segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Talismãs (Parte 3: A Saga do Padeiro Aprendiz)


Essa história aconteceu algumas luas depois de eu entrar para a Escola de Artes Mágicas. Não é tão emocionante como a da Mestra Anna, mas é engraçada. Bom, pelo menos eu acho.

Todos conhecem a cerveja fraca que a gente toma nas refeições, mas não sei se notaram que aparece uma melhor nos dias de festa. Eu a provei no solstício de inverno e fiquei louco para repetir, mas o Nils Cocheiro me explicou que a bebida é cara e reservada a ocasiões especiais. Até mostrou onde ela é guardada: não em barris, como a cerveja comum, e sim em vasos de pedra, num telheiro ao lado da cozinha. E ninguém podia ir lá sem ordem do intendente, ou então da Netta, a cozinheira da Escola.

Eu teria me conformado e esperado pela próxima festa se não fosse pelo Ardaval. Alguns aqui devem lembrar dele: era um garoto do norte, mais velho do que a gente, que nessa época lutava para entrar no Segundo Círculo. Acabou desistindo, e agora deve ser um escudeiro ou coisa assim, mas isso não vem ao caso: ele estava comigo quando o Nils me mostrou os vasos da cerveja. Vendo que ficavam em lugar aberto, cismou de ir lá no meio da madrugada e tomar um pouco, e me chamou de medroso quando eu disse que não devíamos quebrar as regras.

Ora, sou filho, neto e sobrinho de militares. No exército aprendem a obedecer às regras, e foi o que me ensinaram em casa. Mas também me disseram para reagir quando fosse provocado e aceitar os desafios. Foi assim que aceitei o de Ardaval.

Nós escolhemos uma noite de lua nova para ir ao telheiro. Tínhamos de passar pela cozinha, e esperávamos achar tudo às escuras; mas para nossa surpresa o fogo estava aceso, e em cima da mesa havia um monte de pratos de dar água na boca. Uma salada enfeitada, carnes frias, queijos e um pão de fruta delicioso. Não sabíamos para quem era tudo aquilo, mas, no espírito da aventura, nem conversamos. Sentamos ali e começamos a comer. E de repente... toc, toc, toc, começamos a ouvir os passos de várias pessoas se aproximando pelo corredor.

Já adivinharam? Pois é. Às vezes, de acordo com o calendário dos astros, os sete mestres da Escola que são magos se reúnem para rituais a portas fechadas. Muitas dessas vezes eles estão em jejum, e, quando saem, vão comer uma ceia deixada pronta na cozinha. Sabíamos disso, mas na hora nem pensamos: antes mesmo de ver quem era tratamos de correr e nos esconder no telheiro, por trás dos vasos, de onde se podia ver quem entrava na cozinha.

Então, eles chegaram. Primeiro as três mestras, Lara, Thalia e Sophia; depois, Mestre Finn e Mestre Algias; por último, o Carrasco - quer dizer, Mestre Kieran - todo paramentado com os trajes rituais. Só o Mentor não veio. Eles viram o que tinha acontecido com a comida e é claro que não ficaram contentes, mas não conseguimos ouvir o que falavam. Eu disse ao Ardaval para a gente fugir, mas ele ficou parado, com medo de fazer barulho - e aí veio a voz do Mestre Kieran, alta e muito zangada, dizendo que sabia que o autor da proeza estava por ali e que se apresentasse para ter o que merecia.

Ardaval tinha desafiado as regras da Escola, mas nem pensou em fazer o mesmo dessa vez: foi para lá correndo. Eu devia ter ido também, mas não fui. Pouco depois Mestre Kieran tornou a chamar, ainda mais zangado, dizendo que sabia que tinha mais um. E mesmo assim eu, feito um bobo, decidi arriscar e dar o fora dali.

Então... Bom, nem houve um então, para dizer a verdade. Quando mal tinha me virado para correr, senti como se alguém tivesse me agarrado pela gola da túnica. Era como uma mão muito forte, e outra logo depois me deu um puxão no cinto, e essas mãos invisíveis foram me arrastando. O pânico foi tão grande que eu nem consegui gritar, só me debater, tentando escapar do que eu já achava que ia ser um castigo terrível. Assim fui seguindo, meio arrastado, meio carregado até a cozinha, e as mãos só me largaram quando eu estava... adivinhem?

Isso mesmo: na frente de Mestre Kieran. Ele estava sentado de braços cruzados, sem dizer uma palavra, me encarando com aquele risinho torto que ele sempre dá nas horas piores. Os outros mestres estavam sentados também, e Ardaval de pé, com o rosto vermelho de vergonha. O meu, lembro bem, estava queimando. Mas não havia mais nada que a gente pudesse fazer.

Depois de um tempo de silêncio, Mestra Thalia nos mandou contar a nossa história. Falamos a verdade - que tínhamos ido roubar cerveja e não resistimos a provar daquela comida - e ela disse que, já que tínhamos confessado, nosso castigo seria leve. Primeiro, teríamos que pegar mais frios, queijo e vinho na despensa, e servir a ceia deles, além de ficar lá até o fim para limpar tudo; e durante um quarto de Lua íamos ajudar a servir o jantar dos aprendizes.

