quinta-feira, 2 de junho de 2011

O Fogo Interior - Parte 4

- Ei, amigo. Muita energia hoje – disse Gwyll, assim que deixaram a sala. – Pena que você ainda a controle tão mal.

- Isso é problema meu – grunhiu Razek.

- Mas a gente pode ajudar – tornou o outro, com um sorriso que afetava boas intenções. Razek franziu a testa e ia responder quando outra aprendiz se intrometeu entre os dois.

- Podemos sugerir alguns exercícios. – Era Vergena, uma elfa de rosto longo que Mestre Kieran elogiava com freqüência. – Você devia reforçar a prática da concentração. O exercício da nuvem, lembra? Esse é muito bom.

- Mas é do Primeiro Círculo! – protestou Razek.

- E daí? É lá que está a base – replicou a elfa. – Se a base for fraca, tudo o mais irá desmoronar.

- Vá esperando – murmurou Razek. Vergena deu de ombros e passou por ele, tomando a direção da Ala Branca, onde ficavam os dormitórios dos aprendizes. Provavelmente ia pegar sua espada. Razek imaginou que Gwyll seguiria pelo mesmo caminho, por isso ficou surpreso ao vê-lo parar junto à saída principal da Ala Azul. E ainda por cima com Tarja a seu lado! Aquilo não podia ser bom sinal.

- O que está esperando? Temos aula de Matemática – disse, como se Gwyll não estivesse ali.

- Eu sei. Já estou indo. – A voz dela, cheia de expectativa. – Só vamos dar uma palavra com Mestre Kieran.

- Eu quase consegui convencê-lo a aumentar o grupo de combate mágico – informou Gwyll, passando o braço em torno dos ombros de Tarja.

Na mesma hora, as chamas se acenderam dentro de Razek, dessa vez no estômago, fazendo-o enrijecer o corpo e apertar as mãos. Então é assim, pensou, engolindo a saliva como fogo líquido. Era por isso que Tarja andava tão ligada àquele sujeito – ela, com quem há tão pouco tempo ele partilhara seus sonhos mais secretos!

- Razek! Você está estranho! – exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas. – Seu rosto está escuro... meio vermelho, sei lá. Está sentindo alguma coisa?

- Nada. Você ainda não sabe? – replicou ele, e recuou esquivando-se à mão estendida. – Eu nunca sinto nada além de frio e calor.

Virou as costas, ignorando as vozes dos dois que o chamavam pelo nome. Seu corpo estava quente com a raiva que vinha de dentro. Se crescesse ainda mais, poderia rebentar, por isso Razek nem cogitou em se meter entre as paredes de uma sala de aulas. Em vez disso, seguiu em frente, rumando para os fundos da ala Azul, que confinavam com a parte mais antiga das muralhas.

Havia um portão ali, normalmente trancado, mas desta vez o jovem deu com ele aberto de par em par. Provavelmente o tinham esquecido assim depois de dar passagem a alguma carroça. Para onde estava indo essa não era a melhor saída, e além disso sua ausência devia ser informada à Escola, mas Razek estava farto de regras: sem olhar para trás, cruzou o portão e desceu a trilha sinuosa que levava à orla da floresta.

O frio era ainda mais intenso entre as árvores. Razek ergueu o capuz do manto e apertou o passo, dirigindo-se ao lugar que elegera para seus exercícios. Era uma clareira num diminuto bosque de carvalhos, um recanto descoberto por acaso ao procurar um ramo para seu bastão de poder. Até onde sabia ninguém mais andava por ali, pois ficava longe das trilhas coloridas, margeadas por plantas medicinais, em que os mestres de Ciências da Terra e Artes da Cura costumavam conduzir os aprendizes. Ao contrário, era um lugar sóbrio, cercado pelas árvores e juncado de pedras arredondadas. O solo era coberto por relva esparsa. Algumas vezes havia também flores brancas, inclusive no inverno, o que Razek sempre achara estranho. Na véspera, ou dois dias antes, ele se lembrava de ter pensado assim ao vê-las. Mas hoje não estavam mais.

