-- Ah, então pelo menos para tocar ele sobe ao tablado, não? Bom, já é alguma coisa! – disse Urien, erguendo as sobrancelhas de um jeito cômico. – E é ótimo para mim. Se estou mesmo dispensado, posso beber à vontade. Esse vinho é excelente. Você não sabe o que está perdendo.
-- Pois é, mas hábitos são hábitos. Ninguém da minha família bebe ou jamais bebeu vinho. É verdade que também não comem queijo, uma coisa que eu adoro. Mas queijo de cabra era o que mais me ofereciam em Bryke.
Apertei os lábios, lembrando-me das várias coisas que existiam na vila Odravas, mas não no interior da floresta onde eu vivia com minha tribo. O intercâmbio crescera ao longo dos anos, mas algumas coisas continuavam a ser consideradas apenas “nossas” e outras pertencentes só a “eles”. Isso criava alguns problemas, às vezes, para ambos os lados.
E um deles resultara na história que finalmente eu me propusera a contar.
-- Atenção, amigas e amigos! Nossa querida Anna atenderá a seus pedidos e nos brindará com outra narrativa! – exclamou Finn, e o aviso foi recebido com palmas e assovios. – Andi ap Llyr, aprendiz do Segundo Círculo, irá acompanhá-la ao alaúde, e... Conan, você também?
-- Não, mestre. É que Orm veio dizer que Mestra Anna queria o tambor emprestado – explicou o mais velho dos meus ex-alunos, que se juntara a outros colegas para tocar nos intervalos das sagas. Agradeci e peguei o tambor de couro e a baqueta, lembrando-me – e sorrindo por isso – da primeira vez que o usara para contar histórias da tribo em minhas aulas no Castelo. Jamais um Mestre de Sagas deve ter sido olhado com tanta estranheza.
Andi pegou o alaúde e se juntou a mim no tablado. Não falou mais, apenas olhou nos meus olhos e assenti quando lhe disse que contava com ele. Sua garganta se moveu, mostrando que engolia em seco, e eu me dirigi em pensamento aos Guardiões da minha tribo, pedindo que ficassem do nosso lado.
Se nada desse certo, que ao menos soubessem que eu fizera o melhor que possível.
-- Hey-heya! Pelas presas do Lobo, as penas do Corvo e os bigodes da Lontra! – proferi, em alto e bom som; e então me detive por um instante, observando o espanto em vários olhares. – Um jeito diferente de começar uma saga, não é mesmo? Eu deveria evocar os Heróis, já que sou humana, ou me referir ao Fogo Primordial, se fosse contar uma história como os bardos élficos. Não é assim?
-- Acho que é. Sim. É o que se espera – disseram vozes desencontradas em meio à audiência. Quase todas vinham de pessoas que me conheciam pouco, mas três ou quatro aprendizes e até Mestre Tomas entraram no jogo, embora com expressões diferentes, sorrindo com o canto da boca e piscando para mostrar que sabiam do que eu estava falando. Pisquei também, em reconhecimento, e prossegui, fixando-me ora em um, ora em outro olhar repleto de assombro.
-- Pois abram bem os olhos e os ouvidos. – Era o sinal para que Andi começasse a tocar, bem discretamente, criando uma atmosfera de segredo e de aconchego. -- A história que vou contar é a de alguém que estudou durante anos para ser uma Mestra de Sagas, mas cujo aprendizado decorreu de forma diferente do comum, dentro dos princípios do sábio Odravas. Alguém sabe dizer qual seu preceito fundamental?
-- Da terra – começou Rydel, mas estacou quando desferi um sonoro golpe no tambor. Sorri, fazendo um sinal para encorajá-lo, mas um dos aprendizes já prosseguia:
-- Junto à terra... – Nova batida do tambor.
-- E com os filhos da terra! – concluiu um pequeno coro, igualmente brindado com uma batida.
-- Exato. Era o que dizia Odravas. E seus seguidores criaram muitas vilas, como a de Bryke, junto a florestas onde viviam tribos como a minha. Os resultados foram muito diferentes de lugar para lugar, mas de quase todas saíram pessoas como eu: com sangue das tribos, porém educados por elfos brilhantes. E para não ferir os princípios de Odravas, a educação e o aprendizado sempre respeitavam ao máximo as tradições da tribo hospedeira. Imaginam como era?
-- Devia ser divertido! – exclamou o aprendiz conhecido como Ruivo.
-- Eu iria adorar – disse Freydis.
-- Um pouco confuso, não? – perguntou, timidamente, o mais moço dos Prestes que viera do templo de Bragi. Era a resposta que eu esperava para imprimir entusiasmo à minha voz.
