quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Em Nome de Thonarr (Parte 1)

O conto a seguir se passa cerca de três anos antes da história narrada no livro O Castelo das Águias. Leiam-no - e, se ficarem curiosos por mais, bem, é só comprar o livro! :) .


- Filho, assim que você puder, leve mais vinho para a mesa do Comandante – gritou Moira, por cima do ombro. – O barrilete acabou... Não há bebida que chegue para esses soldados!

- Pelo menos a casa lucra – riu Padraig, a voz abafada pelos ruídos que vinham da sala. Era um dia atarefado na “Espada e o Lírio”, uma estalagem pequena, porém de ótima fama, procurada por viajantes abonados e pelas pessoas mais distintas de Vrindavahn. Os Conselheiros da cidade a frequentavam, assim como os mestres das corporações, e até os Prestes do Templo de Bragi apareciam vez por outra para uma taça de vinho de maçã. Nenhum cliente, no entanto, era tão assíduo quanto o Comandante Owen, um veterano endurecido por várias guerras que, no ano anterior, fora transferido do seu antigo posto para ficar à frente da guarnição de Vrindavahn. Era uma posição tranquila, adequada para um velho militar que encerrava a carreira.

Calvo feito um ovo – mas com um belo par de bigodes como compensação - o Comandante era um homem agradável, que além disso trouxera clientes e lucro à estalagem. Padraig simpatizava com ele, mas às vezes sua presença o deixava melancólico, pois o fazia lembrar do pai, Bryan, que pertencera ao exército antes do ferimento que o deixara aleijado. Com o dinheiro que lhe deram ao se reformar, ele comprara aquela taverna quase falida e a reerguera com a ajuda da esposa, Moira, celebrada como a melhor cozinheira da cidade. O negócio deu mais certo do que esperavam, mas Bryan nunca deixou de suspirar por seu passado de armas e ouvia com avidez as histórias de qualquer soldado que passasse pela estalagem.

Foi uma pena que não tivesse vivido para ouvir as do Comandante.

Padraig se aproximou timidamente, carregando um barrilete de vinho. O Comandante narrava um episódio ligado à batalha de Erchedel, sua assembléia um grupo de oficiais da guarnição reforçado por mais três de um destacamento que passava pela cidade. Um deles, de taça vazia, percebeu o menino a dois passos da mesa e lhe fez um sinal, mas Padraig esperou uma pausa na narrativa para servir a bebida. Fez isso mais por respeito do que por interesse: ao contrário do pai, não gostava de histórias de guerra, exceto as narradas no Etta em que tomavam parte os Heróis.

- Eis aqui um excelente rapaz – disse o Comandante, que obviamente desconhecia aquele fato. – O falecido pai deu baixa, ferido em batalha, e ele cresceu na estalagem, mas que disposição! Forte como um touro, e só doze anos! Hem, Padraig?

- É o que precisam na Escola de Guerra – disse um dos homens que visitavam Vrindavahn. – Se quiser, em dois anos posso recomendá-lo.

- Obrigado, senhor, mas acho que não – murmurou Padraig, encolhendo-se de forma a parecer menor. Aos doze anos recém-feitos, sua estatura ultrapassava a de muitos rapazes de quinze, e os resquícios da aparência rechonchuda que tivera na infância mal escondiam a estrutura larga e forte sobre a qual em breve despontariam músculos de aço. O rosto, porém, ainda era de menino, com olhos claros e pele macia que corava com facilidade. Quando falavam a seu respeito, por exemplo.

- Eu sempre digo a Padraig Ap Bryan que ele se sairia bem no exército – o Comandante pôs mais lenha na fogueira. – Já a mãe o quer no Templo. E de preferência o de Bragi, aqui em Vrindavahn, onde poderá estar sempre com ela.

- Não diga! Um Preste? – duvidou o forasteiro, franzindo a testa. – Um rapaz forte assim?

- Não quer dizer nada – Padraig se encheu de coragem para retrucar. – Há Prestes fortes, como os da Ordem do Carvalho. Eles até lutam nas guerras ao lado dos soldados.

- Agora você disse uma verdade – reconheceu o outro, dando de ombros. – Vamos beber a ela, amigos.

- E é melhor ir já trazendo mais um barrilete – disse um oficial mais novo. – Talvez até um barril... em homenagem à Ordem do Carvalho.

Ouvindo isso, os outros irromperam em risadas, que deixaram o rosto de Padraig ainda mais vermelho. Pondo no chão o barrilete meio vazio, ele recolheu algumas taças da mesa ao lado e enveredou rumo à cozinha, a passos largos, antes que alguém fizesse mais piadas sobre a Ordem e o Templo. Ou, pior ainda, sobre a sua vocação. Pois a verdade é que ainda não estava seguro a esse respeito, embora, para agradar sua mãe, assegurasse que sim todas as vezes que ela perguntava.

