segunda-feira, 20 de agosto de 2012
Talismãs (Parte 4: A Saga da Menina-Foca)
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Desde que eu era bem pequena ouvi dizerem que tenho o mar nas veias.
Essa é uma herança de meu pai. Ele é um navegador, viajou por todos os mares de Athelgard até conhecer minha mãe. Por ela, decidiu ficar em terra e acabou vindo parar em Vrindavahn, mas antes moramos em pelo menos dois lugares. E, claro, visitamos muitos outros, inclusive uma aldeia muito distante onde vivem nossos parentes.
Eu tinha só uns quatro ou cinco anos e não lembro os detalhes da viagem. Lembro que ia ficando cada vez mais frio, o mar cada vez mais agitado à medida em que viajávamos. Meu pai estava ansioso para encontrar a família, principalmente sua tia Freydis, em honra de quem foi dado o meu nome. Ele falava tanto nela que eu achei que estaria nos esperando no cais, mas lá só havia alguns homens, vestidos e armados como soldados e segurando tochas. Meu pai disse que eram guerreiros que serviam a seu tio e que ele era uma espécie de nobre, mas seus domínios eram pequenos. Só uma aldeia com algumas fazendas e uma fortaleza de madeira. De um lado ela era cercada por uma paliçada de troncos, mas a maior parte das terras se abria para o mar, e era dele que o povo costumava tirar seu sustento.
Muitas pessoas moravam na fortaleza, e eu as conheci ao longo da visita que durou umas duas luas. Lembro de muitos rostos, mas os nomes se confundem na minha memória, exceto o da tia-avó Freydis. Ela era diferente de todos, e as coisas que me disse eu vou guardar para sempre, junto com a lembrança da aventura que vivi no mar.
Era uma tarde quente de verão e eu estava na praia, vigiada por uma das moças que serviam na fortaleza. Dessa guardei o nome: Elín. Tinha cabelo ruivo, muitas sardas e um namorado que sempre aparecia quando só estávamos nós duas. Os dois sentavam numa pedra e se beijavam enquanto eu catava conchinhas ou fazia bolos de areia. Foi o que aconteceu naquela tarde, com uma diferença: no dia anterior, Elín tinha sido vista falando com outro rapaz, e isso resultou numa briga que assustou até as aves marinhas.
Eu não fiquei assustada, mas sim irritada e contrariada com a gritaria dos dois. Queria que parassem, tentei chamar a atenção de Elín, mas ela nem sequer me olhou. Então virei as costas para eles e me afastei, escalando umas rochas baixas para ver se de lá enxergava algum barco se aproximando do cais.
Foi então, sobre as pedras que entravam mar adentro numa curva da praia, que eu a vi. Era uma menina alta, mais velha do que eu e magrinha, mas o que causava espanto era ela não usar roupas. Nenhuma roupa, e ali não era um lugar onde normalmente as crianças iam nadar. Ela saltava de uma pedra para outra como se estivesse dançando, e foi numa dessas reviravoltas que ergueu a cabeça e me viu.
Na mesma hora, pareceu ficar toda animada e começou a fazer gestos me convidando para ir até lá. Eu tinha sido avisada para não me afastar muito, mas ainda estava perto o bastante para que Elín pudesse me ver, e além disso achei que não havia perigo. Se as pedras eram seguras para a outra garota, deviam ser também para mim.
O mar parecia mais azul do outro lado da praia. A menina estava à minha espera e parecia tão feliz quanto eu por encontrar uma amiguinha. Ela me deu a mão e entramos na água, deixando que as ondas nos pegassem e levassem para além da arrebentação.
Ficamos lá por um bom tempo, nadando, brincando e rindo tanto que nem perguntamos o nome uma da outra. A menina era incansável, mergulhava sem parar e tinha muito fôlego. Eu tentava acompanhá-la o melhor que podia, sem mostrar o quanto estava começando a ficar cansada.
Depois de muitas brincadeiras, minha amiga apontou para umas rochas mais distantes e sugeriu que nadássemos até lá. Não lembro se ela disse alguma coisa - acho que nos entendíamos por gestos - mas de qualquer forma eu relutei, porque estava pensando em voltar para junto de Elín. Àquela altura ela já devia ter acabado de brigar com o rapaz. Poderia me levar no colo até a fortaleza e me aprontar para jantar no salão.
Eu disse isso à garota do mar, mas ela não pareceu ter me escutado. Feito um peixe, começou a dar mergulhos rápidos e nadar à minha volta, às vezes vindo por baixo e me empurrando, às vezes me puxando pela mão. Por fim, acabei indo com ela, mais flutuando que nadando em direção às rochas. Elas ficavam no meio do mar, e a maré foi subindo à medida em que avançávamos, de forma que, quando chegamos, só havia uma pequena parte de fora. Eu estava morta de cansaço e me estirei ali, mas logo tive de sentar, pois a maré continuava a subir e a engolir a rocha. E assim que isso aconteceu compreendi que não conseguiria nadar de volta à praia.
Minha amiga brincava por perto, mas se aproximou quando notou como eu estava aflita. Em suas mãos havia uma concha como eu nunca tinha visto antes, com uma espiral perfeita e cor de madrepérola, e ela a prendeu em meu cinto enquanto eu lutava para me manter na superfície. Depois, fez gestos indicando que devíamos nadar, mas meus braços não me obedeciam. Todo o meu corpo parecia pesado. Ela se afastou, olhando-me de um jeito sério, e eu ainda lutei um pouco, mas não consegui me impedir de afundar e engolir um bom gole d´água.