Razek se acomodou no chão, entre as raízes de um carvalho. Encostou-se ao tronco nodoso, alinhando vértebra por vértebra enquanto se concentrava na respiração. O objetivo era afastar a raiva, mas, assim que conseguiu relaxar um pouco, a ideia de se superar nos exercícios voltou com toda força à sua mente. Por que não, se estava ali sozinho, sem ninguém que o atrapalhasse nem zombasse ao vê-lo falhar?

Ainda que mínimo, o relaxamento o fizera voltar a sentir as mãos geladas. Razek esfregou uma na outra, olhando em torno à procura de algo em que concentrar sua energia. Árvores e pedras eram grandes demais para que tentasse movê-las, mas – ele sorriu de leve ao se lembrar – talvez não fosse má ideia repetir o exercício sugerido por Vergena. Era coisa de iniciante, mas ajudava na concentração. E Razek fazia aquilo muito bem quando estava no Primeiro Círculo.

Erguendo a cabeça, ele se pôs a contemplar o céu coberto por nuvens finas, quase transparentes. Observou-as por alguns momentos e se decidiu pela maior, de contornos que lembravam um pano esfiapado. O exercício exigia que concentrasse a atenção sobre a nuvem até fazê-la sumir, o que os aprendizes mais novos achavam impossível antes de compreender a natureza mutável da água. Então, para a maioria, tornava-se quase fácil.

Razek apertou os olhos e com eles a imagem da nuvem. Ela ficava mais fina a cada instante, desfazendo-se como um véu esgarçado. Por fim, os últimos fiapos nevoentos se diluíram contra o céu, e o aprendiz se ergueu de um salto, sentindo-se repleto de poder. Seus olhos pousaram numa pedra, uma das menores da clareira, mas ainda assim maior e mais densa do que qualquer objeto que houvesse conseguido deslocar. Era um bom teste para sua recém-adquirida confiança.

- Agora – murmurou para si mesmo. Com um gesto calculado, estendeu a mão, reunindo sua energia antes de focá-la sobre a pedra - e de recuar, frustrado e já furioso, ao perceber que seus esforços tinham sido inúteis.

- Pedra idiota! – exclamou, chutando o solo e arrancando alguns talos de relva. – Por que não obedece? Por quê?

Esmurrou o ar, um movimento que o fez girar e bater com o ombro no tronco do carvalho. O choque foi pequeno, mas doeu, e a reação foi imediata, sob a forma de um grito e uma descarga de pura energia. Atingida, a casca externa do carvalho se rompeu, deixando à mostra uma parte do cerne. Era como uma ferida em carne viva, e quem olhasse para as árvores da clareira veria muitas outras. Mais tarde, quando seu ânimo esfriasse, Razek iria se arrepender, como acontecia todas as vezes, mas por enquanto a raiva continuava a dominá-lo, fazendo-o desferir repetidos golpes contra a árvore.

- Para você, Gwyll! – exclamou, visualizando o rosto dele sobre o tronco e o fendendo de alto a baixo com um talho. – E esse é para você, Lear. Engula esse sorriso imbecil. E você, sua traidora...

- Pare já com isso! – ordenou alguém atrás dele. Razek se voltou com um sobressalto, sentindo um aperto no punho, embora mão alguma o tocasse. A sensação permaneceu quando baixou o braço, mas a pressão relaxou, permitindo que mexesse o pulso e os dedos doloridos.

Então, a poucos passos de distância, viu surgir uma figura de pesadelo.

Um homem alto, de cabelos negros e desgrenhados e olhos como brasas, que marchava furioso em sua direção.

.....

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3 comentários:

  1. Você achava que eu não sabia que ele é quem estava fazendo isso nas árvores, não é? Sei... ;P

    Muito bom, Ana, bom mesmo. :] Faz depois um pdf com o conto completo! =D

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  2. Ana, eu adoro este conto do Razek, o melhor na minha opinião depois do A Encruzilhada. Pior é que eu nem me liguei em quem estava destruíndo as árvores no início... Sou lerda mesmo! hehe

    Beijão!

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  3. Sem desmerecer a espertinha Allana... é de leitores distraídos como você que eu preciso, Ana Clara! :)

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