quinta-feira, 8 de setembro de 2011
O Primeiro Outono - parte 4
Na ponta das asas, o vento era um aviso para que tomasse o rumo do Oeste. Ele observou por um instante as copas das árvores – folhas vermelhas e alaranjadas, galhos nus – e deu uma guinada com o corpo, deixando-se apanhar em cheio pela corrente de ar. Assim, sem esforço, planou acima de um bom trecho da floresta, as árvores e as clareiras, as pedras, as grutas e a foz do Rio da Lontra.
Ali, a água se avolumava, enroscando-se entre as rochas em grossos redemoinhos de espuma, e ele soube que chovera nas terras altas do Norte e que essa chuva lhes traria boa pesca até o fim da estação. Então viria o Inverno, e seria dos mais frios, conforme podia ler no ar e sentir nos ossos. Ossos de elfo, ossos de pássaro. Nesse momento, ele podia se sentir como os dois.
Uma forma escura se moveu no canto de seu olho. Ele voltou a cabeça, apenas o suficiente para ver o falcão se aproximando por trás. Não tinha como alcançá-lo – ele era Zendak-Espírito, inatingível para as garras de um falcão de carne e osso – mas o hábito foi mais forte, e ele bateu furiosamente as asas, buscando a proteção de um choupo, como teria feito o Corvo-Zendak. Dali, viu o falcão dar meia-volta, procurando em vão pela ave negra que lhe cruzara o caminho, depois desistir, soltando um grito de raiva e frustração enquanto se afastava em direção às montanhas.
Zendak esperou alguns momentos antes de deixar o abrigo. O ar frio penetrava em seu bico, eriçava as penas, um incômodo que seria crescente ao longo das próximas luas. Os corvos de verdade já o sentiam e se preparavam para voar em busca de terras mais quentes, mas tudo que o xamã tinha a fazer era voltar ao seu corpo de elfo e se aquecer junto às fogueiras da tribo. Antes, porém, devia cumprir o que se propusera naquele Sonho – e assim ele voou mais uma vez, agora para o bosque de abetos ao sul do território, e se certificou da presença de um urso na toca que a família de texugos abandonara no Verão. Era um urso macho, solitário e próximo da velhice: exatamente o que precisava para aumentar as reservas de carne. Pois o Inverno prometia ser daqueles em que nem os melhores caçadores poderiam ter certeza do sucesso.
Depois de sobrevoar o local, marcando bem as direções na memória a fim de orientar o grupo de caça, ele voltou por um caminho diferente, fazendo um curto desvio para ver como estavam as coisas em Bryke. Ao contrário da tribo, que vivia nas árvores antigas e em cabanas de madeira, os aldeões tinham casas de pedra, e seu aspecto era ainda mais estranho visto de cima, com os tetos de palha trançada e aqueles cercados onde prendiam os animais. Os campos tinham sido ceifados e estavam vazios. Aqui e ali, numa oficina ou no caminho entre duas casas, avistavam-se umas poucas pessoas, quase todas vestidas como a tribo se vestiria no auge do Inverno, dali a duas luas.
E, por essa época, talvez alguns aceitassem partilhar a carne do urso.
Um voo curto e arrojado contra o vento o levou de volta à sua árvore. Era a mais antiga da floresta, suas formas moldadas e trabalhadas ao longo de séculos pela magia dos xamãs até que o tronco fosse capaz de servir de morada a uma família. Zendak, porém, o enchera com seus tesouros, passando a dormir na parte de cima, na cabana construída sobre galhos que servira a seus antecessores como espaço sagrado. Não fossem igualmente sagrados o sono e os Sonhos como o de agora.
Pois fora num Sonho, e não num Voo de verdade, que ele percorrera a floresta. Seu corpo ali estava, deitado numa esteira, o torso e os membros pintados e adornados com penas de corvo. Quando, acostumado às partidas e regressos, seu espírito mergulhou de volta, houve apenas um breve tremor de carne e ossos – e seus olhos de elfo se abriram a tempo de ver um vulto se debruçar sobre ele.
- Xamã! Quando voltou? – Era Okli, um dos jovens da Casa do Corvo que se revezavam acompanhando seus Sonhos. – Estava ali na entrada, aproveitando o resto de sol... posso ter desviado os olhos um instante, mas...
- Não se preocupe. Acabo de chegar – disse Zendak, esforçando-se para mover as pernas e os braços. Estavam pesados, as mãos e pés quase insensíveis contra a esteira áspera. Quanto tempo ficara assim?
- Três dias e duas noites – informou Okli, que estava agachado num canto, mexendo num cesto que cheirava a carne seca. – Vários de nós já estivemos aqui, olhando por seu corpo. Esta comida veio ao meio-dia. É da casa de seus primos Tak e Hengar.
