domingo, 26 de julho de 2015

O Voo do Imortal : Fanfic de Gabriel Ferrera


              As sagas inspiram. Mas sob o brilho inebriante do sol que cortava a copa das árvores não restavam dúvidas. Elas nunca haviam inspirado tanto alguém, homem ou Herói, como agora te inspiravam. Teus passos eram desleixados, afobados. Tinhas pressa. Sim, eram aqueles os passos furtivos de um ladrão. Mas os únicos que viriam a perceber o furto estavam no casamento, e para estes já havia um fim planejado, não é mesmo?
              O ar te faltava. E não só pela altitude do terreno,mas também pela altitude do ato. Breve cortarias aqueles céus... Conseguirias tua vingança tão almejada. Qualquer um daqueles tolos chamaria de extremos os teus atos, como já tinham feito antes. Tolos de mente pequena... Tu sempre buscaste a perfeição. Eras melhor que todos eles, por isso eles o rejeitavam. Escória imunda que adorava alunos imbecis como Lear de Madrath...
              Pobre Dellian... Eles te machucaram tanto... Agora todos riam, como bastardos em festa que eram. No começo gostaras tanto do Castelo das Águias... Uma escola mágica de torres coloridas. Aquelas torres nunca foram tão negras para alguém como para ti. Tarefa difícil agradar aos jovens, verdade. Mas sob o frio de pedra daquelas paredes tu sentiste na pele o quanto eles podiam ser cruéis. Dellian, o estranho. Assim foste conhecido e rejeitado; mais do segundo que do primeiro.
              Todo o sonho esperançoso que tiveste com o Castelo derreteu como cinzas em tua boca. Tentaste, verdade. Mas o que fazer quando não se consegue agradar a nenhum dos mestres? Mas guardavas fortemente a memória do dia em que as cores voltaram. Do dia em que o brilho do sol ganhou avidez nos corredores. Do dia em que Anna de Bryke deu sua primeira aula.
              As sagas fluíram aos teus ouvidos e ao teu coração. Daquele momento em diante cada suspiro clamava  por Anna. Mas os outros jovens... Ah... Malditos jovens! Foste motivo de escárnio ainda maior. Lembras ainda? Quando foste chacota: o mascote da Mestra. Cachorrinho de Sagas. Mas tu eras bom com as sagas... Nunca foras bom com qualquer outra coisa ensinada no castelo. Ainda mais se comparado a Vergena ou outros Elfos brilhantes, que eram também alunos brilhantes.
              Lembras ainda do dia em que Anna de Bryke te levantou do pranto e dedicou a ti e a ninguém mais uma saga que jamais esquecerias? O coração pulsava ante aquelas memórias. Os lábios de Anna numa vibração tão doce enquanto enxugava tuas lágrimas. Memórias apenas... Já não era mais assim.
               Mestra Anna fora sempre gentil e tu não te conformavas como podia estar apaixonada por um bruto como Kieran. Suspeitavas de que ele a havia enfeitiçado; bem sabias que ele era capaz disso. Mas as sagas te moviam... Mostraste melhoras no aprendizado das outras áreas, sempre ansiando o momento em que poderias ouvir Mestra Anna contar histórias como só ela sabia... Uma em particular chamou tua atenção. Uma em particular levou o brilho dos teus olhos a arder como uma chama imortal. E era apenas uma história. A história de uma fênix.