-- Sim! – exclamei, batendo duas vezes no tambor e erguendo a baqueta, para que todos me encarassem como se eu fosse uma louca. -- Era confuso, e divertido, e um desafio constante. Todos os livros que tínhamos para ler falavam de coisas que nunca tínhamos visto, e as que víamos tinham sempre mais importância. Só aprendíamos a ler os mapas do céu dos elfos brilhantes depois de provar que sabíamos nos orientar na floresta; só aprendíamos a história de Athelgard depois de conhecer a da tribo, dos nossos antepassados. E o jeito da tribo de contar histórias é diferente do jeito como se conta nas Terras Férteis. Então, embora minha mestra tocasse bem a harpa e o alaúde, ela não fez questão de que eu aprendesse desde o início. Para quê? Eu era da tribo! Eu podia muito bem usar...
-- O TAMBOR! – gritaram várias vozes, assombradas e divertidas. Assenti, e então comecei a percutir ritmadamente o tambor, os acordes de Andi se ajustando em uma harmonia perfeita. Éramos um duo, mas não estávamos cantando, e sim contando uma história da qual a próxima parte ainda era minha. Mas só a próxima parte.
-- Eu me concentrei em contar e escrever histórias – continuei, ante a fascinação da audiência. -- Registrei todas que conhecia da tribo e escrevi um livro que foi enviado a vários Mestres de Sagas. Um deles chegou às mãos do Mentor Camdell, e começou a correspondência que, ao fim de poucos anos, acabaria por me trazer ao Castelo das Águias. Mas o que aconteceu? Esse convite nos pegou de surpresa! Maryan ainda ia começar a me ensinar um instrumento, pois só depois de alguns anos eu deveria passar pelos testes da escola bárdica! Então o que fazer? Alguém tem ideia?
-- Você aprendeu? – perguntou Amina, completamente arrebatada pela história e o som.
-- Não aprendeu! Ela sempre tem um harpista ou alguém tocando alaúde ao fundo – disse um dos mestres da Ala Violeta.
-- É mesmo? Mas então ela não poderia... – começou o jovem Preste, logo silenciado por vários olhares zangados. Inclusive do seu superior, Preste Drusius. No entanto, mais uma vez ele me dera a deixa que eu esperava, por isso sorri e o encarei, detendo as batidas no tambor e elevando minha voz acima da plateia.
-- O que eu não poderia, Preste? Fale sem medo!
-- Eu... Eu não quis...
-- Você está sem graça – disse Urien, sorrindo lentamente. – Mas seu engano é comum. A escola bárdica forma Mestres de Música, como eu, que têm de dominar pelo menos dois instrumentos; e Mestres de Sagas, como Anna, que devem ter de cor um repertório de histórias. A maioria deles toca harpa ou alaúde, para fazer o acompanhamento, e eu brincava com Anna dizendo que ela devia aprender, mas isso não é uma exigência da escola no caso dela. Estou falando a verdade – acrescentou, erguendo a taça. – Olhem, tem vinho aqui, ainda não estou completamente bêbado.
-- Que bom! – exclamei, entre as gargalhadas do público. -- Assim vai se lembrar de como lhe agradeci... e do quanto nunca poderei agradecer o bastante por sua ajuda, por seu tempo, até por sua implicância, que me fizeram finalmente começar a aprender. Você também, Kieran – acrescentei, olhando para meu marido. – Eu queria que fosse uma surpresa, mas pelo jeito você sempre soube que eu estava tendo aulas de alaúde com Urien. Os calos nos meus dedos me traíram, não foi mesmo? E você não disse nada, só me apoiou... do jeito que faz sempre, me desafiando a ir além do que é fácil e confortável para mim.
Respirei fundo, olhando dentro dos olhos dele, e soltei:
-- E é o que vou fazer agora, trocando de lugar com meu aprendiz, para que ele termine a minha história e conte a sua.
A garganta de Andi se moveu mais duas vezes, e seus olhos me fitaram cheios de receio, mas mesmo assim ele deu uns passos duros à frente e me entregou o alaúde. Empunhei-o, meus dedos correndo sobre a madeira, e sorri para o menino, mas minha expressão estava séria: eu não queria pressioná-lo, mas ele aceitara a proposta, e agora tinha de fazer o que prometera. Ia contar uma história, possivelmente a mesma que ensaiara diante de Freydis e Orm; podia ser que se engasgasse um pouco, mas os meus dedos também estariam atrapalhados nas cordas do alaúde, de forma a fazê-lo sentir que não estava sozinho. Era o jeito que eu tinha encontrado de fazê-lo quebrar sua barreira.
E, ao tocar os primeiros acordes, não fazia ideia de como aquilo iria acabar.
*****
Talvez a maneira de contar histórias acompanhada apenas de tambor pareça estranha a quem pensa (acertadamente) em skalds nórdicos e bardos celtas quando falamos das sagas do Castelo. Mas o que a tribo da Anna faz é algo como isto aqui. Eu, pelo menos, acho legal.
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