segunda-feira, 30 de julho de 2012

Talismãs (Parte 2: A Saga da Caçadora Ingênua)


Todos nós, quando olhamos uns para os outros, vemos pistas que conduzem à história de cada um. A minha pode ser lida nos calos que tenho nas mãos: os da pena de escrever, resultado de vários anos de aprendizado das sagas, e os de puxar a corda do arco, que endureceram aos poucos desde que eu era menina. A avó que me criou, de quem herdei os olhos de elfo, liderava um grupo de caça na Floresta dos Teixos. Eu costumava acompanhá-la, mas depois passei a sair apenas com os jovens da minha idade. Foi numa dessas ocasiões que tudo aconteceu.

Era um inverno frio, mais frio do que podem imaginar os que nunca saíram das Terras Férteis. Havia neve em todos os caminhos e sobre os tetos das casas, e a água do Rio da Lontra estava cheia de pedacinhos de gelo. Muitos de nós dormíamos de parka, o agasalho pesado que usávamos, pois se o vestíssemos de manhã o acharíamos duro como madeira. E todos preferíamos ficar no interior das cabanas a ter de nos aventurar no mundo branco lá de fora.

Eu estava saindo pouco, em parte por causa do frio, mas também porque assumira vários deveres. Maryan, minha mestra, tinha dado à luz seu segundo filho, e eu a ajudava com a mais velha, preparava sua comida e buscava lenha. Em tempos mais calmos isso caberia ao pai das crianças - meu primo Zendak - mas nesses dias ele tinha preocupações maiores. As reservas de carne da tribo estavam diminuindo, e como nosso xamã era ele que tinha de guiar os caçadores até a presa. Ele ficava o tempo todo em sua cabana, no alto da árvore mais antiga da floresta, e os jovens da Casa do Corvo se revezavam para zelar por seu corpo enquanto o espírito fazia longas jornadas. Ao regressar, dizia onde podia haver um gamo ou um javali; os caçadores seguiam as pistas, mas quase sempre voltavam de mãos vazias.

Numa daquelas tardes, aproveitei a chegada de amigos que fariam companhia a Maryan e fui à casa de um outro primo, que tinha um filho da minha idade. Os pais tinham saído com o grupo de minha avó, mas Tyshen recebera a ordem de ficar e se ocupar de algumas tarefas do tipo que todos detestávamos fazer. Querendo animá-lo, ofereci ajuda, e nós nos sentamos na frente da casa, costurando peles de veado enquanto conversávamos.

Estávamos nisso quando um grupo de jovens apareceu na trilha que levava à casa do xamã. Dois eram um pouco mais velhos que nós e já considerados adultos, membros da Casa do Lobo; os outros eram garotos e garotas da nossa idade. Eles contaram que Zendak tinha despertado por uns momentos e falado sobre um grande cervo que errava procurando comida num bosque de bétulas, um pouco ao norte de onde ficava a nossa aldeia. Não ia ser difícil pegá-lo, mas tínhamos de ser rápidos – e o “tínhamos”, nesse caso, se referia a nós mesmos, pois todos os caçadores se achavam fora de alcance.

A perspectiva nos entusiasmou, e Tyshen entrou rápido para pegar suas lanças e a faça de caça. Também corri até minha casa, que não era longe, peguei meu arco e uma aljava de flechas recém-emplumadas, mas não vesti perneiras nem calcei as botas de pele. Isso aconteceu em parte pela pressa, mas em parte por uma espécie de rebeldia: a maioria das pessoas usava botas na neve, mas podiam sair de mocassins se não se importassem com os pés molhados. Já eu não tinha escolha: ou calçava as botas ou minha avó se recusava a me levar para a floresta. Eu já tinha perguntado a razão, mas a peguei num dia de mau-humor e não tive resposta, por isso achei que fosse apenas um dos cuidados que Kyara tomava para me proteger. E para que essa proteção, se eu tinha treze anos, era quase uma adulta recebendo a tatuagem do Lobo? Saí de mocassins.

Uma trilha bem marcada conduzia ao bosque de bétulas. O chão tinha restos de neve e fiquei com os pés úmidos, o mesmo acontecendo com outros de nós que não tinham calçado as botas. Pelo meio do caminho sentimos que o vento virou, o que devia nos servir de alerta: não demoraria a nevar. Mesmo assim, nos sentimos encorajados a prosseguir, ainda mais quando chegamos ao bosque e vimos o rastro deixado pelo cervo. Estava bem fresco e o seguimos com facilidade, sempre em direção ao norte, mal percebendo os primeiros flocos de neve que caíam sobre os ombros e os capuzes das parkas. Logo se transformaram em rajadas. Tivemos medo de que isso apagasse os rastros e apertamos o passo, sem perceber que estávamos nos afastando das trilhas conhecidas.