***

               Ficaste fascinado com a transformação das águias feita pelos alunos do Terceiro Círculo. Conhecias os encantamentos e as palavras para verter em realidade a história da Mestra Anna. Teu coração palpitava com o simples imaginar de vê-la sorrir ante a ave de fogo, e saber que foras tu o responsável. As primeiras idas à floresta pareceram tão inocentes... As primeiras invocações... Tu conseguiste chamar as águias e controlá-las melhor que qualquer aluno naquele castelo, mas todo experimento tem seus fracassos...
              Na vida há duas formas de morrer: a inevitável e a que escolhemos. A primeira forma é quando nos deixamos levar pela rotina. Matamos sonhos pela "praticidade" e para agradar os outros. A segunda é definir se teremos uma morte lembrada -- pois a vida ali ceifada tem alguma importância -- ou se será apenas mais uma. Tu já morreras da primeira maneira. Estavas decidido a não deixar que a segunda te levasse. Sim, terias teus dias futuros em leito de glória, não de morte. Terias glória.
               Serias imortal.
              A notícia corria os corredores com sussurros que iam entremeados de pavor e curiosidade. O número de águias parecia diminuir. Mestre Kieran tinha suas suspeitas presunçosas e, ainda mais com a tensão da presença do conselho de Scyllix em Vrindavahn, ninguém suspeitaria do pobre Dellian, o estranho aluno fracassado. Mas justo naquela noite foste descuidado... Naquela noite em que estavas tão esperançoso, estavas em contrapartida, tão fadado ao fracasso...
                O êxtase não permitiu que viesses a saber que Kieran estaria na floresta naquela noite... Justo naquela noite em que o encantamento fugiu do planejado e os gritos agonizantes da águia em chamas ecoaram por dentre as árvores como um silvo demoníaco. As chamas dançavam tão rápido quanto batia teu coração. E, em poucos instantes, estava armado o circo. Os alunos, horrorizados, não conseguiram impedir que Kieran te socasse com ódio profundo.
                Quando foste levado de volta ao castelo, sob os urros de Kieran, fora de si, que jurava que te mataria se ousasse pôr os pés na floresta de novo, sob o ódio, sob os olhares de soslaio dos alunos, sob a atmosfera que se erguia abafando o som dos murmúrios e dos urros e de qualquer outro som, tu a viste. Ela, Anna de Bryke, tão bela como sempre. Tão bela como quando no dia em que declaraste teu amor a ela com uma saga de sua autoria... Evento este que deveria ter sido um momento mágico entre os dois e desmoronou como se os céus houvessem caído sobre teus ombros. Assim que terminaste, ouviste os risos de Lear e outros alunos... E ouviste de Anna apenas silêncio. Enquanto corrias dali, contendo a todo custo as lágrimas, deixando as folhas de pergaminho para trás...
                E ali estava Anna. Por um instante o negro daqueles olhos trouxe algum conforto. Isso antes de ela perceber a situação e voltar para ti a expressão do mais profundo nojo... Anna tremia em horror com a carcaça carbonizada da águia no chão, sobre um manto velho. Kieran continuava berrando suas ameaças, agora contido pelos outros mestres. Todos pensaram que ele gritava pelas águias... Mas tu sabias que não; ao menos não somente. Depois do circular de tua declaração, Kieran te tratava como o mais sujo trapo dentre os alunos. Aquela ocasião era somente desculpa para que ele exigisse tua expulsão...
                 Naquele salão frio inundado de sons ininteligíveis, estavas jogado ao chão, envergonhado ante todos. As feridas na face latejavam, mas o que mais doía era a expressão de Anna. Melhor seria ter dela a apatia do que aquele olhar de repúdio... Mas o que veio logo depois tirou o teu chão. Anna de Bryke vinha em tua direção, mas não vinha para ti. Vinha confortar Kieran de Scyllix. Ela, que inspirara todos os teus feitos, agora não abriu a boca para tua defesa.