Aquele foi o pior momento da minha vida, mas acabou rápido. Mal tinha começado a me debater, a menina mergulhou por baixo de mim, levou-me para a superfície e me segurou até eu recobrar o fôlego. Então começou a nadar, mas não me puxou, nem me abraçou pelo pescoço como se faz com as pessoas que se afogam. Em vez disso, ficou por baixo de mim, sustentando meu peso com as costas enquanto ela mesma ficava afundada na água.
Avançamos bastante desse jeito antes que ela tivesse de respirar. Então, ergueu a cabeça, e nesse movimento vi seus olhos de perto. Eram castanhos e redondos, grandes demais para aquela cara de menina. Ela voltou a afundar a cabeça e a nadar, não mais batendo braços e pernas e sim ondulando o corpo. Isso me fez pensar de novo num peixe, mas o que ela era de verdade eu só descobri quando tornou a tirar a cabeça da água. Isso me deixou mais uma vez diante dos seus olhos, que eram como antes, escuros e redondos; mas já não pareciam tão grandes, porque não estavam no rosto de uma menina e sim na cara cinza e sorridente de uma foca.
Não acreditam, não é? Pois bem, façam as trouxas e vão embora do Castelo, parem de gastar o tempo dos nossos mestres! Há muitas coisas maravilhosas neste mundo, coisas que poucos veem, e futuros magos devem ser os primeiros a ter a mente aberta. Se estou dizendo que era uma foca, era uma foca, e ninguém tem por que duvidar.
Se bem que eu mesma levei um tal susto que quase desmaiei.
Quando criei coragem para olhar, vi que não estava mais nas costas de uma garota e sim nas de uma foca, de corpo longo e pelo lustroso. Além disso, notei que tínhamos mudado de rumo, deixando a praia para trás e avançando para dentro do mar. Gritei, apavorada, e tentei me agarrar ao corpo da foca, mas ela deu uma virada brusca que me atirou na água... e com isso me fez ver o barco que vinha rápido em minha direção. Eram homens da aldeia, que se apressaram a me recolher e a me embrulhar num manto seco antes de remar a toda pressa para a fortaleza. Procurei no meio das ondas, enquanto se afastavam, e vi a foca, os olhos grandes me encarando pela última vez antes que ela mergulhasse e sumisse para sempre.
Minha chegada causou muita comoção. Elín tinha dado pela minha falta e avisado a meu pai, que pôs uns vinte homens à minha procura. Só regressaram à noite, e a essa altura eu já tinha contado a história mais de cem vezes. Algumas pessoas duvidaram, mas a maioria acreditou, pois já tinham ouvido falar de moças-foca e mulheres-foca vivendo na região. Todos disseram que tive muita sorte, e a tia-avó Freydis decidiu fazer uma espécie de ritual, agradecendo ao mar e às focas por terem me devolvido em segurança. Foi parecido com o que fazem no Templo para Aegir Barba-de-Espuma, mas o conduzimos na praia, à luz da lua, de estrelas e de tochas acesas. Isso tornou a cerimônia muito mais bonita.
Quando terminou, meus pais foram andando na frente com os homens das tochas, enquanto eu ia atrás com minha tia-avó. Eu tinha mostrado a ela a concha que ganhei da menina-foca, e ela havia me pedido que a levasse para a praia, mas até agora não voltara a falar nisso. Foi só quando ficamos sozinhas que ela disse para eu pôr a concha no ouvido e escutar os sons lá dentro. Eu tinha feito isso antes e sabia que ia ouvir o vento e o mar, mas ela afirmou que havia mais, bastando que eu me concentrasse – e quando fiz isso, eu juro, lá bem no fundo percebi um riso de menina.
- O mar foi generoso com você – disse a tia-avó Freydis – e sua amiga lhe deu um presente. Guarde-o para sempre, pois essa concha é a prova de que você é bem-vinda para se aventurar nas ondas. E um dia, quem sabe, conhecer os mistérios do oceano mais profundo.
E foi o que eu fiz. Guardei a concha, que agora mostro a vocês, mas sobretudo guardei a lembrança daquela tarde e as palavras da minha tia-avó. Vim para esta Escola de Magia, mas o que pretendo é conhecer a natureza, a alma de todas as coisas que existem no céu e na terra. Quando crescer, quero poder pular num barco, navegar os oceanos mais distantes e desvendar todos os seus segredos.
Porque eu tenho o mar nas veias e sou amiga da menina-foca.
E hei de me aventurar longe o bastante para reencontrá-la.
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Em breve: a narrativa de Andi. Não deixe de passar aqui, pois será contada de forma especial.
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Gostei muito desse aqui. Beijos,
ResponderExcluirVânia
Eu também adorei. Talvez seja porque gosto muito do mar e adore focas :). A Freydis é mesmo uma graça!
ResponderExcluirFaltou a Freydis contar onde ficam essas terras do seu pai. Mas a Anna descobre ao longo do livro.
ResponderExcluirE será que ela um dia vai reencontrar sua amiga, a menina-foca? I wonder.
AAAAAaaah, ela tem que reencontrar a menina foca!!! Se eu conseguir escrever uma fanfic da Freydis, vai ter a menina foca no meio!!
ExcluirEstou esperando! :)
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