Aproximou-se, oferecendo uma tigela de carne, frutas e bolinhos feitos de massa de pinhão. O cheiro fez Zendak perceber que estava faminto, mas mesmo assim ele comeu devagar, sabendo que, do contrário, seu corpo sentiria as conseqüências do esforço. Okli se sentou a seu lado, tentando, e não conseguindo, disfarçar seu fascínio por aquele que cruzava livremente as fronteiras do Sonho.
- Viu muita coisa, xamã? – perguntou, por fim. – Caça para o Inverno?
- Vamos ter o que precisarmos – tranqüilizou-o Zendak. – Mas também muito frio. O rio vai encher, talvez uma, talvez duas vezes antes que caia a neve. E há um urso vivendo a meio dia de viagem daqui.
- Ah, se a Casa do Corvo for caçar urso, eu vou junto. Quero uma garra para minha sacola de talismãs – disse o rapaz, passando a mão por trás do ombro para tocar a tatuagem recente. Ainda soltava casca, mas o fazia sentir-se um membro adulto da Casa do Corvo, apto a participar de um grupo de caça e conquistar um troféu. Eram as Casas que decidiam quem ficava com as presas e garras. Já a comida e as peles de vestir eram distribuídas pelas famílias de acordo com a necessidade, embora as Casas fossem consultadas em algumas situações. Zendak tivera de conversar com as três antes de fornecer comida e peles aos moradores de Bryke. Mas, desta vez, não precisaria chegar a tanto.
Pouco depois, ele chegava à cabana de Kyara. Achou-a sozinha, pois Anna fora brincar com as crianças da casa mais próxima e ficaria lá para comer. Não tinham ido a Bryke nesse dia, mas no anterior Anna insistira para que o fizessem, e Kyara finalmente ficara conhecendo a nova amiga do xamã.
- Ela foi gentil – disse. – Mas parece delicada, frágil até em comparação aos outros lá da aldeia. E para alguém que você diz ser tão inteligente é muito cabeça-dura. Cheia de frio, e não aceitou um bom casaco de pele.
- Você levou um casaco para ela? – fez o primo, incrédulo.
- Não, só ofereci. Tenho um sobrando, que era de Anna... a primeira Anna – esclareceu, uma nuvem passando-lhe pelos olhos. – Achei que seria um bom presente, uma retribuição, já que ela prometeu ensinar as letras à criança. Mas parece que vou ter que pensar em alguma outra coisa.
- Ou não. – Na cabeça de Zendak, ideias se cruzaram com a rapidez de um raio, gerando a faísca de outra idéia. – Creio que posso mudar isso, se você me contar mais a respeito desse casaco.
- Mais? – Kyara franziu a testa. – É um casaco. Foi de minha filha. O que mais posso dizer?
- Muito – respondeu o xamã, servindo-se de uma perna de coelho que fumegava num pote. – Enquanto se tratar de um casaco de pele, e apenas isso, Maryan não vai querê-lo. Mas, com a sua ajuda, talvez eu dê um jeito de transformá-lo numa história.
.....
Qual será a história de Zendak? Você vai saber se ler a Parte 5!
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Ahãn... Então aquela conversa sobre "quase não consegui escrever" e blábláblá era mentira... Bem sei... - Eu vim aqui, e sabia que iria encontrar algo... (previsíiiiiiivel).
ResponderExcluir(a primeira. Sempre)
bjs
ah sim, o conto é ótimo.
bjs
v.v
Na verdade essa foi toda a ficção que escrevi desde o dia 20. Houve também dois artigos técnicos, mas isso conta como parte do "outro" trabalho.
ResponderExcluirQue bom que gostou do conto. Foi a primeira vez que me aventurei a narrar uma aventura do Zendak-Espírito. Mas ele voltará a este blog.
Ana!
ResponderExcluirdevo dar resposta? Só penso em bloqueio criativo após o prazo de 60 dias. E contando o "outro" trabalho. Não reclame, você ainda está no lucro!!! Nós, seus leitores, é que estamos saudosos, mas, convenhamos, nada melhor que uma espera básica, não é? Aumenta a felicidade quando se clica no blog e...eis que algo surge.
bjos
(sinto que muita coisa surgirá ainda)
Vânia
Muito legal a historia, vc está de parabéns! Quero continuar lendo e descobrir o que vem pela frente.
ResponderExcluirContinue assim!
Achei este blog através de uma postagem do Sonhos em tinta (http://sonhosemtinta.blogspot.com/2011/09/o-castelo-das-aguias-o.html)
Caíque - http://entrepaginasdelivros.blogspot.com
Olá tia Ana, me desculpe pela demora em comentar, mas ando por demais atarefada e mal tenho entrado no PC! Fantástico conto, sempre deixando um gosto de quero mais na gente e além do Zendak ser uma figura um tanto atraente! Beijão! =*********
ResponderExcluir