Moira estava tirando uma torta do forno quando o filho entrou. Como faziam sempre, sorriram um para o outro, um sorriso que não os desviava nem por um instante de suas tarefas. Amor e dever – essas palavras eram quase sinônimos n´ ”A Espada e o Lírio”.

- Mãe, vou levar um barril maior à mesa do Comandante – avisou o menino. – Há uns oito ou dez homens com ele. E pelo jeito não vão embora tão cedo.

- Aposto que não. Sabe dizer se o mago já chegou? – indagou Moira, apertando os lábios. – O tal que vem do Castelo das Águias?

- Não. Um dos magos do Castelo vem aqui? – Padraig estacou a meio caminho da adega. – Qual deles? Só conheço Mestre Urien, e acho que ele não é mago.

- Ele? Claro que não! Aquilo é um bode já ficando velho – disse a mãe, abrindo a massa para outra torta. – Não sei quem vem, só que é conhecido de um dos oficiais. Um desses que estão de passagem, vindos da Escola de Guerra.

- Nunca vi um mago de perto – refletiu Padraig, com os olhos brilhando. – Será que ele faz tudo como as pessoas normais?

- Não sei, mas deve beber como uma. E bastante, a julgar pela companhia – com essas palavras, a mãe o despachava de volta aos seus afazeres. – Cuidado, filho. Pegue um barril dos pequenos e role, não tente carregá-lo. E tranque bem a porta da adega – acrescentou, em voz mais alta, para que Padraig a ouvisse lá de fora.

- Tudo bem, mãe – respondeu ele, no mesmo tom, fazendo tilintar as chaves que retirara de um prego na parede. Tê-las na mão o fazia sentir-se importante, o homem da casa – o que de fato era, o único a não ser por Jochen Calado, o surdo-mudo encarregado do estábulo. Nos dias comuns, era ele que trazia os barris da adega, mas os cavalos não paravam de chegar e sair nos Dias de Descanso, de forma que a tarefa passava sem discussões às mãos de Padraig. Não que ele protestasse contra isso.

- Eu posso fazer! – insistia, quando a mãe se preocupava achando que se esforçaria demais. – Olhe para mim, sou forte como um urso... Ou como Thonarr – acrescentava, estufando o peito. Orgulhava-se de ter aquele ponto em comum com seu Herói preferido. Desde que podia se lembrar, Thonarr era o seu modelo, em quem espelhava suas ações e a quem se dirigiam suas preces e agradecimentos. Alguns Prestes o teriam recriminado, não pela devoção, mas porque raramente se lembrava do Deus Único; mas como preferir um deus sem rosto a um Herói como o Senhor do Raio, todo poder e força e generosidade? Para um menino, era quase impossível.

A adega ficava fora da casa, numa pequena construção à qual se tinha acesso pelo pátio. O estábulo se encontrava à direita, junto ao portão que nos Dias de Descanso permanecia aberto para a rua. Jochen estava lá, segurando as rédeas de um alazão enquanto tentava compreender as instruções do cavaleiro, um homem alto e sério metido numa jaqueta de couro.

Padraig pensou em ajudá-lo, mas desistiu ao ver que os dois pareciam se entender por meio de gestos. Entrando na adega, tombou de lado um barril de tamanho médio e o rolou para fora, habilmente, como se acostumara a fazer no último ano. Voltou-se, então, a fim de trancar a porta, e estava tirando a chave quando ouviu um som estranho a seus pés.

- O que... – começou, mas sua voz se extinguiu ao se deparar com o que tinha atrás de si. Ao lado do barril, rosnando pelos cantos arreganhados da boca, estava o maior cão que alguma vez Padraig vira na vida.

E a distância até sua garganta era de apenas um salto.

Parte 2


Fanart de Padraig pela devota de Thonarr (Thor, no mundo de cá) Ana Clara Thomazini.

3 comentários:

  1. Mal posso esperar para saber qual mago! mas já tenho aqui minhas apostas e minhas alternativas... Acho esse menino dos mais legais dentre os personagens do Castelo. Adoraria que determinada pessoa pudesse um dia ter um aprendiz assim.

    bjos,
    Vânia
    A primeira a comentar.

    ResponderExcluir
  2. Padraig é mesmo um personagem lindo, cativante e simples de coração. Se eu tivesse meus 13 anos, me apaixonaria com certeza por ele, ai, ai...

    Mais uma vez meus parabéns pela sempre excelente escrita. :)

    Beijão da sobrinha,
    Ana

    ResponderExcluir
  3. Muitos magos aparecerão neste conto, meninas! Inclusive os preferidos de cada uma de vocês. Aguardem! :)

    ResponderExcluir