Já estava escuro quando enfim avistamos o cervo. Meus pés estavam molhados, muito mais do que em qualquer outra caminhada na neve, mas, envolvida com a caçada, não percebi que haviam começado a latejar. Cercamos a presa, andando sempre contra o vento, e quando estávamos a uma distância razoável atiramos, vários ao mesmo tempo e mirando os pontos vitais. Felizmente, já éramos bons o bastante para acertar de primeira - e, enquanto alguns de nós cumpriam os ritos, entoando um canto em homenagem ao espírito do animal que dera a vida por nós, outros já começavam a prepará-lo para a viagem de volta. Era um cervo pesado demais para ser carregado e não tínhamos trenós, de modo que o melhor jeito foi esfolá-lo e cortá-lo em pedaços que, depois, pusemos nos ombros. Fiquei com um dos maiores, porque todos sabiam que eu era a mais forte do grupo, e até aí nada demais; o que não sabíamos era de uma outra diferença, que começou a se fazer sentir assim que tentamos reencontrar a trilha. Porque meus pés, que tinham latejado, depois ficado doloridos e por fim se tornado insensíveis, estavam agora como dois blocos de madeira, que eu mal conseguia sentir ao encostá-los no chão.

Ainda me lembro da expressão dos meus amigos nesse dia: como ficaram desamparados, e como senti tanta pena deles quanto imagino que sentiram de mim. Eu era diferente de todos, tinha curvas e pelos onde eles não tinham, mas nunca imaginaram o estado em que podiam ficar meus pés até que eu tirasse os mocassins. Estavam inchados, com cor e aspecto estranhos e também estranhos ao toque, embora eu não sentisse os dedos deles pressionando minha carne. Era assustador. Mesmo assim, alguma coisa tinha de ser feita, e discutimos o que seria melhor: acender um fogo para aquecer meus pés ou regressar o quanto antes à aldeia. E como não tivéssemos madeira seca nem um lugar para nos abrigar da neve, que caía cada vez mais forte, escolhemos a segunda opção. Isso me levou a andar boa parte da noite amparada por dois amigos, com os pés que eu mal conseguia sentir enrolados na camisa de Tyshen e protegidos por fora com cascas de bétula.

Isso salvou meus pés.

A dimensão do que tinha acontecido eu só soube depois, quando os cuidados tinham sido tomados, por isso não entendi o desespero de minha avó quando me viu entrar em casa. Ela também mal acabara de chegar, vira minhas botas em um canto, mas não se preocupara porque achava que eu estava com Maryan. Por outro lado, minha prima fora informada por algumas crianças de que eu tinha ido à floresta, mas não sabia sobre as botas, ou poderia ter me avisado sobre o que aprendera ao ler as sagas dos homens: é que, ao contrário dos elfos, nós não apenas podemos sentir frio, mas podemos ser congelados por ele, assim como congelamos a carcaça de um animal sob a neve. Por causa do frio, podemos até perder uma parte do corpo, como minha avó já vira acontecer. Felizmente, ela também sabia o que devia ser feito - e assim aqueceu água e mergulhou meus pés, e depois de novo e de novo, e não deixou que ninguém os esfregasse nem acendesse um fogo muito próximo. Isso teria sido um desastre. Zendak, que despertou de vez na manhã seguinte, preparou um unguento que aliviou a dor, e assim tratamos as queimaduras até que elas sarassem. Tudo que restou foram as marcas, além de um renovado respeito pela neve e pelos conselhos e cuidados de minha avó.

Eu disse “tudo”? Bem, não foi só isso. Além da carne, que foi consumida por todos, e das cicatrizes, guardei uma outra lembrança dessa caçada. Toco nele quando sinto que meu dia-a-dia me aproxima demais dos elfos, fazendo-me esquecer de que sou humana. Mas acho que será mais fácil me lembrar disso numa cidade como Vrindavahn.

...

As palavras de Anna foram recebidas em silêncio. Em todo o semicírculo, os olhos deslumbrados das crianças estavam presos nela, acompanhando suas mãos, que abriam uma pequena bolsa de pele macia. Dali a Mestra de Sagas retirou um outro pedaço de couro, duro e enegrecido, que confiou à posse curiosa do aprendiz mais próximo.

- É um pedaço do mocassim que usei na caçada – explicou. – Está nessa bolsa junto com outros objetos que foram e são importantes, não apenas como talismãs, mas porque ajudam a contar minha história. E agora eu tenho uma proposta para vocês – acrescentou, relanceando os olhos por todo o grupo. – A partir do próximo encontro, quem pode trazer alguma coisa que considere importante e contar a história que tem por trás? Que tal começar por vocês aqui à direita?

- Nós? – Andi olhou assustado para Orm e Freydis, querendo confirmar que era com eles.

- Vocês mesmos. Ficaram bem interessados pelo que vi, e todos têm jeito de que gostam de contar histórias. Então, o que acham?

- Eu concordo! - exclamou Freydis.

- Eu também – disse Orm. – E posso ser o primeiro. Mas não esperem uma história tão boa – avisou, voltando-se para os demais aprendizes. – Não sou nenhum mestre de sagas. Só um filho de militar que nunca saiu de Vrindavahn.

- E que adora comida e cerveja – disse Andi, com uma risadinha.

- E a história vai ter tudo isso – prometeu Orm, com ar solene. – Esperem, que vocês vão ouvir... A Saga do Padeiro Aprendiz!

Em breve! E se quer saber como começou essa contação de histórias, clique aqui!

Um comentário:

  1. Muito bom Ana e Anna!!!

    O pior é que eu acho que teria feito a mesma coisa, viu... me lembro até hoje de levar muita chinelada no pé por andar descalça no inverno... pra andar de mocassim na neve não faltava muito XD. Que bom que deu para salvar os pés da Anna!

    Agora fico esperando a Saga do Padeiro Aprendiz!!

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