***

                 Camdell foi compassivo e benevolente, mesmo ao te banir para sempre dos domínios do castelo. Eras um menino... Sem família. Sem terra. Sem nada. Ele te encontrou um lugar, o aprendizado em uma casa de comércio onde poderias ter uma vida digna e um dia seguir uma profissão. Tu, porém, partiste após uns dias, sem avisar a ninguém. Nas ruelas mais imundas da cidade encontraste sustento. E, enquanto prestavas os serviços mais sórdidos nas tavernas sujas, ouviste as notícias. Hillias e a traição do Conselheiro Waclav te interessavam tanto quanto o gosto de sal e cerveja dos marinheiros... A grande notícia era que Anna e Kieran iriam se casar.
                 Teu estômago revirava como se tivesse vida própria. Sentias a cruel punhalada da mais perversa traição. Anna, que tanto te inspirava, se atirava aos braços daquele ogro, agora em casamento. Nada te feria mais mais do que ver a vil felicidade que ostentavam os dois no porto da cidade ao receberem os parentes vindos de Bryke. Mas algo chamou a tua atenção, ou a atenção de tua alma, se é que são coisas distintas. O elfo de cara tatuada. Sabias quem era. Era Zendak, o xamã.
                Uma voz corroía agora teus pensamentos. Uma voz mais tenaz que todas as outras que gritavam durante teu sono. A voz guiava teu olhar para a sacola de talismãs. Sim... Ali havia de estar. O talismã do qual Anna, aquela maldita bastarda, tanto falara. A pluma de uma fênix. Não uma como as outras, mas a pluma de uma fênix perversa que emanava poder assim como fogo. Uma ave de olhos amarelos e consciência negra. Aquela seria a peça final de teus planos. Com ela, tu concretizarias tudo o que sonhaste. Ainda querias ver a expressão de Anna ante tudo. Mas não mais almejavas ver um sorriso rosado naquele rosto. O sorriso brotava no teu rosto ao imaginar, no dela, dor, agonia e sofrimento.
                  Roubar o talismã de Zendak não fora tarefa difícil. O castelo estava quieto e tu entraste e saíste como mais um aluno. A pluma alaranjada com traços enegrecidos borbulhou energia em tuas mãos. Todos estavam ocupados com a cerimônia. Breve tudo se inflamaria ante os olhos deles e os que ainda vivessem depois de tudo chorariam dentre as cinzas.

***

                 Tu vibravas, agora. A águia já ali estava. Já sobressaiam nos teus ouvidos os gritos e as faces agonizantes em impotência. Darias a eles por meio do fogo a oportunidade de sentirem por um momento o que tu sempre sentiste. E quando enfim te compreendessem, seria a última coisa que fariam. Prestaste muita atenção ao ritual. O círculo, as gravações, os dizeres, a águia, a pluma... Tudo perfeito. Dizia a lenda que a fênix a qual pertenceria aquela pluma era controlada por um mago muito poderoso. Por um mago conhecedor da mesma magia da floresta de Zendak, o xamã. Um mago capaz de se transformar em tal criatura.
                Tu terias em breve aquele mesmo poder. Vislumbrarias uma fênix viva. E, com a presença dela, te transformarias também em uma, serias imortal. Terias poder para fazer Kieran engolir o orgulho junto ao fogo. Mas o que viste foi o suficiente para fazer teu coração parar. Lear de Madrath te vira. Dizia, sempre com sua insolência, que havia percebido tua presença. Ele somente, dentre tantos magos. Disse que sabia o que tu pretendias fazer e iria impedir. O primeiro passo de Lear deixou-te sem saída. A pluma frente à águia enquanto os dizeres escorriam de teus lábios. Não haveria tempo para esperar a transformação da ave e depois recorrer à tua. Necessitariam, pela pressa do momento, ser simultâneas. As chamas engoliriam a ti e a ela.
              Tu bailaste na inebriante dança de fogo e fumaça, frutos de tua própria escuridão. A dor chegava a torcer os ossos... Estavas perdido no calor que te consumia. Mas, mesmo em meio àquele fogaréu, sentias ar em teus pulmões. Ar de vida! Era real! Tua fé havia sido recompensada!                                Respiravas fogo e não morrias. Pela primeira vez não te importavas com a dor. Nem mesmo ligavas para as chamas que dissolviam tua pele em meio àquela névoa negra que brotava agora de teu ventre. Era suportável tal dor. Suportável ante o dom que te traria a imortalidade de uma fênix.
Então, como se as eras houvessem já se consumado, as chamas cansaram de consumir-te, de destruir-te, desarraigando-se dos instintos mais profundos da natureza do fogo, que é a destruição, e passaram a recompor-te. Como para uma fênix, o fogo te fazia bem. Entre o restolho de flamas, tu te punhas em pé. Cada parte tua no lugar... O fogo se extinguiu. Mas tua face jazia oculta ante o negrume que brotava dos pés à cabeça. Eras uma chaminé cuspindo um véu negro pútrido e latente.
               Com a diminuição da fumaça, se distinguiam teus dedos muito afilados e tuas pernas, mas ainda nem tua silhueta completa era visível. Parecias uma brasa de carvão insistente em queimar. Mesmo antes dos detalhes de tua pele se sobressaírem, Lear pôde contemplar dois brilhos amarelos inumanos... Nem olhos eram... Mas eram o que tu tinhas mais próximo disto. Se os olhos são as janelas da alma, tua alma era um poço brilhante de perversidade cristalizado na maldade mais oculta numa vereda de loucura.
              A fumaça, agora escassa, permitia a visão de tua expressão doentia sob a pele que mais parecia os restos de uma fogueira moribunda expirando fios de fuligem pela manhã. Tu riste. Não sentias mais dor alguma. E sabias que nunca mais voltarias a sentir. Que nunca mais tua pele tremeria ante o temor de um corte. Tudo girava ao teu redor. Era uma dança. Uma dança da liberdade. Teu novo eu estava enclausurado naquela casca carbonizada. De braços abertos tu dançaste. Surgias das cinzas. As plumas vermelhas e alaranjadas brotavam, quebrando teus braços, impondo tuas majestosas asas. A majestade de uma fênix. Teu espírito renascia das cinzas.
              Ficaste muito feliz em ter aquela plateia em especial. Em ver Lear amedrontado com os resultados do ritual. O jovem fez menção de correr. Tuas garras já haviam brotado, destrinchando teus pés. Lear te deu as costas. Um salto, foi o que deste. Não foi um voo. Foi só o suficiente para cravar tuas garras nas costas de Lear, fazendo os gritos dele ecoarem por toda a floresta, atrapalhando o ápice da cerimônia imunda entre Anna e Kieran. A casca cedeu por completo. Tu te completaste. Tua forma nova fez-se perceber agora por todos os magos, pelo xamã e até mesmo pela criança mais insensível dali.
               Um silêncio só quebrado por teus silvos odiosos pesou sobre todos eles. Os gritos de horror se iniciaram quando tu largaste os pedaços em chamas do cadáver de Lear no meio de todos. A fênix caiu com fogo sobre todos. Tu te sobrepunhas a eles. Ninguém fazia frente a teu fogo. Kieran pereceu bem em frente de Anna. A ela mataste por último, depois de ver a agonia de todos. Nenhuma viva alma saiu dali. Até mesmo o castelo queimou com tua vingança.
              Eles pagaram e tu ascendeste aos céus. Voaste sobre toda aquela escória, humana ou elfa.
              Ou assim pensaste.

