sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Fogo Interior - Parte 1

- Meninas e meninos, atenção! Mestre Finn irá dar os anúncios do dia. Parem um pouco de falar e escutem, por favor!

A voz aguda do intendente ecoou pelo salão, calando mestres e aprendizes que conversavam embrulhados em seus mantos. Eram seis horas de uma manhã de inverno – não tão fria, é claro, como se estivessem no Norte, mas mesmo assim bem mais do que estavam acostumados. Por conta disso a lareira estava acesa, as portas fechadas para conservar o calor, e a cozinha servira porções de mingau acompanhando o desjejum de pão, frutas e queijo de cabra. Estava quente, e os primeiros a se servir tiveram que esperar, soprando o vapor das colheres e das tigelas. Todos menos Razek, que nunca ouvia conselhos. Seu mau-humor matinal crescera com a queimadura no céu da boca. Por que cargas d’água tinham servido aquela porcaria fervendo?

- Está melhor? – perguntou Tarja, a seu lado. Era uma moça esguia, meio-elfa como ele e um ano mais velha; tinham sido muito próximos, mas nos últimos tempos Razek se afastara, porque Tarja passara a viver colada no pessoal do Terceiro Círculo. Eram uns idiotas, sempre humilhando os aprendizes do Segundo a pretexto de ajudá-los com os trabalhos. O pior era ouvir Mestre Finn elogiá-los por isso, ampliando aquele sorriso que parecia pregado em seu rosto.

Se bem que hoje ele não estava sorrindo.

- Bom dia – começou, depois de um leve pigarro. – Hoje está frio, mas é improvável que chova. Para o grupo que está trabalhando com Mestre Tomas, ele avisa que a madeira chegou e que os aguarda, a partir da oitava hora, no galpão da Ala Violeta. E ontem à noite recebemos notícias de Mestra Thalia, que visita a família em Erchedel. Ela informa que tudo está bem e que estará de volta em dez dias. Até lá, receio que o Primeiro Círculo precise continuar me tolerando.

Um leve aplauso, misturado a umas poucas vaias brincalhonas, partiu dos aprendizes mais novos. Normalmente isso teria feito Mestre Finn sorrir, mas dessa vez ele continuou sério, os olhos fixos em algum ponto no fundo do salão.

- Agora preciso tocar num assunto delicado – disse. – Ontem à tarde, empregados do Castelo foram à floresta e notaram várias plantas danificadas. Flores e ramos arrancados, e, principalmente, o tronco de alguns carvalhos cheios de cortes que não podem ter sido feitos por animais. Não sabemos quem foi nem o motivo, mas, se alguém aqui está envolvido, peço-lhe que venha conversar comigo em particular. Prometo que as conseqüências serão mais brandas do que se tivermos de lançar mão de outros meios.

Um silêncio profundo se abateu sobre os aprendizes. Alguns – os idiotas de sempre – tinham o cenho franzido, como se perguntassem quem teria cometido tamanha indignidade, mas a maioria parecia apenas curiosa. Tarja, no meio-termo, demonstrava um leve pesar, o que Razek considerou uma boa atitude. Tudo bem, não estava certo destruir as flores e os arbustos, ele lamentava que houvesse acontecido. Mas dar tanta importância àquilo, como se a pessoa tivesse matado alguém... aí já era demais.

Terminado o desjejum, os aprendizes foram cuidar dos compromissos da manhã. Os mais novos, com onze ou doze anos e recém-chegados à Escola, tinham aula sobre Princípios da Magia, e Razek ficou satisfeito ao ver Finn acompanhá-los à Ala Amarela. Isso deixava as aulas de Magia do Segundo Círculo nas mãos de Kieran, seu professor favorito. Ao contrário de Finn, ele não tentava ser amigo dos aprendizes. Nem tinha aquele jeito arrogante, condescendente, que Razek sempre odiara em Thalia. Em vez disso, era duro, frequentemente ríspido, sempre desafiando os alunos a fim de que se superassem. Com um mestre assim, podia-se realmente aprender, embora nem sempre da maneira mais fácil.

Mas o que até agora fora fácil na vida de Razek? Ele não conseguia se lembrar de nada.

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Nota: Este conto se passa algumas luas antes dos acontecimentos narrados em O Castelo das Águias. Foi inspirado pela pergunta de um leitor do conto A Encruzilhada, publicado em Imaginários 1: que tipo de mestre Kieran de Scyllix virá a ser quando tiver aprendizes?

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Curioso? Vá para a Parte 2!

2 comentários:

  1. Pragmático, direto e objetivo. Dá pra entender porque ele gosta das aulas de Kieran. ;D

    E bem, eu quero saber que tipo de mestre Kieran é! :D

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  2. Adoro sentir o ódio fluíndo pelas veias do jovem Razek, assim como fluíram muito antes nas de seu mestre Kieran...

    Ótimo conto, ótima escrita!

    Beijão!

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