Isso não parecia tão ruim, mas aí Mestre Kieran rosnou que a minha punição tinha que ser maior, porque eu não tinha atendido quando ele chamou. Tive esperança de que Mestra Thalia não concordasse, mas ela encolheu os ombros, então ele perguntou o que eu tinha gostado mais ali da mesa. Respondi que do pão de fruta e ele disse que, nesse caso, eu ia ficar de ajudante de cozinha, chegando lá à quinta hora da manhã, e aprender a fazer o pão. Ele ia provar todos que eu fizesse. E o castigo só ia terminar quando ele achasse que estava gostoso.

Imaginem como foram os dias seguintes. Fiquei uma Lua inteira indo bem cedo à cozinha, areando panelas, mexendo mingau e praticando com a massa do pão. Ele é feito todos os dias, e, acreditem, não é nada fácil sovar uma quantidade de massa que alimente uma Escola inteira. Eu tinha até vontade de chorar. Além de tudo tinha sono, ficava cansado para as aulas, até que comecei a ir dormir mais cedo e essas horas compensaram as outras.

Para resumir, no início foi muito ruim. Depois, por incrível que pareça, acabei gostando. A cozinha é muito divertida. É muito trabalho, sim, mas a gente ri e brinca o tempo todo. Além disso, fiquei amigo da Netta e do resto do pessoal, e vocês sabem... Todos são bem alimentados aqui no Castelo, mas na cozinha sempre aparecem umas guloseimas diferentes. E se você estiver por lá, sorte sua!

E houve uma outra coisa boa nisso tudo. Como quase todos no Primeiro Círculo, eu morria de medo do Car... de Mestre Kieran, mas falei com ele várias vezes ao longo daquela lua. No início ficava apavorado, ainda mais porque o pão que eu fazia saia duro feito pedra, mas ele não se zangava. Só balançava a cabeça e dizia para eu continuar tentando. Depois de um tempo começamos a trocar umas palavras, e acabei simpatizando com o homem. Acho que isso vai tornar as coisas mais fáceis quando ele for meu professor no Segundo Círculo.

E é isso, pessoal. Essa é a história. Foi duro, no começo, mas no fim a experiência foi boa. Até lamentei um pouco quando tudo acabou. E a Netta também. Ela diz sempre que, como mago, não sabe se eu sou bom. Mas fui o melhor aprendiz que já passou pela cozinha.

...

Concluído seu relato, Orm apresentou o objeto que guardara como lembrança. Era uma colher de pau, com a ponta lascada, impregnada com um leve cheiro doce. As crianças a passaram de mão em mão, e enquanto o faziam Anna se dirigiu ao contador de histórias.

- Foi uma ótima história, Orm. O problema é que me deixou com vontade de comer pão de fruta. Quando vai fazer um para mim?

- Quando quiser, mestra, mas não ficou assim tão bom – disse o menino, com as faces vermelhas. – No último, Mestre Kieran disse que estava passável, que ia me liberar porque não aguentava mais aquilo e só tornaria a comer pão de fruta quando se casasse.

- Por quê? – indagou Anna, e dessa vez foi ela que corou um pouco. – O que isso tem a ver com o casamento?

- É que os noivos têm de comer do mesmo pedaço de pão de fruta na cerimônia. É uma tradição – explicou Andi. – Quer dizer que eles vão sempre partilhar o que tiverem, seja muito ou pouco.

- E por falar nisso, por que não conta aquela história sobre o casamento em Kalket? – perguntou Freydis. – É uma boa história.

- Mas você já sabe – replicou o menino. – Que graça teria ouvir de novo?
- Eu vou achar graça. E os outros não sabem, só Orm e eu – insistiu Freydis. – Vá lá, deixe de ser tímido. Conte a história.

Hesitantes, os dedos de Andi se juntaram sobre o colo. Podia sentir os olhos dos colegas sobre ele, cheios de expectativa, os de seus amigos transmitindo uma mensagem de encorajamento. Anna esperava, sem querer apressá-lo, um sorriso caloroso nos cantos dos lábios. Por fim, ele encontrou um jeito de lidar com o problema.

- Eu preferia que a Freydis contasse. Ela veio preparada – argumentou. – Trouxe o objeto dela para o encontro, e eu não estou com o meu.

- Por mim está bem – disse Anna. – Que acha, Freydis?

- Certo. – Freydis se levantou, limpando a garganta, e alisou as dobras da túnica. – Já que o Andi prefere esperar, eu conto logo para vocês a minha história. Não pensei num nome para ela. Mas pode ser alguma coisa como... A Saga da Menina-Foca.

Em breve! E para conhecer a história contada pela Anna, clique aqui!

4 comentários:

  1. Adorei a história do Orm! Hahahaha, até que o castigo do Kieran foi legal (e a Anna corando quando ele falou do casamento, que fofo...!). Hmmm, sabe que eu também fiquei imaginando esse pão de fruta...

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  2. A Anna é assanhada! Ela mal tinha conhecido o Kieran na ocasião.... :)

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    1. Hohohohohoho! Ela é sagaz, isso sim, não perdeu tempo :)

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  3. Oi Ana,

    Ando negligente com minhas leituras. Prometo colocá-las em dia para poder voltar a comentar seus textos em breve. Beijos,

    vânia

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