol sorriu de leve, fazendo que sim, e empunhou a lança de um jeito marcial. Faltava apenas o Raposa Fulva, e apesar da decepção em seus olhos ele também acabou por se render às evidências.
             - Nós vamos esperar – disse. – Mas você tem de prometer que nos leva assim que acabar a guerra.
              - E vou. Palavra de lobo – replicou Kyara, sem se importar se a entendiam ou não. – Agora, voltem ao povoado e ajudem suas famílias. E tenham cuidado. Vão! – repetiu, quando os garotos já se afastavam. Ainda olharam para trás algumas vezes antes de lhe dar as costas e correr de volta para casa.  
               A elfa os observou até perdê-los de vista, depois respirou fundo e se voltou para a trilha. Uma parte dela sentia muita vontade de deixá-la, de se embrenhar mais fundo na floresta, em busca de pegadas e sinais dos mercenários que haviam invadido sua cabana; mas outra parte replicava, será que ainda havia como alcançá-los? Quanto tempo levaria para isso? E se os alcançasse, e os encontrasse vivos, seria capaz de liquidar a todos e voltar para os que precisavam dela? O que era mais importante? Sua vingança, arriscando-se para antecipar o que o tempo se encarregaria de fazer àqueles homens, devolvendo-lhes o que tinham plantado? Ou a vida que ela e Anna tinham pela frente?
                 Kyara fechou os olhos e buscou imagens da invasão em sua memória. Depois, pensou em si mesma afastando-se dali, deixando aquilo tudo para trás e seguindo adiante. Não que algum dia fosse esquecer, ou mesmo perdoar. Mas sua vida seria melhor se ela a preenchesse com o futuro, e não com o passado e a morte.
                 E o futuro começava ali, naquela trilha. Contornando o lugar em que estavam os mortos, ela passaria pela gruta em que escondia os arcos e flechas, e então caminharia até o rio, onde os animais bebiam no fim da tarde. Seus rastros estariam frescos, e, em meio à quietude da noite, ela não teria dificuldade para chegar até a caça. Uma corrida na floresta, um disparo, talvez um pequeno tropel, e logo haveria carne para Anna e os garotos.
                   E para a gente do povoado, aos poucos aprendendo a viver como uma tribo.
                   E para o Lobo.
                Kyara se deteve, um sorriso nos lábios ao lembrar do espírito-guia. Ainda não agradecera por ajudá-la a ter forças durante a invasão da cabana. Também não tinha como fazer uma oferenda, queimando um pouco de carne ou gordura de modo que a fumaça chegasse aos céus, Uma coisa, no entanto, ela podia dar – e assim, quando retomou a caminhada, a floresta ainda era escura, porém não mais silenciosa.

Lobo, Lobo, mestre dos caminhos,
Ensine-me o que devo saber:
Seguir a trilha dos rastros,
Achar o que procuro,
Tomar apenas o que preciso.
Lobo, Lobo, senhor da floresta,
Acompanhe-me na caçada.

*****

Parte 3

5 comentários:

  1. Que lindo!! Amei! Aaah, já acabou??

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    1. Acabou! Mas Raposa Fulva e bando alegre ainda vão aparecer em futuras histórias de Athelgard, não se preocupe! :)

      O que você achou de a Kyara deixar a vingança pra lá?

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    2. Ana, achei muito coerente. Tudo o que ela pensou é válido: ela corria o risco de não encontrar as pessoas que fizeram isso, de morrer por não conseguir enfrentar a todos eles... e ela tem a filha para cuidar, que é muito mais importante do que a vingança propriamente dita. Claro que o sentimento de fazer justiça é muito forte, mas achei a atitude dela muito bonita e condizente com o que eu conheço da personagem e até mesmo com a personalidade da Anna, que teve a criação dela, né?

      Concordo com a Kyara: a vida que ela tinha pela frente com a Anna é muito mais importante. :)

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    3. Corrigindo: a Anna do Castelo teve a influência dela na criação, né, pois é a avó.

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  2. Isso. Muito obrigada pelo feedback! Aposto que você vai gostar de ler sobre Anna (neta) e Kyara no livro que vem por aí!

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