***

               Não havia Lear te olhando na floresta... Apenas mais um desígnio meu para te levar a concretizar minha vontade. Em minha bondade permiti que vislumbrasses tua vingança. Não sei definir tua expressão enquanto te debatias entre as chamas... Pena, pobre Dellian, mas tua vida precisaria ser dada pela minha. Tu foste o pagamento. Foste útil. Se ao menos estivesses vivo, deverias te sentir feliz em ter servido a esse propósito.
              Quando teu frágil corpo humano terminou de se debater, sem gritos, eu finalmente pude surgir de entre as cinzas. Em grande majestade até, já que era uma fênix que acabara de dar início aos ciclos. Não tão jovem como uma que reinicia, que renasce, mas também não tão deslumbrante quanto uma em seu apogeu de fogo. Mas haveria tempo para isso... Meus olhos amarelos cintilaram...
               Mestra Anna esteve levemente errada em contar a história sobre o talismã de Zendak. O mago não controlava a fênix; o mago era a fênix. Sua alma jazia selada na pluma e sua mente vagava procurando quem pudesse trazê-lo de volta à vida. Mas estava tão fraco... Estava com Zendak, na aldeia, mas seguiu Anna de Bryke, sabia que ela o levaria a um lugar interessante e ela o fez. No Castelo das Águias o mago pôde encontrar uma mente frágil e arquitetar sua ressurreição. Somente um sacrifício de bom grado poderia trazê-lo de volta. E, por acaso, alguém diria que Dellian não entregou seu corpo às chamas?
                 Eu, feliz por ter enfim conseguido levar a cabo meus planos, abri as asas e alcei voo. Não havia por que interromper aquela cerimônia ou arranjar alvoroço ainda estando tão fraco. Mas eu me fortaleceria... Em poucas luas teria meu poder máximo.
                 Estou de volta. Ressurrecto. Mais forte que nunca. E não há mago vivo em Athelgard que possa me deter.

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