segunda-feira, 5 de junho de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 18)



A confusão crescia a cada momento, e havia cada vez mais gente a olhar para cima, embora alguns continuassem a prestar atenção em Édobec. Contra todas as possibilidades, o Prefeito ainda tentava se fazer ouvir, suas palavras soando como marteladas entre os gritos da multidão. Apreensivo, eu relanceava meu olhar do sobrado ao patíbulo, procurando, por menor que fosse, uma oportunidade de chegar ao prisioneiro; e creio que esse momento jamais teria chegado se Nayla, arrebatada por sua própria atuação, não houvesse dado o golpe de misericórdia, enlaçando a cintura de Cassius com suas longas pernas de dançarina. Fundidas numa só, as sombras rodopiaram sob o foco de luz, e a praça veio finalmente abaixo, vencida pelo irresistível apelo do espetáculo.
-- Meu Deus, olhe só! Eles vão fazer mesmo! -- gritou o dono da Estalagem do Sino.
-- Não sabem que podemos vê-los - disse Piers Padeiro.
-- E ainda bem que não! -- gargalhou um soldado. -- Vamos lá, amigo, mostre a ela!
-- Força, companheiro! -- gritaram alguns estudantes, apertados no alto de outro sobrado. Tal como eles, as moças da casa de Emma se puseram a incentivar o casal, e o mesmo fizeram várias outras pessoas, enquanto um segundo grupo protestava contra a falta de vergonha. E foi assim, por obra de amigos e rivais, de conhecidos e de perfeitos estranhos, que finalmente pude vislumbrar a brecha no espaço e na atenção que os guardas dispensavam a Édobec.
Não houve como pensar -- ou melhor, eu mesmo preferi agir sem haver pensado, ou não seria capaz de fazer o que fiz naquele momento. Com um salto para a frente, aterrissei com os dois pés sobre o patíbulo, e minha mão avançou como um relâmpago, metendo o pequeno frasco entre os lábios do prisioneiro.
-- Beba -- ordenei, e fui em frente sem me dar tempo de saber se ele o fizera.
Então, as coisas se sucederam tão rápido que mal consigo explicar. Tudo que sei é que, ao prosseguir, meus olhos esbarraram nas costas do carrasco, e o mesmo relance me mostrou uma figura a avançar para ele; e, enquanto uma cambalhota me punha fora do patíbulo, ouvi com toda a nitidez a voz de Tina, gritando, não como se me alertasse ou defendesse, mas sim como se pedisse a proteção daquele brutamontes.
-- Senhor, por favor, me ajude, eu tenho de ir lá em cima! É minha irmã, e nosso pai está vindo com um machado!
-- Desça daí, mulher! -- exclamaram várias vozes, ao mesmo tempo que minha queda era amparada pelos experientes braços de um acrobata. Num movimento preciso, ele evitou que eu me estatelasse no chão, e eu ia agradecer e dar o fora se não percebesse de quem se tratava. Thespio...!
-- Já para casa, rapaz! -- riu ele, mas a surpresa foi tanta que não consegui reagir. Percebendo o perigo, Thespio me empurrou e repetiu a ordem, e as pessoas à minha volta abriram caminho, permitindo que eu me afastasse do patíbulo. Olhei para trás a fim de ver o que acontecera com Tina. Graças aos céus, ela também conseguira descer em segurança, mas parecia meio perdida em meio à multidão que puxava e empurrava de todos os lados.
-- Por aqui! Por aqui! -- gritavam os moradores do Labirinto. Eram eles, principalmente, que se apertavam contra os demais para que eu pudesse passar. Tina me achou e se esgueirou entre eles, a mão estendida até conseguir agarrar a minha; nós nos olhamos por um momento, sabendo de antemão que a fuga era nossa prioridade.
-- Vamos evitar o sobrado – falei, e a guiei numa corrida rápida, os dois meio agachados para atravessar a praça em diagonal. Enveredei pela Rua dos Juristas e fomos em frente, já sem correr, mas caminhando bem rápido em direção à Praça do Templo. Dali, alcançar o Labirinto foi questão de instantes, mas, ao invés de entrar em minha casa ou seguir até a de Tina, continuamos rua acima até a pracinha da fonte, onde bebemos água e molhamos o rosto. Tina ajeitou o cabelo, prendendo-o para cima, e eu olhei em torno enquanto meu coração retomava o ritmo. Não havia nenhuma alma viva a quem contar o que acontecera.
Subimos três ou quatro ruas antes de parar mais uma vez. Ali já havia um pouco de movimento, crianças brincando de pega-pega e um sapateiro em sua oficina. Erguendo a cabeça, o homem nos cumprimentou, e respondemos com um aceno, quando já subíamos a Escadinha das Cabras. Ambos sabíamos exatamente onde queríamos chegar. 
Passo a passo, em ritmo lento, vencemos a longa subida até a Fortaleza, o antigo palácio dos Reis de Pwilrie, em cujas ruínas o Povo Alto enterra seus mortos. Normalmente, nossa atitude nesse lugar é quase de reverência, mas dessa vez não havia tempo a perder, e assim subimos sem cerimônia até o ponto mais alto -- que foi, desde sempre, o nosso observatório -- e nos sentamos para assistir à última parte do espetáculo.
Todos nós, em Pwilrie, temos sangue quente, e as confusões costumam durar muito tempo, mas dessa vez os ânimos não haviam demorado a se acalmar. A praça ainda estava cheia, mas a multidão era bem menor, e já ninguém olhava e apontava na direção do sobrado. Nayla e Cassius deviam ter conseguido sair pela parte de trás. Quanto a Édobec, o pano branco sobre suas costas mostrava que já fora chicoteado, e a evidência se tornou ainda maior quando distingui o carrasco a se afastar junto com alguns guardas. Sobre o patíbulo só restavam dois deles, um ao lado da roda, o outro caminhando lentamente para lá e para cá. Eu quase podia ver o tédio estampado na expressão daqueles vigias.

Olhei para o céu, calculando o tempo que faltava para que o velho fosse solto. Uma hora e tanto, pelo menos. Era por isso que muitas pessoas não haviam ficado para vê-lo ser tirado da roda. Agora, tornara-se mais fácil distinguir os rostos conhecidos, principalmente os da família de Édobec, um grupo triste e silencioso a poucos passos do patíbulo. Aymon e Thespio continuavam na praça, e pela sua calma concluí que nada de ruim acontecera a ninguém. Faltava apenas ter certeza de que eu realmente havia salvado Édobec.

Parte 1
Parte 17
Parte Final

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